domingo, 30 de julho de 2017

Roda de Bicicleta, 1913 (Duchamp) Ou À Sombra da Arte de Obra





I

              A arte é tudo que for o caso.
         Esta roda de bicicleta disposta sobre um banquinho branco é perfeitamente inútil. Este banquinho branco sob uma roda de bicicleta é perfeitamente inútil.
      Talvez tivessem utilidade prática como objetos de indústria se estivessem separados, mas daí não fariam uma sombra, dependendo do ângulo da luz, absolutamente improvável.
         Se os bancos servem para se sentar e as rodas de bicicleta para se mover, existe algo nesta construção que não leva a nenhuma dessas possibilidades. Esta montagem é contraditória: há algo nela de potência de movimento, mas está profundamente inerte.
         Não é bem uma escultura o que se propõe, apesar de situar-se no espaço. É um evento singular. Um evento do novo. Na física, os eventos são quadridimensionais. Somam à altura, à profundidade e à largura, o tempo. Os eventos situam hora e local. Esta Roda de Bicicleta é um evento malcriado. Situa-se no espaço, mas nega a inércia e também o movimento. Seu tempo é sempre o do instante. Mas, bem pode ter sido ontem e, sem dúvida, persistirá para amanhã e depois.
         Sem ser escultura, a montagem, que não tem assinatura aparente, causa impacto por ser, em sua materialidade dos usos cotidianos, apenas uma justaposição vertical. Trata-se de um deslocamento, este de ser outra forma de arte, que devolve a ela a sua dimensão mais importante: um certo ar de escândalo. Sua força artística está em uma rejeição: se nega a ser objeto de consumo ou de indústria, apesar de ser composta por elementos de consumo e indústria.
         É só uma ideia.
         A luz do ambiente, com o passar do dia, provoca transformações na sombra desta peça. É curioso olhar para arte por meio de sua sombra. Há algo de original nisso também. A luz, dependendo do horário, incide sobre a montagem com ângulos e intensidades diferentes. O que provoca as mais variadas formas de distorção em sua sombra. E pode se ter a nítida impressão que a obra tem vida; pois sua sombra se movimenta, aumenta de tamanho, diminui, fica mais evidente ou se apresenta quase como uma mera sugestão de sombra.
         Olhar para essa justaposição inaugural de um novo modo de fazer arte, por meio de sua sombra, é como que investigar os rastros que formalizaram a estrutura como ela é. Escura, mutável, irresponsavelmente avessa à ideia de representação dos elementos da composição, a sombra, misteriosa, sempre nos prega peças se o caso é tentar entender a obra a partir dela.
         A sombra é estar ali e aqui.   
         A sombra é um antes e um depois.
         Um banquinho e uma roda de bicicleta são o que são e ainda assim.

II
Uma roda de bicicleta preta é uma roda de bicicleta preta.
Um banquinho branco é um banquinho branco.
Uma roda de bicicleta preta em cima de um banquinho branco não é uma roda de bicicleta preta em cima de um banquinho branco.

III

         Não podemos sentar nesta roda de bicicleta ou pedalar de banquinho. Juntos, estes dois elementos são, em verdade, um novo elemento.
         Quem sabe alguém que passe andando por esta estrutura se negue a perder tempo para entendê-la. Quem sabe a peça não desestabilize mais as formas prontas dos críticos mais respeitados. Talvez as crianças desejem brincar com a coisa toda e os adultos, secretamente, pensem serem capazes de criar coisas do gênero. 
         Dizem que é perfeitamente possível repetir esta montagem infinitamente. Um diâmetro de roda de aproximadamente 64 cm. Um banquinho de aproximadamente 60 cm. E basta colocá-los na posição indicada. O seu truque escapa à lógica da arte tradicional que evita a imitação. Pois, trata-se, em todo caso, sobretudo, de um conceito.         
         É claro que ocorre de imitadores fazerem justaposições variadas de outros objetos de indústria, às vezes, até mesmo elaboradas, porém, dificilmente conseguem o mesmo efeito.
     Escritores excêntricos tentam, sem sucesso, descrevê-la da melhor maneira possível. Há sempre uma perda. Obviamente, como não poderia ser de outro modo, algo escapa às palavras e tudo que se pode fazer é contemplá-la.  
Mas, um pensamento radical é deixar a Roda de Bicicleta como está. Perdida em um dos salões de galeria. Apenas mais uma peça entre peças. Deixá-la, ali, esquecida em sua improbabilidade.
Deixar que a luz do ambiente modele sua sombra. Aguardar que a luz solar projete no chão e na parede uma imagem como em um relógio de sol.
E, inevitavelmente, perceberíamos em sua sombra o movimento lento do objeto estático. Criando caso, certamente, pois, em verdade, sua sombra é, sempre, um momento do agora.

