sexta-feira, 29 de abril de 2011

A BURCA E OS DIREITOS DAS MULHERES


Não há duvida de que quando falamos em diferenças culturais estamos em terreno escorregadio. Para além de qualquer análise antropológica, qualquer pessoa razoavelmente sensata percebe que o outro, aquele que não compartilha dos mesmos pressupostos culturais que nós, deve ter suas tradições preservadas. De fato, sempre que uma cultura tenta intervir em outra a tendência é ocorrer choques, tensões e, não raro, o velho colonialismo que aparece como discurso civilizatório.
Mas existe algo de esquizofrênico no debate atual sobre a proibição da utilização da burca e do niqab na França. Acabamos lendo discursos inflamados a favor da liberdade de expressão religiosa, discursos um pouco estranhos, para dizer o mínimo, na medida em que são sustentados por argumentos da ordem dos direitos humanos. Para falar a verdade, falemos diretamente: existe um consenso quase que unânime na esquerda de que o governo francês, de direita, ultrapassou os limites do razoável e está apenas perseguindo uma certa religião tida como perigosa para os valores ocidentais.
Ocorre que colocar a palavra burca e a palavra liberdade na mesma frase é muito mais perigoso do que parece. Ainda mais no caso de sustentar tal direito a se vestir como se queira como manifestação calorosa de garantia de direitos humanos.
A burca e o niqab são, sim, manifestações culturais e religiosas. Mas não são manifestações apenas culturais, são manifestações de subserviência cultural. Representam uma cultura que inferioriza, e isso ninguém pode negar, as mulheres. Trata-se, e aqui vamos ser um pouco generalistas, de uma cultura que prevê o apedrejamento até a morte de uma mulher que for considerada adúltera.
Será que o sistema dos direitos humanos pode ser relativista até o ponto de aceitar qualquer manifestação que degrada a mulher como mero símbolo de diferenciação cultural?
A liberdade religiosa, o Estado laico, a tolerância são historicamente batalhas dificeis que o Ocidente enfrentou, mas que acabaram dando o tom da dimensão religiosa minimamente aceitável dentro de Estados que respeitam os direitos humanos. No Ocidente, uma religião que se dispusesse a sacrificar criancinhas toda sexta-feira à noite para louvar os deuses certamente seria intolerável. Isto porque o regime da tolerância, desde sua formulação lockiana, não pode tolerar qualquer coisa. Existem questões que são intoleráveis, que não estamos dispostos a abrir mão em nome da diferença cultural.
Dilacerar o órgão genital feminino pode até ser um ritual de muita importância em certos lugares, verdadeira tradição, mas acreditamos que seria completamente insustentável, tal qual o apedrejamento até a morte, em nosso sistema jurídico.
A burca, e aqui pedimos licensa aos linguistas, não é um mero signo da opressão. Outros signos, como o crucifixo e o quipá poderiam, talvez, serem considerados opressivos, dependendo dos limites de cada um. A burca, no entanto, não é signo da opressão: ela é o próprio objeto que oprime.
A igualdade de todos é principio essencial de qualquer democracia e requisito primordial de Estados comprometidos com os direitos humanos. É, inclusive, o pressuposto jurídico da liberdade religiosa. As religiões têm o mesmo valor, em um Estado laico, porque são consideradas iguais, sendo justo qualquer caminho que os homens busquem para chegar aos céus. Porém, ao colocar a mulher como ser inferior ao homem, e em alguns casos, até como impura, não estamos jogando a lógica da igualdade.
Poderia-se objetar que quase todas as religiões fazem distinções entre homens e mulheres. Isso é verdade. Mas a consequência lógica disso não é que, portanto, nada devemos fazer. Pelo contrário, está mais do que na hora de colocarmos esta questão em debate.
Talvez, um dia, comecemos a debater a vestimenta de freiras, padres e monges. O debate que se coloca diante da sociedade, no entanto, vai além da lógica da idumentária religiosa. Trata-se de uma questão de direito. E não é porque não discutimos estas vestimentas que devemos também não discutir a burca utilizada pelas mulheres. A agressão, nesse caso, é estendida a todas, não importando o grau de relacionamento que queiram ter com a divindade. As freiras, por outro lado, escolheram dentre inumeras possibilidades de vida a via religiosa.
