Mostrando postagens com marcador A Galeria Invisível. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador A Galeria Invisível. Mostrar todas as postagens

segunda-feira, 30 de agosto de 2021

A Galeria Invisível

Rodrigo Suzuki Cintra 


Para minha querida Allegra, pois seu papai, com amor e muito carinho, deseja que sonhe sempre o impossível.

 

Para mim não existe diferença entre o sonho e a realidade. Eu não sei nunca se o que faço é produto do sonho ou do estado despertado.

Man Ray


É preciso ter uma ideia do que se irá fazer. Mas deve ser uma vaga ideia. Picasso


Loucura sim, mas tem seu método

Hamlet, Shakespeare





Existe um gênero literário clássico, uma antiga técnica grega, chamado ekphrasis, para muitos uma forma morta, que consiste em descrever uma obra de arte com a maior exatidão possível, de modo a tornar factível a quem nunca a viu efetivamente poder enxergá-la com os olhos da alma, como se estivesse bem na sua frente. Há, nessa forma, um exagero de cálculo na descrição. Tratei de compor os textos deste livro, que no fundo é um apanhado de fragmentos, influenciado por essa maneira, se bem que por vezes me arrisque a narrar histórias possíveis ou dissertar livremente sobre o valor de alguma obra específica. Por se tratar exclusivamente de fragmentos que partem de ekphrasis de obras dadaístas e surrealistas, conforme escolhi, certamente a lógica do real, imperativo típico dos homens sem imaginação, cede a um modo de contemplação e composição um pouco mais fantasioso e particular. Por certo que as descrições, as criações e as argumentações que partem desses tipos de obras jamais poderiam ser fiéis completamente se, de algum modo, não fossem ligeiramente malcriadas e não estivessem no limiar entre razão e emoção, precisão e irreverência, sonho e realidade.

 


sábado, 10 de agosto de 2019

O Reconhecimento Infinito, 1963 (Magritte) Ou Pai e Filho




I

         Pois também existe aquela história do jovem poeta que teve como guia o velho poeta pelos caminhos do céu – o segredo era interpretar as nuvens mais caprichosas, as que não se assemelham a objetos ou coisas concretas, buscando formas que parecessem com sentimentos.
         A saudade era fina, mas era longa em extensão, e eles demoravam muito tempo para conseguir percorrê-la por completo. Às vezes, uma saudade era tão longa que eles desistiam no meio do caminho e tomavam outro rumo para continuar a atividade de sentir as nuvens e compreender suas peculiaridades.
         O ódio não era exatamente branco como as demais nuvens. Existia algo de cinzento nele. Era um tipo de nuvem que se podia perceber à distância e que causava uma impressão particular. Destacava-se entre as demais e era responsável pelas tormentas mais violentas.
A paixão se assemelhava, curiosamente, ao ódio. Também era responsável por fazer a terra estremecer, mas tinha algo de momentâneo, não se fixava por muito tempo no horizonte, e se dissipava com a mesma facilidade e violência com que havia se formado. Era um tipo de nuvem de um quase-vermelho muito leve, apenas matizado, e lembrava a face de alguém ligeiramente envergonhado, mas que conseguia evitar que a maioria das pessoas percebesse seu rubor. Era quase que apenas a sugestão do vermelho.
Já a dor era reconhecível por ser de um formato menos uniforme, tinha várias saliências, pontas, recortes: não era sempre da mesma maneira que se apresentava aos olhos e a mutabilidade de suas bordas era sua característica predominante. Não era à toa que podia se disfarçar por outro sentimento, sendo, por vezes, muito difícil de identificá-la: era preciso olhos treinados para não se deixar enganar e tomar essa nuvem por outra.
Existia uma forma de nuvem que raramente aparecia no horizonte. Delgada e curta, ela também era menos cheia que as demais, de uma brancura que apenas manchava levemente o céu azul. E mesmo os poetas que caminhavam entre as nuvens e tinham o costume de identificá-las, às vezes, podiam passar por essa forma sem reconhecê-la propriamente. Deram o nome de remorso para ela e começaram a perceber que muitas vezes ela se formava após a dissipação de uma nuvem de paixão ou de ódio.
Mas, a mais difícil nuvem de se identificar era aquela que continha o amor. Ela podia ter qualquer formato. Podia se apresentar de qualquer modo e se formava e se dissipava sem obedecer a muitas regras. E o mais curioso é que, ao contrário do que pensam os não-poetas, esse tipo de nuvem aparecia com muita frequência.
A respeito dessa nuvem, os dois poetas discordavam sobre a melhor maneira de identificá-la.
O velho poeta argumentava que para distingui-la era preciso sempre deixar o tempo passar. Ela não se estruturava apenas no espaço, era uma nuvem de temporalidade mais vagarosa e se relacionava diretamente com o brilho dos astros. Ela cobriria o sol e sua mais importante característica seria que quando ela terminava de passar por esse astro, ele brilharia de uma maneira completamente diferente: tudo parecia se iluminar, a luz inundava todos os lugares e as coisas podiam ser vistas de um modo mais verdadeiro. O velho poeta acreditava que a nuvem do amor era aquela que tornava possível uma explosão de luminosidade após a sua passagem.
O jovem poeta, no entanto, achava que conseguia identificar a nuvem do amor através de um outro recurso. Não era exatamente o formato das bordas, a coloração, o preenchimento, a potência de chuva, nem mesmo o brilho do sol depois que ela passava. Nenhuma dessas características tomadas exclusivamente podia apontar para a nuvem do amor. O amor era um pouco de saudade, um pouco de ódio, um pouco de paixão, um pouco de dor e um pouco de remorso. Era uma nuvem contraditória em si mesma. Fina e longa era, ao mesmo tempo, curta e disforme. Cheia e pronta para a tormenta era apenas uma mancha no céu azul. Levemente colorida era extremamente branca. Era responsável pela luminosidade mais ampla e pela sombra mais escura.     
Como isso poderia ser possível, o jovem poeta não sabia obviamente explicar. Talvez a resposta fosse que todos os formatos de nuvens que representam os sentimentos tivessem, no fundo, uma mesma origem. Ou que tivessem uma mesma finalidade. O amor poderia estar no começo ou no fim de todos os sentimentos. O que o jovem poeta tentava defender era que, de qualquer modo, nenhuma das nuvens tinha um real significado se não tivesse no fundo, mesmo que só de passagem, um pouco do amor. Todas as nuvens eram feitas da mesma matéria. Era uma certeza estranha. A de que todos os sentimentos que possam existir nesse mundo eram, na verdade, apenas breves momentos de uma nuvem de amor infinita.  

