segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Muito além do "modismo": quem confunde as palavras, confunde as coisas


RESPOSTA DO COLETIVO ZAGAIA A PEDRO POMAR ENCAMINHADA PARA O BRASIL DE FATO E CAROS AMIGOS 


Prezado Pedro Pomar
Gostaríamos, antes de tudo, de aceitar o seu convite e nos apresentar para evitar qualquer espécie de acusação de que não assumimos nossos próprios riscos. O núcleo do Coletivo Zagaia é composto por Rodrigo Suzuki Cintra, Silvio Carneiro, Thiago Mendonça, Selito SD, Leonardo França e Leandro Safatle entre outros nomes que participam do coletivo e que se não aparecem aqui é apenas por economia de espaço, pois compartilham das mesmas inquietações destes que ora assinam este artigo. Ressaltamos que na página da Revista Zagaia (www.zagaiaemrevista.com.br) sempre foi possível identificar os seus membros e convidamos tanto o senhor como os demais leitores a visitar a Revista e nosso Blog, de modo a poder conhecer o nosso trabalho.
Portanto, a insinuação de que nosso artigo era despersonalizado, de fato, não procede. E a acusação de que nos escondemos “atrás da fachada de um grupo desconhecido, o Zagaia, que se diz parte de um grupo maior, o Cordão da Mentira” é, para dizer no mínimo, fantasiosa. Se assinamos em nome do coletivo é porque todos nós concordamos com os argumentos e com a tomada de posicionamento que ali escrevemos.
Talvez seja o caso de dizer, no entanto, que nos entristece ver sua posição em relação à ideia de coletivo como algo despersonalizado. Ao contrário, acreditamos que empreender lutas coletivas é fundamental para a transformação da sociedade, transformação que sempre se renova em suas demandas. Se há despersonalização no cotidiano ela não é fruto das lutas coletivas, mas do individualismo atroz e da falta do debate de ideias.
É preciso ressaltar, porém, que este não reconhecimento do coletivo como modo legítimo de se manifestar é sintomático. Ao questionar os motivos de não assinarmos com nossos nomes e sugerir que não teríamos coragem de mostrar a nossa cara, o senhor acaba por reiterar dois dos equívocos centrais desta polêmica. Em primeiro lugar, acaba por reduzir nosso texto a uma discordância de caráter pessoal, como se nossa intenção fosse atacar a sua pessoa acima de tudo. O que não é verdade, na medida em que nos sentimos confortáveis em dizer que o antagonismo era fundamentalmente em relação ao posicionamento tomado pelo senhor ao escrever o artigo “Um modismo equivocado”. Ou seja, o senhor diminuiu a polêmica a um debate personalizado, sentiu a crítica de uma maneira muito pessoal, quando, na verdade, o que importa (ao menos para nós) é discutir a desqualificação do conceito civil‐militar como modismo. Mas, para além disso, há outros equívocos a serem delineados.
O equívoco do poder
Não se trata, portanto, de tomar partido de um senhor “arcano” ou de “determinados jovens“ como o senhor escreve, mas de sustentar esta ou aquela postura em relação ao entendimento do verdadeiro significado da ditadura civil‐militar, mais precisamente, sobre seus participantes. Este ponto, curiosamente, foi deixado de lado em sua última resposta. Mas podemos aqui recordar.
Primeiramente, quando em seu artigo “Modismo Equivocado” o senhor assinala que: “Embora todos nós da esquerda (sic) saibamos da participação civil tanto no golpe de 1964 (…) como no regime que dele se originou, também entendíamos perfeitamente que quem mandou de fato, quem exerceu o poder político, foi o Alto Comando das Forças Armadas”. Em nossa resposta, argumentávamos que esta seria uma concepção equivocada de poder, pois contraditória: afinal, Pedro, os civis participaram ou não? Como eles participaram? O problema de seu conceito de poder está no sentido de afirmar que quem manda é apenas quem o detém formalmente. Sabemos, hoje, que a rede de poderes é mais complexa do que identificarmos quem assina e quem obedece. O que as recentes descobertas da historiografia latinoamericana vêm revelando é que havia um jogo entre as partes civis e militares, para além da soberania de um dos polos. Carlos Fonteles, integrante da Comissão da Verdade, revelou, dias depois de publicarmos nossa resposta ao seu texto, um documento oficial que relaciona a Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) à produção de armas para o movimento que derrubou o presidente João Goulart, em 1964. Citando relatório confidencial do SNI diz que o órgão civil teve a função de “fornecimento de armas e equipamentos militares aos revolucionários paulistas”. Portanto, desde o início, ninguém foi deixado de lado na farra da ditadura: civis e militares usaram as armas que tinham a seu alcance para derrubar toda sombra de mudança sobre o status quo.