IV

A sombra da roda de bicicleta preta não é a roda de bicicleta preta.
A sombra do banquinho branco não é o banquinho branco.
A sombra de uma roda de bicicleta preta em cima de um banquinho branco é uma roda de bicicleta preta em cima de um banquinho branco.

V

Já pensei, algumas vezes, em tentar derrubar a famosa justaposição. Duvido que a roda de bicicleta esteja solta sobre o banquinho. Civilizado, quando a vi pela primeira vez, tentei soprar o mais forte que conseguia, um sopro de plenos pulmões, para ver se a estrutura se movia de algum modo.
Mas, a roda simplesmente não se movimentava.
Depois, acabei por perceber que, mesmo que conseguisse destruir a lógica da estrutura, sua sombra provavelmente não se alteraria. Ficaria ali, enigmaticamente, colada ao chão.
Trata-se de uma obra que não proporciona qualquer concessão. O sucesso na destruição em nada modificaria a sua força e o seu alcance. Sua sombra já estava impressa na minha mente e na história da arte.
Curiosa maneira de perceber que a arte é uma forma absoluta de dizer “não”.
         

sábado, 1 de julho de 2017

Citação do mês - Jul/2017

"É preciso ter uma ideia do que se irá fazer. Mas deve ser uma vaga ideia"

Picasso

réquiem para um poeta vivo


Decidi escrever sobre o filme “Ferroada” (2016) de Adriana Barbosa e Bruno Mello Castanho. Não pensei em escrever sobre o filme após ter assistido. Era enquanto assistia, no meio da platéia do cinema, que minha imaginação se movimentava. O filme é sobre um poeta, um coveiro: um homem. Comecei por tentar escrever uma crítica formal, bem cortada, elogiosa. Desisti. Resolvi escrever uma crítica ao filme via poesia. Achei que era uma forma de respeito, de certa maneira, ao próprio personagem principal. Também, é claro, aos cortes da montagem dos diretores. Pode acontecer, às vezes, de uma forma de arte impulsionar outra. Se o filme sobre o Tico saiu de sua literatura indo parar nas telas, agora, devolvo imagens em letras. Mas, faço isso a meu modo: com cortes que emendam as imagens… no mundo da vida.  
réquiem para um poeta vivo

para Tico


embora palavras

não passem

de nuvens

ainda que

formatos indeterminados

do imaginário

discordem tolos

teimando contornos

meramente sugestivos

fugidios da

primeira arquitetura

*

dos símbolos


também agulhas

 podem ser

 pois picam

alfinetam juízo

coçam por

dentro a

tragédia infinita

anunciado assassinato

no texto

difícil do

golpe arriscado

*

da escrita


talvez lápides

obras invisíveis

mas sempre

vermelhas como

virgulas suicidas

do mergulho

do ferrão

certa loucura

mistura nariz

de palhaço

no veneno

*

de escorpião


pudera conceitos

dessem conta

enquanto letras

que enterram

a música

interna do

sentimento quando

silêncio um

grito pressentido

acorde final

ferroada poética

*

de marimbondo


naqueles signos

construções narrativas

onde veículos

fatais se

movem sempre

ou nunca

via contramão

o caso

daquele homem

argumento de

si mesmo

*

do não


nas imagens

sempre algo

de morte

estrutura a

nebulosa arte

do sonho

ressignifica mundo

num blefe

o último

da forma

dialética

*

de vagabundo




Esse poema foi publicado na Revista Zagaia, em junho de 2017.