II

         Não estando propriamente mortos, os dois homens se encontram em meio aos sonhos. O cenário é com frequência o mesmo: os céus. E o caminhar é sempre para frente. Vez ou outra, é preciso desviar das nuvens mais carregadas.
         A conversa, no fundo, também é sempre a mesma.
         O homem mais velho, o que usa a bengala para auxiliar no andar, quer convencer o mais novo, o que fala sempre gesticulando, que seu lugar natural é ali, no azul do céu e na brancura das nuvens: um infinito plenamente luminoso e verdadeiro.
         O homem mais novo, no entanto, conhece seus próprios abismos. Sabe que estar ali, andando entre nuvens, não é sua condição natural. Reconhece que está sempre a um passo de cair em uma escuridão profunda. Talvez quisesse simplesmente acreditar no homem mais velho, porém, aprendeu a desconfiar prontamente de si mesmo e admite que anda sempre no limite, sempre em uma quase queda.
         E o pior.
         Aprendeu, com o passar do tempo, a gostar do abismo.

III

Como explicar esse universo de significados: a sensibilidade em pintar a conversa mais verdadeira, a adequação em localizar nas nuvens esses homens tão iguais e tão diferentes, a técnica de deslocar os personagens para justamente centralizá-los, a capacidade de fazer das ocasiões do branco algo de carinho, a presença dos chapéus como símbolo do encontro e a musicalidade profunda do azul como manifestação da futura saudade?   
Talvez, seja porque se trata de uma beleza plena que está para além de qualquer temporalidade, que sobreviverá ao depois do depois – de algum modo, foi possível pintar aquilo que os homens mais sensíveis nomeiam de uma forma abstrata, mas que é precisa: sinceridade.  

IV

         Na escolha das cores, nos matizes mais suaves, na leveza dos personagens, no senso de proporção.  
O contraste entre o azul do céu e o branco das nuvens: infinidade.
         O cinza da condição humana, levemente deslocado do centro da tela: brevidade.
         Uma imagem que não é uma representação, apenas sugere algo entre a infinidade e a brevidade: a pintura mais poética de todo surrealismo.