Neste sentido, o seu argumento de que estaríamos eclipsando o campo militar no conceito “ditadura civil‐militar” é, no mínimo, falacioso. Em nossa resposta não deixamos de lado a violência militar, mas insistimos em lembrar que estavam associados até a medula aos desmandos civis. Enfim, os dois polos da equação devem ser devidamente julgados e condenados aos olhos da história.
Decerto, o senhor poderia argumentar que também não deixa de lado isso. Conforme seu artigo: “É preciso sim identificar os grandes empresários e a oligarquia que financiaram e inspiraram o golpe militar e a repressão política. Os cúmplices civis dos governos militares, os apoiadores dentro e fora da mídia. Queremos sim sua punição! Mas deimediato deve‐se identificar e punir aqueles que foram a sua guarda pretoriana, que cometeram crimes de sangue em favor do regime. Que perseguiram, trucidaram, executaram covardemente, ocultaram e destruíram corpos”. Grifamos o “imediato” pois aqui mora o que caracterizamos “peleguismo” (o que não era uma crítica à sua pessoa, mas à sua posição em relação ao fato). Não se trata de preconceito ou ódio de nossa parte, muito menos de frenesi digital, mas de colocar sob regime de suspeita tal afirmação: um ato salutar no pensamento e na ação.
Ora, seu artigo foi escrito em plena aurora da Comissão de Verdade (agosto deste ano). Portanto, não é uma peça ingênua, e procura, ao que parece, representar uma posição na ordem das investigações do comitê. Ora, por que esta ordem? Por que, primeiro investigar os militares e depois os civis, ou se ater ao primeiro grupo? Não nos venha com a conversa de que estamos querendo ocultar os militares na neblina civil, ou que estamos prestando um desserviço, por favor! Nossa suspeita, é que esta insistência acabe por fazer justamente o contrário: ao destacar os militares, satisfaça o gozo civil – e navegue tudo como d’antes no quartel de Abrantes. Deixar para amanhã o julgamento dos civis responsáveis pela barbárie é, a nosso ver, omitir‐se em relação à história. Como se o fato de financiarem torturas e assassinatos fosse secundário diante de quem as realizou. Como se desconhecêssemos como funciona a justiça e o gozo com seus bodes expiatórios. A querela entre nós parte daí.
Portanto, não é um desserviço tratar a ditadura como civil‐militar, é clamar por uma memória ampla e irrestrita dos seus crimes e criminosos. Talvez mais: retirar do imaginário popular a ideia de que a ditadura fora apenas militar. Mostrar que o sr. Marinho tem, sim, tudo a ver com o que acontecia ali; de que os Frias forneceram veículos do seu jornal para atitudes nefastas do poder, de que o sr. Boilesen da Ultragás refestelava‐se com sessões de tortura, de que a TFP foi um braço civil importante para o discurso da moral e dos bons costumes. E se, porventura, os civis foram deixados de lado pelos militares a certa altura – como você afirma em seu artigo “Modismo” ‐ nada impediu que voltassem com força total pela porta dos fundos da anistia (ou mesmo antes dela, uma vez que a anistia não é nenhum milagre jurídico, mas o resultado de acordo entre as forças militares e civis no poder). A ditadura apenas “militar” oculta tudo isso e deixa o presente nebuloso e a perversão civil, muito bem, obrigado. Eis, ao nosso ver, o desserviço de sua estratégia. Eis o que nos forçou a reagir ao seu artigo.
O equívoco da tradição
O segundo equívoco pode ser percebido logo na enunciação inicial de seu segundo texto: “Tenho 55 anos de idade e milito na esquerda há mais de 30.” Não é novidade que muitos militantes da esquerda e da direita utilizem‐se de argumentos de autoridade para sustentar sua posição ‐ o que a Zagaia desconsidera de pronto. É só que ao usar tal instrumento retórico, se reafirma, mais uma vez, o que criticamos: o uso da ideia de tradição como recurso autoritário para sedimentar maus entendidos sobre o passado.
Mais ainda, trata‐se de uma estratégia de esquiva que, ao primeiro golpe, apela aos sentimentos privados no cenário público. Artifício comum nos debates públicos atuais que, ao primeiro sinal de controvérsia, leva ao território obtuso da cordialidade e da esfera privada. Quando vamos nos livrar disso? Tudo se passa como se sua acusação de “modismo” não fosse violenta, como se não atacasse os grupos que vêm construindo esta perspectiva há anos, e sua critica fosse a mais genérica e abstrata possível! Nesta estratégia desconsidera a luta de diversos grupos importantes como a Rede Dois de Outubro, Mães de Maio, Cordão da Mentira, e também o nosso “grupo de fachada” Coletivo Zagaia. Grupos para os quais é fundamental estabelecer os laços de continuidade entre o passado e o presente.