A história, nessa discussão, nada explica. A tradição não aponta para valores positivos que devem ser levados em consideração como requisitos fundamentais da identidade de uma cultura. Se é verdade que a burca tem toda uma história tradicional que sustenta a sua utilização, por outro lado, essa história é a do mais puro preconceito, uma história com a qual não devemos compactuar. A história não pode servir de argumento para a  legitimação da iniquidade.   
As mulheres sabem melhor o que tudo isso significa. É o velho, tradicional e cultural machismo o que está em jogo. Argumentar que, no caso islâmico, elas usam porque querem, é tripudiar sobre a inteligência das mulheres. No mínimo, caso se visite por turismo o Afeganistão, as mulheres teriam problemas com suas vestimentas – a cultura local não abriria exceções para as ocidentais que seriam tidas como impuras, pervertidas e assim por diante. Por que, então, em um Estado que pretenda cumprir os direitos humanos as mulheres teriam que obedecer a lógica da diferença de gênero e da submissão?
Não se trata, em todo caso, de proteger as mulheres que usam a burca contra si mesmas. A liberdade de usar esta idumentária é uma falsa liberdade. Tudo se passa como se o discurso dos direitos humanos dissesse: “está vendo, somos tão libertários que até permitimos que vocês demonstrem sua cultura machista.” Que espécie de liberdade seria essa de se utilizar como roupa justamente o que oprime?
A diferença é um valor a ser preservado, quanto a isso não há duvida. Desde que não signifique desrespeito à igualdade jurídica de todos. O limite entre o aceitável e o inaceitável muitas vezes fica obscurecido quando tratamos de questão tão difícil e importante para a discussão de valores humanistas. Os direitos humanos, no entanto, não servem apenas como abstrações. Devem representar politicamente e juridicamente a dignidade de todas as mulheres. A verdadeira liberdade de usar qualquer vestimenta, por mais curioso que pareça, para as mulheres que eram obrigadas a usar a burca por questões culturais, é fruto de uma lei que proibe a utilização de uma espécie de vestimenta. Não existe, de fato, liberdade de escolha para as mulheres muçulmanas se não se dispor de uma lei sobre o assunto. O universo familiar, as amarras culturais, as obrigações religiosas impediriam esta mulher de escolher efetivamente o que pretende usar como roupa nas ruas. É a escolha da não-escolha, argumento insustentável do ponto de vista de uma verdadeira liberdade.  
O discurso que denuncia a burca como símbolo de opressão não é novo e também não constrói seu estatuto nas bandeiras tradicionais do feminismo. É a feminilidade que está em jogo. Mas a feminilidade que toda a mulher tem direito. O que os homens precisam perceber é que as diferenças que realmente importam não discriminam, de forma alguma, a mulher enquanto ser inferior. Pelo contrário, constroem a sua identidade própria.
O caso, também, não pode se limitar simplesmente a ideia de que a mulher com o rosto coberto representa um perigo para a segurança pública. Pensar assim é diminuir a questão. O problema não é o de identificar o inimigo, mas sim o de permitir a mulher formar e criar a identidade que bem quiser para si mesma. As roupas, assim, se mostram elementos de diferenciação em que cada uma das mulheres escolhe, de verdade, o que usar. Em outras palavras, o caso não diz respeito a segurança do Estado francês, mas aos direitos das mulheres que habitam a França.
É claro que os conservadores franceses adoraram a nova lei. Para eles, no entanto, não é uma questão de princípios, é puro preconceito e xenofobia. No entanto, para criticarmos tal governo, não podemos abrir mão da verdadeira igualdade entre os sexos, da liberdade que não dá tiro no próprio pé. A única saída viável da esquerda atual, nos parece, é sempre não admitir relativismos no que tange aos direitos humanos.