Cabide, 1920/21 (Man Ray) Ou Medo de Brinquedo




         Uma mulher por trás de uma boneca de cartolina.
         À primeira vista, pode-se pensar que se trata de uma colagem, mas, o exame mais detido evidencia que é uma fotografia.
         É importante perceber, nesse caso, que se trata de uma fotografia. Pois, inadvertidamente, é uma imagem que causa impacto por suas ambiguidades, por sua improbabilidade extrema enquanto um instantâneo do real, por uma estruturação do elemento que se pretende representar radicalmente misteriosa.
         Não há como não sentir algo de perturbador na imagem.
Sua incompletude, seu modo de mesclar o corpo humano com a cartolina, um modo de representar o feminino que se dá estranhamente entre o que se vê e o que se esconde, o que está na frente e o que está atrás, tudo ali provoca incômodo.
         Não é exatamente o fato de existir potencialmente uma mulher por trás da cartolina o que causa essa sensação particular. Tampouco é a cartolina à frente da mulher que induz a certa rejeição. É a fusão desconcertante entre o que é vivo com o que não tem vida o que nos deixa perplexos. Pois, nossos olhos se alternam, demasiadamente e sem autorização, entre o corpo nu e a boneca de cartolina. E é nos momentos em que se percebe esses dois elementos em conjunto que ficamos completamente estarrecidos por estarem escandalosamente em uma pretensa harmonia na fotografia. Ali, a tensão entre o orgânico e o inorgânico obriga a buscar significados e estabelecer conexões de sentido de modo a tornar possível suportar essa composição absolutamente inusitada.
A sensação geral, ao olhar para obra, é tão particular que, apesar da modelo por trás deste singular cabide estar nua, deixando à mostra os seios, o sexo e seus contornos curvilíneos de mulher, não sentimos qualquer espécie de ímpeto sexual.
Alguma coisa na fotografia inviabiliza o desejo.
         O recorte da cartolina que acaba por representar os braços, os ombros, a cabeça com olhos, boca e cabelos de uma boneca pode parecer, inicialmente, uma representação mais infantil, porém, no entanto, é perturbador demais para ter sido feito por crianças. 
         A boca desta boneca é demasiada pequena e, se somar isso à ausência de nariz e aos cabelos desenhados de um modo singelo, temos um rosto de boneca quase que esquemático. É claro que os olhos completam a equação da face particular da boneca de cartolina. Muito abertos, dão a impressão de olhar diretamente para frente e além. É um olhar por demais profundo, é bom que se diga, e parece, inclusive, trespassar a estrutura da fotografia e enxergar o próprio sujeito que está a observá-la.
Por certo, o cabide vertical que sustenta a estrutura de cartolina garante que a imagem pareça não ter movimento. Além disso, a brancura do corpo e da cartolina contrasta com o fundo da fotografia que é profundamente negro. Essa escuridão é um truque de luz e, ao mesmo tempo, é contagiosa. De algum modo, absorve parte da perna direita da modelo. E ficamos sem saber ao certo se a perna foi apenas sequestrada pela lógica da escuridão do fundo da imagem, ou se a modelo já não tinha esse pedaço do corpo desde o princípio.
A cartolina disposta à frente do rosto e dos ombros da modelo esconde completamente o semblante da mulher real, funciona como uma máscara, e tem traços de boneca inerte que contrariam o corpo vivo e em evidência do resto da composição.
Porém, sequer é possível dizer, seguramente, para falar a verdade, que a boneca de cartolina é que encobre a mulher real. Talvez o rosto e os ombros da modelo também não apareceriam se o caso fosse o de retirar a boneca de cartolina da sua frente. Tal qual a perna pela metade, nada garante a completude da modelo acima dos seios. Pode bem ser que se encontrasse escuridão também por trás do lugar que a boneca ocupa na fotografia.
Esse é um tipo de pensamento coerente com a lógica interna desta fotografia, não há dúvida, mas, profundamente improvável para falar a verdade.
Porém, não são essas possibilidades que causam a sensação mais estranha quando se trata de observar atentamente a lógica da foto. Existe algo na estruturação dos elementos internos dessa representação que provoca, inadvertidamente, um pouco de medo.
Pode ser que essa sensação se origine em um movimento de nossa imaginação. Se pudéssemos retirar a boneca feita de cartão da frente da modelo e assim fosse possível enxergar a mulher por completo, em toda a sua vivacidade, com pernas, sexo, seios, ombros, pescoço, boca, cabelos, ela seria uma pessoa real, alguém que efetivamente pertence ao mundo. Ou seja, tiraríamos da fotografia seu caráter mais inusitado e a reduziríamos a uma mera representação singela de uma modelo.
E todo problema, o que nos aflige nos momentos em que deixamos a imaginação correr solta, consiste no fato de que, mesmo tendo sido retirada a boneca da frente dela, como a retirar uma máscara, essa mulher por trás da cartolina, estaria, inevitavelmente, a olhar diretamente para o espectador, ainda com aqueles olhos inertes de boneca.  
E a dúvida que apareceria, se assim fosse, não seria mais a proposta da foto (o que há de mulher por trás de uma boneca), mas, inversamente, o que há de boneca por trás de uma mulher: um pouco de morte.