Ao tratar o conceito civil‐militar como uma moda da estação, acaba por afirmar sua posição autoritariamente (aparentemente embasado em outros historiadores respeitáveis e em um tal de “tradição oral popular”). Prefere afirmar o imaginário equivocado que apreendemos nos grandes meios de comunicação (estes também braços civis da ditadura) do que repensar o seu conceito.
A confusão não poderia ficar mais clara no fim de sua própria resposta. O senhor chama de lixo literário (a mesma categoria que o crítico literário Zé Serra se valeu para caracterizar a Privataria Tucana) nosso artigo. De fato, preferimos a honesta crítica dos botequins. Sustenta que escrevemos contra a sua pessoa e não contra seus argumentos, e com este recurso se isenta de responder nossas críticas. Arremata: “Vamos ver, nos próximos anos, o que o “movimento histórico” dirá de tal irresponsabilidade e de tamanha falta de princípios.” Qual teria sido, exatamente, a nossa irresponsabilidade, então? Seria, apenas, a de ter contrariado suas ideias? É isso que o “movimento histórico” ensinará? Contrariar os “arcanos” não é bom negócio?
E confessamos que recebemos com estranheza o questionamento descomedido sobre nossas identidades (“Não têm coragem de mostrar a cara?”; ou ainda: “assumam publicamente o teor da carta publicada. Identifiquem‐se como autores perante os leitores.”). Ninguém na Zagaia se esconde do que faz ou escreve, participamos de diversos fóruns e discussões públicos, militamos em diversas frentes seja no âmbito da política, seja no âmbito da estética (esferas que não se dissociam para nós), mas o pedido para mostrarmos a cara lembrou um pouco aquelas investigações policialescas de quem quer saber quem é o efetivo culpado pelo crime, para, depois, puni‐lo exemplarmente. Vivemos numa democratura Pedro, basta uma rápida procura na internet para que nossas identidades venham à tona. Não somos, ainda, uma guerrilha (apesar de termos muita simpatia pelos antigos guerrilheiros).
Por fim, não se trata, é claro, apenas de um conflito geracional como o senhor sugere ao fim de seu artigo em resposta a nossas inquietações. Muitos de sua geração compartilham conosco o posicionamento de que a expressão “ditadura civil‐militar” é mais precisa para designar o que realmente aconteceu no Brasil dos anos de chumbo. É bom lembrar que não estamos sozinhos neste entendimento. Um historiador que respeitamos muito, Daniel Aarão Reis, publicou este ano um texto em que defendia idéias muito semelhantes às nossas: “são interessados na memória atual as lideranças e entidades civis que apoiaram a ditadura. Se ela foi “apenas” militar, todas elas passam para o campo das oposições. Desde sempre. Desaparecem os civis que se beneficiaram do regime ditatorial. Os que financiaram a máquina repressiva. Os que celebraram os atos de exceção. O mesmo se pode dizer dos segmentos sociais que, em algum momento, apoiaram a ditadura. E dos que defendem a ideia não demonstrada, mas assumida como verdade, de que a maioria das pessoas sempre fora — e foi — contra a ditadura. Por essas razões é injusto dizer — outro lugar comum — que o povo não tem memória. Ao contrário, a história atual está saturada de memória. Seletiva e conveniente, como toda memória.” Alípio Freire, jornalista e ex‐integrante da ala Vermelha, defende, com especial precisão e senso crítico: “Chamar o golpe só de militar camufla a questão de classe. Foi uma ditadura civil militar. É uma questão capital‐trabalho.”
O verdadeiro sentido de nossa época, ao procurar nas ruas (através do Cordão da Mentira e dos escrachos e esculachos) ou através das comissões da verdade e justiça, desvelar o que estava acobertado pelo tempo, é justamente ressignificar o que sempre se pensou de maneira tradicional. Nesse sentido, acreditamos que os usos de linguagem denunciam, profundamente, o que se entende pelo período que se quer caracterizar. A alteração da expressão “ditadura militar” para “ditadura civil‐militar” não é, assim, aleatória e parece, sim, responder aos anseios do “movimento histórico”: revisitar o passado para compreendê‐lo melhor tendo em vista a identificação de suas estruturas no presente e a construção de um futuro livre, onde a verdade possa ser conhecida por todos. Este é o real sentido de nossa atual luta pela democracia.

Coletivo Zagaia