quinta-feira, 28 de abril de 2011

MANIFESTO ZAGAIA




MANIFESTO ZAGAIA

mas é preciso disparar setas, flechas, canhões, cuspes, zagaias. Armas contra. Nosso golpe: ironia e paradoxo, estranhamento e ressignificação. Em algum lugar, um padre corre perigo. Um pensamento pelo avesso. Perplexidade? Comemos gerânios no café da manhã. Reacionários de todas as vertentes são o alimento da madrugada. A indigestão se dissolve em poemas, prosas, sons, imagens. Porque, em tempo de barbárie, zagaia contra tudo, contra todos. Uma arte contra si-mesma. Poesia do impossível após auschwitz.
Já nascemos velhos. O cansaço branco da ditadura da realidade. Mas buscamos o sentido pelo novo. Usamos óculos – lente divergente, lente de ver gente. E caminhando de um lado para o outro, tecemos nossas armadilhas. Capturar a si mesmo. Estão vendo esta cicatriz profunda, obliqua, negra? Fomos nós que fizemos em nós mesmos. Precisávamos extirpar do fundo da existência tudo que era sagrado, intocável. Sim, a carne é triste.  As certezas nos abandonaram de uma vez só. Sangue no ralo.  E agora tudo era mil versos de infinitos significados possíveis. Multi-colorido, mas vermelho.
Pensar é pensar contra. A favor, já bastam os policiais de plantão, a censura dos acomodados, a inércia dos puristas, a visão cega dos falsos gurus. Então, zagaia a ponto de sonhar uma posição improvável: a esquerda da esquerda. Nossa política é a estética do imponderável. Sejamos sinceros: joguemos pedras nos porcos.
Nossa arte é o produto do parto sangrento de um ouriço do mar. Zagaia é lança de arremesso curto, certeiro, mas voa no ar de maneira sinuosa. Porque nomear algo que propositalmente foi colocado às escuras significa perder de vista o próprio objeto. Para além da distorção, no blefe, acreditamos que a arte é um acúmulo de tempos desiguais e combinados. Um salto livre sob o céu da história. Nosso compromisso é com o agora, espaço fora do lugar, com o não-lugar. Telas sem molduras. Está mais do que na hora de cumprir aquela promessa radical. Não concordamos, não aceitamos, não acreditamos – enfim, não vendemos. Estamos fartos daquela arte bem-comportada, imunizada, higiênica. Às favas com a moderação e os bons costumes! Chega desta cultura-consumo. Arte-mercadoria. Não comercializamos o sentimento.  Nosso ócio negado é o incesto. Nosso negócio é a imagem imoral de uma mulher com flores nos cabelos. Uma música que toca ao contrário. Alguém dançando no escuro.
Se as condições objetivas da vida não nos permitem viver qualquer utopia fora do capitalismo, o que nos resta é sabotá-lo. Zagaia é terrorismo cultural. Terror que espanta: o medo de sair do útero. Reconfiguração radical do simbólico. Grito das quebradas e mundaréis. A maior imoralidade é a moral. Sejamos libertos, libertários, libertinos: zagaiatos. Mas, sempre verdadeiros. Nosso embate é estético. Para que possamos ocupar de vida o vazio das palavras. Neste mundo de simulacros, nós queremos mais.
É chegado o momento de sermos arco, flecha e alvo. Signo, significado e objeto. Instrumento-mensagem. Flecha contra todos, alvo de nós mesmos.
Um projeto anti-projeto. E ainda assim

LANÇAMENTO DA REVISTA ZAGAIA

Amigos,

Convido todos para o lançamento da revista digital ZAGAIA. Junto com outros companheiros, este é o projeto que venho desenvolvendo nos últimos tempos.
Uma revista de cultura e investigação estética. Política e Arte. Preparem suas Zagaias! Dia 13/5 a 1a edição da revista estará no ar! E o lançamento é no dia 12/5 no Bar B (r. General Jardim, 43 - Centro), a partir das 19:00hs. Com roda de samba e choro do Grupo Zagaia, Intervenção teatral do Galpão de Folias, e projeção de pinturas, fotos, poemas e filmes Zagaiatos. Discotecagem de DJ Zagaia e os Tabuleiros das Candongas!

                              Abraços!!!