O Mundo Perfeito, 1962 (Magritte) Ou As Cores do Mistério






I
  Um quadro singelamente bicromado: azul e branco, sem dúvida. Toda a astúcia da tela, que é um jogo de enganar, consiste em posicionar o olhar a partir de uma dessas cores. Sobrepostas, elas dão a impressão de profundidade à lógica de uma estrutura paradoxal. E somos tentados, constantemente, a determinar qual das camadas corresponde à verdadeira imagem de um céu que se desdobra e se reproduz a cada novo lance de olhos que empreendemos para tentar compreender a coisa toda. Pode ser que realizar um olhar a partir do azul garanta algumas certezas. A diferença de tonalidade dessa cor nos elementos que compõem a pintura certamente ajuda a identificá-los e, se isso não proporciona a descoberta de alguma verdade radical sobre a tela, pode auxiliar a delimitar os problemas que um intérprete pode encontrar pela frente. Pelo menos os problemas decorrentes do olhar azul, como podemos chamar. O chão, a parede e a cortina são plenamente identificáveis, possuem tons de azul diferentes, mas um rouba a cena do outro. Pensamos constantemente em que lugar, em qual destes elementos, está o verdadeiro céu. Um céu que pode muito bem ser impossível de se determinar, que é quase que apenas intuído, mas que invariavelmente não cansamos de tentar delimitar. Bem pode ser, no entanto, que sua função na tela seja outra – impedir profundamente que enxerguemos além. Obstáculos sucessivos a que olhemos diretamente para a imensidão do azul. O curioso, nesse sentido, é que eles são feitos do próprio azul cujo olhar inviabilizam. É possível, também, uma contemplação que privilegie a cor branca. Ela opera, nesse caso, de modo muito mais fugidio. Ao contrário do azul, feito de linhas retas, o branco é disforme e, além disso, espalhado pela tela em muitos lugares, mais mancha o azul do que propriamente se afirma como um elemento próprio. As diversas manchas, aliás, podem aparentar unidade em sua disposição aleatória, em seus formatos irredutíveis à geometria, mas, talvez, sejam plenamente singulares em cada uma de suas aparições. Se o azul é estático, o branco só se propõe nessa tela como movimento. Seus momentos são sempre de leveza. O branco pode estar na pintura de um modo absolutamente perceptível, determinado, de um modo que pensamos poder registrá-lo em nossa mente sem dificuldades. Mas, qualquer distração, qualquer desvio de olhar, tornará impossível enxergá-lo duas vezes do mesmo modo. As ocasiões do branco nos pregam peças e fogem do nosso olhar repetitivo. Cada experiência com essa tonalidade, que é quase que a negação da própria tonalidade, é única e, portanto, exige de nós, não concentração – o que de nada ajuda nesse caso – mas, uma forma de respeito toda particular. O branco pode não preencher o céu em todos os casos, sempre haverá dias sem nuvens, mas certamente é o que dá sentido ao céu que está para além do imenso, que inscreve seu registro para depois da finitude.  
II
  A maçã é verde, mas na verdade é azul. Disposta diretamente no chão, ela é um dos elementos azulados da pintura. Trata-se de uma maçã perfeitamente desenhada. Os matizes de seu azul são pintados ao nível do detalhe. Ocupando o primeiro plano da tela, ela projeta, inclusive, uma sombra que, como não poderia deixar de ser, também é azulada. Um azul quase que meramente sugerido, na medida em que as sombras têm por hábito serem negras. Ali, no espaço do azul que parece ser imenso, um azul que se aprofunda a cada olhar, a maçã se situa em posição estratégica. É a primeira camada da representação do céu. Ela, de certo modo, o integra e o inicia e sua função é puramente enigmática. Entendê-la é como que desvendar um segredo. O segredo dos céus propriamente dito. Isso é: uma metáfora. Todo céu é um mistério.  
III
  A maçã é verde, mas na verdade é branca. Uma nuvem branca estranhamente estática, avessa a sua própria natureza, com um formato peculiar de maçã, com cinco folhas esbranquiçadas num galhinho, e que contrasta com o azul do céu que quando olhamos muito fixamente parece curiosamente se mover. Todo branco lembra nuvens. Mas, quando se trata de nuvens propriamente, nunca podemos saber ao certo. Nuvens são sempre outras possibilidades de si mesmas. E os formatos dessas manchas no universo da composição da tela podem lembrar muito bem uma coisa ou outra. O branco é infinito a seu modo, de uma maneira um tanto caprichosa. Isso é: uma metáfora. Toda nuvem é uma metáfora.  
IV
  A imagem é muito bem desenhada: um círculo perfeito. Está disposta no chão azul, o que pode sugerir, num lance de olhos, a sensação de certa imobilidade. Sua inércia, porém, é algo duvidoso dentro da estrutura da pintura – pois sua sombra, mesmo que vagarosamente, provavelmente se movimentará. Mas, isso não é o que incomoda quando pensamos no assunto de maneira mais detida. O azul está em todo lugar. Só é interrompido por aquelas manchas brancas – as que podem bem ser nuvens, o que quer que isso signifique efetivamente. Um exercício interessante, no entanto, seria o de colocar o quadro de ponta-cabeça. Nada se alteraria verdadeiramente, se assim o fizéssemos, a não ser o círculo em primeiro plano. O azul e o branco continuariam com a mesma lógica de sempre e pode até acontecer de observadores desavisados nem perceberem a mudança. A pintura ainda estaria completa a seu modo – tudo se passa apenas no choque entre as cores. Mas, se assim fosse, a cor do círculo perfeito – azul ou branca – pediria maiores explicações. Seria o caso de pensar se, de fato, se trata de uma lua ou um sol, essas esferas que reinam nas alturas. E é claro que haverá sempre quem insista, sem maior sucesso, que a lua não é azul e o sol não é branco. O que mostra, no fundo, que muitos não conseguem nem determinar, ao certo, qual é a cor de uma simples maçã.  
V
  Por trás das nuvens do céu há cortinas que nos impedem de ver mais além. E todo o problema consiste no fato de que mesmo essas nuvens, vez ou outra, também são feitas de cortinas.

domingo, 30 de julho de 2017

Roda de Bicicleta, 1913 (Duchamp) Ou À Sombra da Arte de Obra





I

              A arte é tudo que for o caso.
         Esta roda de bicicleta disposta sobre um banquinho branco é perfeitamente inútil. Este banquinho branco sob uma roda de bicicleta é perfeitamente inútil.
      Talvez tivessem utilidade prática como objetos de indústria se estivessem separados, mas daí não fariam uma sombra, dependendo do ângulo da luz, absolutamente improvável.
         Se os bancos servem para se sentar e as rodas de bicicleta para se mover, existe algo nesta construção que não leva a nenhuma dessas possibilidades. Esta montagem é contraditória: há algo nela de potência de movimento, mas está profundamente inerte.
         Não é bem uma escultura o que se propõe, apesar de situar-se no espaço. É um evento singular. Um evento do novo. Na física, os eventos são quadridimensionais. Somam à altura, à profundidade e à largura, o tempo. Os eventos situam hora e local. Esta Roda de Bicicleta é um evento malcriado. Situa-se no espaço, mas nega a inércia e também o movimento. Seu tempo é sempre o do instante. Mas, bem pode ter sido ontem e, sem dúvida, persistirá para amanhã e depois.
         Sem ser escultura, a montagem, que não tem assinatura aparente, causa impacto por ser, em sua materialidade dos usos cotidianos, apenas uma justaposição vertical. Trata-se de um deslocamento, este de ser outra forma de arte, que devolve a ela a sua dimensão mais importante: um certo ar de escândalo. Sua força artística está em uma rejeição: se nega a ser objeto de consumo ou de indústria, apesar de ser composta por elementos de consumo e indústria.
         É só uma ideia.
         A luz do ambiente, com o passar do dia, provoca transformações na sombra desta peça. É curioso olhar para arte por meio de sua sombra. Há algo de original nisso também. A luz, dependendo do horário, incide sobre a montagem com ângulos e intensidades diferentes. O que provoca as mais variadas formas de distorção em sua sombra. E pode se ter a nítida impressão que a obra tem vida; pois sua sombra se movimenta, aumenta de tamanho, diminui, fica mais evidente ou se apresenta quase como uma mera sugestão de sombra.
         Olhar para essa justaposição inaugural de um novo modo de fazer arte, por meio de sua sombra, é como que investigar os rastros que formalizaram a estrutura como ela é. Escura, mutável, irresponsavelmente avessa à ideia de representação dos elementos da composição, a sombra, misteriosa, sempre nos prega peças se o caso é tentar entender a obra a partir dela.
         A sombra é estar ali e aqui.   
         A sombra é um antes e um depois.
         Um banquinho e uma roda de bicicleta são o que são e ainda assim.

II
Uma roda de bicicleta preta é uma roda de bicicleta preta.
Um banquinho branco é um banquinho branco.
Uma roda de bicicleta preta em cima de um banquinho branco não é uma roda de bicicleta preta em cima de um banquinho branco.

III

         Não podemos sentar nesta roda de bicicleta ou pedalar de banquinho. Juntos, estes dois elementos são, em verdade, um novo elemento.
         Quem sabe alguém que passe andando por esta estrutura se negue a perder tempo para entendê-la. Quem sabe a peça não desestabilize mais as formas prontas dos críticos mais respeitados. Talvez as crianças desejem brincar com a coisa toda e os adultos, secretamente, pensem serem capazes de criar coisas do gênero. 
         Dizem que é perfeitamente possível repetir esta montagem infinitamente. Um diâmetro de roda de aproximadamente 64 cm. Um banquinho de aproximadamente 60 cm. E basta colocá-los na posição indicada. O seu truque escapa à lógica da arte tradicional que evita a imitação. Pois, trata-se, em todo caso, sobretudo, de um conceito.         
         É claro que ocorre de imitadores fazerem justaposições variadas de outros objetos de indústria, às vezes, até mesmo elaboradas, porém, dificilmente conseguem o mesmo efeito.
     Escritores excêntricos tentam, sem sucesso, descrevê-la da melhor maneira possível. Há sempre uma perda. Obviamente, como não poderia ser de outro modo, algo escapa às palavras e tudo que se pode fazer é contemplá-la.  
Mas, um pensamento radical é deixar a Roda de Bicicleta como está. Perdida em um dos salões de galeria. Apenas mais uma peça entre peças. Deixá-la, ali, esquecida em sua improbabilidade.
Deixar que a luz do ambiente modele sua sombra. Aguardar que a luz solar projete no chão e na parede uma imagem como em um relógio de sol.
E, inevitavelmente, perceberíamos em sua sombra o movimento lento do objeto estático. Criando caso, certamente, pois, em verdade, sua sombra é, sempre, um momento do agora.

IV

A sombra da roda de bicicleta preta não é a roda de bicicleta preta.
A sombra do banquinho branco não é o banquinho branco.
A sombra de uma roda de bicicleta preta em cima de um banquinho branco é uma roda de bicicleta preta em cima de um banquinho branco.

V

Já pensei, algumas vezes, em tentar derrubar a famosa justaposição. Duvido que a roda de bicicleta esteja solta sobre o banquinho. Civilizado, quando a vi pela primeira vez, tentei soprar o mais forte que conseguia, um sopro de plenos pulmões, para ver se a estrutura se movia de algum modo.
Mas, a roda simplesmente não se movimentava.
Depois, acabei por perceber que, mesmo que conseguisse destruir a lógica da estrutura, sua sombra provavelmente não se alteraria. Ficaria ali, enigmaticamente, colada ao chão.
Trata-se de uma obra que não proporciona qualquer concessão. O sucesso na destruição em nada modificaria a sua força e o seu alcance. Sua sombra já estava impressa na minha mente e na história da arte.
Curiosa maneira de perceber que a arte é uma forma absoluta de dizer “não”.
         

segunda-feira, 29 de maio de 2017

Golconda, 1953 (Magritte) ou Chuva de Mim Mesmo




I

         Um dia desses, essa quase interminável chuva de mim mesmo, essa intempérie inesperada promete acabar e poderei verdadeiramente flutuar de forma livre ainda que fragmentado em gotas de mim – serei composto de partículas bojudas que não cairão mais das alturas, mas ficarão suspensas como balões estáticos. Inertes. Simplesmente pairando em pleno ar.
         Nessa ocasião, me tornarei mais próximo daquela promessa que fiz a mim mesmo – o homem que eu queria ser antes da chuva começar. Não poderei voar, essa é uma das minhas mais tristes certezas, mas, pode ser que seja um pouco mais feliz. Pelo menos não precisarei me preocupar em derramar mais tanto de mim.

II

         Somadas as características essenciais, todas as variações, são poucas as diferenças entre as possibilidades.
         Em 71 casos, pode-se ser original. Em 50, a divisibilidade é por 2, 5, 10, 25 e 50 (ser divisível por 2 é um dos principais defeitos da imagem).
         Segundo o cálculo de alguns, é possível que se caia dos céus 121 vezes. Mas, ascender às alturas somente se dá em 23 casos.
         De qualquer modo, o sobretudo e o chapéu sempre ajudam: é evidente que, mais uma vez, se esquece o guarda-chuva em casa.

III

         Pode bem ser que a tela capture um momento, apenas um instante, de um movimento constante. Do céu para o chão, pingam homens vestidos de sobretudo e chapéu escuros; ou, do chão para o céu, ascendem homens a desafiar a gravidade.
         Se assim for, de qualquer modo, nada nos indica a velocidade do movimento, e fazer o quadro ganhar vida em nossa imaginação não garante, necessariamente, uma compreensão maior sobre sua estrutura.
         Ao olhar a imagem de longe, os inúmeros homens que compõem a tela parecem ser apenas borrões. Gotas negras a manchar o céu e os pequenos prédios de apartamentos: ocasiões do negro em um céu azul sem nuvens, em um telhado avermelhado sem telhas e em paredes de prédios cinza-claros sem portas visíveis.
         O escuro se repete, inclusive, como mancha do próprio borrão, pois, se observarmos atentamente, os homens vestidos de negro provocam sombras nos prédios que denunciam a presença do sol.
         De fato, é curioso que ninguém se atreva a abrir as janelas e que mesmo as cortinas fiquem quase completamente cerradas. Não há, aparentemente, um lado de dentro dos prédios que possa ser verificável. A lógica da imagem é completamente externa aos prédios, com os enigmáticos homens a borrar os outros elementos.
         Meramente suspensos, caindo dos céus, ou ascendendo às alturas, os homens parecem ser repetições de um mesmo personagem. Multiplicado infinitamente – tudo nos leva a crer que é impossível contar quantas variações do mesmo homem aparecem no quadro – o personagem parece não passar por nenhuma transformação em nenhuma de suas aparições, se bem que, dependendo da ocasião, apareça sob ângulos diferentes.
         Apesar de não ter, aparentemente, nada em comum com a maioria dos observadores da imagem, ele provoca identificação. Há algo nele que nos remete a nós mesmos. Não é o chapéu, nem mesmo o sobretudo, o que leva a essa sensação. É a repetição infinita que nos induz a essa tendência. Apesar de ser uma afirmação arriscada, que quase não se propõe, há algo de espelho nessa infinidade de figuras absolutamente idênticas. Mas, isso não quer dizer que esse personagem provoque os mesmos significados para cada um dos observadores da imagem.
         Os homens mais imaginativos pensam que esse homem está suspenso no ar, flutuando como uma bolha de sabão, e que bem que gostariam de experimentar essa sensação de leveza absoluta.
         Os religiosos imaginam que estão subindo da terra aos céus. Veem nessa possibilidade alguma espécie de revelação mística e ficam contentes com a imagem toda, convencidos de que encontrarão a salvação.
         Os homens que têm demônios internos mais frequentes somente conseguem imaginar a si mesmo caindo das alturas e se sentem incomodados com a ideia de que se espatifarão completamente pelos chãos.
         E existe também aqueles observadores que ao olhar para a imagem não conseguem enxergar outra coisa a não ser a possibilidade de voar. São os homens de imaginação mais solta, que encontram na arte sempre alguma possibilidade de libertação.

         No que me diz respeito, só uma coisa me incomoda de verdade. Nessa infinita multiplicação de mim mesmo, em todos os casos, eu continuo sendo eu mesmo. 

domingo, 30 de abril de 2017

Canção de Amor, 1914 (de Chirico) ou Gesto com Luva Vermelha (variação nº 2)




      Talvez se o busto de Apolo estivesse completo, com ombros e tudo, a luva cirúrgica não precisaria ficar pregada na arquitetura de uma construção geométrica. Não seria, obviamente, possível colocar a luva na escultura, afinal, bustos não têm mãos, mas pode ser que a luva vermelha ficasse solta nos ombros invisíveis de Apolo.
         A luva de borracha nos incomoda, sobretudo por ser vermelha, acostumados que estamos com uma higiene que embranquece o vestuário. Mas, ela não é o único objeto de borracha. A bola também aparenta ser feita desse material e, ali, inerte, nos induz a pensar em movimentos maiores.
       De certo modo, a bola de jogar parece caber perfeitamente na luva, como se pudéssemos segurar o brinquedo com apenas uma das mãos. Este senso de proporção acompanha o tamanho do busto. Seria possível, inclusive, usar a luva para dar um estalo na face insensível de Apolo, forçando esse Deus a demonstrar sentimentos humanos. Aquele que leva um estalo na face sempre demonstra alguma espécie de sentimento humano.
         Evidentemente, a construção geométrica que está em segundo plano do quadro é demasiado pequena, se compararmos com o tamanho dos demais objetos. Mas, sem dúvida, é o único elemento da composição que está verdadeiramente do tamanho real.
         O modo como a luva de borracha vermelha está pregada à construção é algo que incomoda. Por certo, um prego de aço é exagerado para segurar o peso de uma mera luva vermelha. É exagerado porque ela é vermelha, não por causa de seu peso.  
       A bola de jogar dá a impressão de que é preciso fazer alguma coisa com ela. Porém, é perfeitamente descartável. E se fosse preciso pintar o quadro mais uma vez, de modo absolutamente fiel à primeira versão, uma cópia completamente exata, uma segunda tela somente seria a representação adequada da original se jogássemos a bola fora.
Isso é verdade.
Não é, no entanto, por ser de borracha, nem por ser verde, que a bola é descartável. É porque ela tem um segredo, na sua inutilidade dentro da composição, que transborda o sentido da pintura como um todo.
         Se a bola de jogar fosse parar em outro quadro, uma representação exclusiva da bola de jogar, uma representação verde, como não poderia ser diferente, uma vez que é uma bola de jogar, teríamos um quadro que incomodaria mais que esta Canção de Amor. Isto porque a bola tem um segredo, na sua inutilidade dentro da nova composição, que transborda o sentido da pintura como um todo. O problema é que a pintura como um todo seria somente a representação da bola de jogar verde. Este é o segredo: a bola de jogar é verde.        
         Existe música na pintura. Trata-se, sem dúvida, de uma canção de amor. Não é o estalo na face do busto de Apolo (inadvertidamente, esta ideia é tentadora) o que pode produzir a sonoridade, provocando este Deus a se manifestar. Há algo de divertido em estapear os deuses. É o trem que passa que produz toda a musicalidade. É uma música por demais urbana, pois representa os amores na solidão das metrópoles. O ritmo da passagem do trem, um som contínuo e sedutor – uma marcha – essa é a melodia da canção. Mas, é preciso estar atento para o fato de que no exato momento em que vemos o trem ao fundo do quadro, no instante preciso em que sua presença se faz sentir, quando percebemos que a pintura estaria incompleta sem a sua representação, ouvimos, nitidamente e sem maiores avisos o seu apito.
         Este apito, singularmente curto, corresponde ao refrão da canção. 
      Algo preocupa muito na lógica da compreensão do quadro. É certamente uma questão essencial e, pode-se dizer que, após o som do apito, naquele momento em que percebemos o trem, acaba por nos intrigar profundamente pois diz respeito à direção que devemos tomar nas questões amorosas. Pode ser que seja, inclusive, o mais importante da composição: não dá para saber ao certo se o trem, ao fundo da tela, produzindo fumaça, seguirá para a esquerda ou para a direita.  

domingo, 26 de março de 2017

A Reza, 1930 (Man Ray) ou Como Contar os Dedos do Pé com o Próprio Cu




  
         Entre o claro e o escuro há um pouco de corpo. No escuro, nada podemos ver; no claro, vemos demais.
O erotismo é uma arte traiçoeira. Pode parecer, à primeira vista, que consiste em mostrar sem revelar a imagem por completo, mas, na verdade, consiste em um jogo de esconder. É o que se oculta que provoca o desejo, não o que se mostra visível.
Esta fotografia, no entanto, é erótica às avessas.
O corpo se contorce e dobrando-se sobre si mesmo dá a impressão de uma posição que, se não for impossível, é certamente improvável. Toda a obscenidade da imagem não está no que não vemos. De maneira desconcertante, é exatamente o que encobre os orifícios deste corpo o que faz a imaginação flutuar. O inusitado é que, neste caso singular, o que se vê claramente é que remete ao erótico.
Pois, há algo de excessivo em todos aqueles dedos.
Os orifícios cujas imagens nos são negadas, que poderiam apontar para o apelo sexual do instantâneo, não são, a bem da verdade, o que importa na representação. São os dedos, escancaradamente nítidos, que provocam o pensamento a tomar certas formas mais sensuais.
Os glúteos, são excessivamente redondos. Também são demasiadamente brancos. Lembram uma maçã que perdeu a cor. E na composição da totalidade da imagem, junto aos dedos que estão em escala de cinza, correspondem a uma corporalidade quase que meramente sugerida. Mas, a imagem está perceptivelmente completa, mesmo que tenha algo de menos corpo no que foi retratado.
Os pés estão juntos, mas os vemos pela metade. Estão profundamente inertes. É a sombra dos glúteos o que os coloca no limiar entre o claro e o escuro. Porém, podemos ver todos os dedos. Existe algo de profundamente obsceno em tentar contá-los. É no momento exato em que examinamos se todos os dedos estão aparentes que somos pegos por uma sexualidade menos sutil e mais evidente. Todo escândalo que advém desse jogo de somar os dedos dos pés consiste, paradoxalmente, no fato de que, nesta imagem, é o esforço de minúcia, que induz ao sexual. Na foto, os pés e as mãos são de uma nudez mais provocativa do que os orifícios que tentam esconder. É preciso perceber isso. Por trás das mãos e pés, que inclusive nos enganam quando pretendem não ter nada a ver com a posição corporal inusitada, algo de sexual se insinua. 
O sexo está no detalhe.
As mãos que pretendem esconder os orifícios são quase que exclusivamente dedos. Dedos que, ao contrário dos pés, podem se movimentar. A imagem é estática, como não poderia deixar de ser, mas, o sugestivo está justamente em imaginar estes dedos em movimento. Dedos que tentam nervosamente esconder o sexo. Existe, inclusive, uma vontade de que os dedos, dada a posição que estão, não consigam cumprir seu papel no jogo de esconde e fiquem se movimentando, uma mão sobre outra, de modo que quando conseguem cobrir uma parte do sexo, acabam, invariavelmente, por deixar outra parte comprometedora descoberta.  
Além disso, não é exatamente alguma forma de toque o que precipita uma fantasia mais imaginativa. É a disposição dos dedos.
Dedos sobre dedos.
As mãos podem até ser nervosas, mas os pés são calmos. Reclinado como em uma forma de reza, o corpo é contraditório. Os pés juntos, com seus múltiplos dedos, podem até sugerir ave-marias se o caso fosse o de rezar. Se não provocassem, maliciosamente, na sua visão, certa inclinação para verificar se todos os dedos estão realmente ali. Mas as mãos, com a sobreposição de dedos sobre dedos, denunciam evidentemente, certas vontades menos religiosas.
  


sábado, 11 de fevereiro de 2017

Rrose Sélavy, 1920/1921 (Duchamp/Man Ray) ou Mulher de Tempo Lento




  
I

         O chapéu é por demais inusitado, personalíssimo, e chega mesmo a ser ousado, quase insolente, se levarmos em consideração o fato de que é composto basicamente por figuras geométricas dispostas de uma maneira aparentemente aleatória.
         Claro que isso já é uma forma de impostura, uma vez que toda geometria que se pretenda aleatória é, em verdade, a própria negação da geometria. Há sempre um princípio organizador nas formas geométricas, elas são avessas ao caótico, de modo que basta decifrar sua lógica interna para inviabilizar a sensação de que essas formas possam ser dispostas sem alguma espécie de simetria própria.
         Porém, os desenhos no chapéu dessa mulher-enigma, basicamente compostos pelas ocasiões do negro no branco ou vice-versa, são misteriosos a seu modo e decifrar o seu padrão é tarefa difícil.
         As figuras no chapéu parecem escapar – quando fixamos uma das formas, outra delas dá a impressão de sorrateiramente começar a se ocultar.
         Por isso, talvez, alguns dizem, inclusive, que estabelecer como se deslocam essas formas, essa brincadeira de esconde, é a melhor maneira para começar a compreender essa mulher.
         Existe, na essência do chapéu, um jogo geométrico entre o visível e o invisível que potencializa o caráter misterioso da fotografia. Mas, obviamente, os defensores dessa tese – os “analistas do chapéu” (como ficaram historicamente conhecidos) – são aqueles mais tendentes a matematizar a condição humana, e se esquecem, com frequência, de investigar, na sua ânsia por delimitar quadrados, retângulos e triângulos, outros aspectos da imagem desconcertante da mulher na fotografia.

II

Olhar o próprio observador, perfurar o espectador, olhar para além e não enxergar propriamente ninguém.

III
          
         Há algo naqueles dedos que sugere indiscutivelmente a feminilidade. Não é, como poderia se pensar, o fato de serem menores e mais finos que os dedos dos homens, com suas mãos maiores e mais brutas. Tampouco é a presença dos anéis o que nos certifica que se trata de uma mulher.
          É o modo como foram capturados pelo instantâneo.
Levemente dobrados, sutis, delicados ao tocar o casaco de pele. Dedos que sugerem movimentos mais suaves, talvez menos bruscos. Dedos que fazem manha, que delongam as ocasiões, e que são menos objetivos ao cumprir a tarefa de levantar a gola do casaco de pele. Dedos de tempo lento, habituados aos caprichos próprios à atuação, sempre demorando em completar cada movimento, como se cada ação fosse uma espécie de performance.

IV

Somente uma lente objetiva poderosamente aguçada poderia registrar o exato segundo em que Rrose está propositalmente se atrasando alguns breves instantes para fazer qualquer coisa absolutamente irrelevante: tudo se passa efetivamente na cadência distendida de um momento meticulosamente alargado.

V

Toda e qualquer mulher, de maneira absolutamente manhosa, atrasaria o ato de arrumar o casaco de pele apenas alguns breves instantes só para ser registrada na fotografia como uma mulher ligeiramente manhosa atrasando o ato de arrumar o casaco de pele apenas alguns breves instantes antes de fazer alguma coisa de importância sabidamente superestimada.

VI

         É preciso não estar entendendo absolutamente nada se o caso é o de indagar se a mulher da fotografia é uma atriz ou não. Se ela está indo ao teatro ou se acaba de sair de cena.
         Em um sentido muito particular, toda mulher é ela mesma e, ao mesmo tempo está sempre em cena.
          O mais interessante da fotografia, na verdade, é outra coisa.  
Ela enigmaticamente nos lembra de algo sobre as mulheres que vez ou outra deixamos escapar e que pode passar despercebido inclusive por elas, acostumadas a simplesmente agir da maneira habitual. A fotografia é de Rrose, mas bem poderia ser de qualquer mulher representada em um momento em que se arquiteta propositalmente, mas de maneira natural, as formas corporais e espirituais que compõem aquilo que chamamos de feminilidade.
         Talvez o segredo dessa fotografia seja que ela consegue retratar perfeitamente, na captura do instantâneo, uma mulher em um momento de verdade absoluta. Em performance ou não, o que no fundo é a mesma coisa, a mulher que busca a plenitude feminina é aquela que não se cansa de atuar, no teatro da vida, de acordo com aquele sonho maravilhosamente impossível que ela mesma inventou para si.