Mostrando postagens com marcador feminismo. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador feminismo. Mostrar todas as postagens

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Pondé e as Mulheres como Objeto

O recente artigo de Luiz Felipe Pondé na Folha de S. Paulo (11/07) é uma das maiores demonstrações das distorções pelo que se passa por Filosofia no Brasil. O autor, jornalista ilustrado, com crises de filósofo, escreve como se a irreverência e a vontade de polêmica fossem sinônimos de preconceito e o mais tacanho machismo.
Em seu artigo, Pondé discorre sobre a vontade interna de toda mulher de ser tratada como um objeto. O texto não teria maiores problemas - seria mais um ensaio machista - se não fosse a pretensa análise filosófica do autor. Através de construções do tipo "cada um é cada um", Pondé enuncia sua pergunta pseudo-filosófica: como uma mulher pode ser gostosa sem ser objeto?
Para além da filosofia de boteco, que mesmo quando toca no tema das mulheres é muito mais elaborada e interessante, Pondé tece um discurso que demonstra a própria desarticulação de seu pensamento sobre o assunto. Mistura as coisas e, no mesmo artigo, é capaz de falar das bicicletas em Copenhague, da falta de educação dos europeus e do banho com pouca água... É perfeitamente possível discutir diversos assuntos em um mesmo texto. No entanto, o que ocorre na escrita de Pondé é a própria prova da falta de rigor do raciocínio. Ele não consegue fazer as conexões entre todos estes assuntos, de modo que os recados são dados como se o leitor avisado fosse quem devesse articular o que ele mesmo não fez.
O texto desastrado evoca o que há de pior no pensamento dos homens sobre as mulheres e estabelece, sobretudo, uma relação de desigualdade entre os gêneros que não poderia ser mais conservadora. Para o autor, a igualdade somente deve ser enunciada na lei porque, na realidade, as diferenças seriam o que mais importa.
Esse tipo de análise, na verdade apenas a exteriorização de uma opinião tacanha, é o que vem ganhando espaço cada vez maior em nossos jornais e revistas. Um tipo de conservadorismo que não tem vergonha de se mostrar porque se pensa protegido por uma condescendente liberdade de expressão. Nada contra o fato de que o jornalismo esteja caminhando para este lado, menos radical e libertário e, com certeza, mais reacionário e de direita. É só que a gente cansa de ler tanta bobagem travestida de inteligência. Tanto cinismo fantasiado de ironia. Tanta boçalidade fingida de irreverência.

sexta-feira, 29 de abril de 2011

A BURCA E OS DIREITOS DAS MULHERES


Não há duvida de que quando falamos em diferenças culturais estamos em terreno escorregadio. Para além de qualquer análise antropológica, qualquer pessoa razoavelmente sensata percebe que o outro, aquele que não compartilha dos mesmos pressupostos culturais que nós, deve ter suas tradições preservadas. De fato, sempre que uma cultura tenta intervir em outra a tendência é ocorrer choques, tensões e, não raro, o velho colonialismo que aparece como discurso civilizatório.
Mas existe algo de esquizofrênico no debate atual sobre a proibição da utilização da burca e do niqab na França. Acabamos lendo discursos inflamados a favor da liberdade de expressão religiosa, discursos um pouco estranhos, para dizer o mínimo, na medida em que são sustentados por argumentos da ordem dos direitos humanos. Para falar a verdade, falemos diretamente: existe um consenso quase que unânime na esquerda de que o governo francês, de direita, ultrapassou os limites do razoável e está apenas perseguindo uma certa religião tida como perigosa para os valores ocidentais.
Ocorre que colocar a palavra burca e a palavra liberdade na mesma frase é muito mais perigoso do que parece. Ainda mais no caso de sustentar tal direito a se vestir como se queira como manifestação calorosa de garantia de direitos humanos.
A burca e o niqab são, sim, manifestações culturais e religiosas. Mas não são manifestações apenas culturais, são manifestações de subserviência cultural. Representam uma cultura que inferioriza, e isso ninguém pode negar, as mulheres. Trata-se, e aqui vamos ser um pouco generalistas, de uma cultura que prevê o apedrejamento até a morte de uma mulher que for considerada adúltera.
Será que o sistema dos direitos humanos pode ser relativista até o ponto de aceitar qualquer manifestação que degrada a mulher como mero símbolo de diferenciação cultural?
A liberdade religiosa, o Estado laico, a tolerância são historicamente batalhas dificeis que o Ocidente enfrentou, mas que acabaram dando o tom da dimensão religiosa minimamente aceitável dentro de Estados que respeitam os direitos humanos. No Ocidente, uma religião que se dispusesse a sacrificar criancinhas toda sexta-feira à noite para louvar os deuses certamente seria intolerável. Isto porque o regime da tolerância, desde sua formulação lockiana, não pode tolerar qualquer coisa. Existem questões que são intoleráveis, que não estamos dispostos a abrir mão em nome da diferença cultural.
Dilacerar o órgão genital feminino pode até ser um ritual de muita importância em certos lugares, verdadeira tradição, mas acreditamos que seria completamente insustentável, tal qual o apedrejamento até a morte, em nosso sistema jurídico.
A burca, e aqui pedimos licensa aos linguistas, não é um mero signo da opressão. Outros signos, como o crucifixo e o quipá poderiam, talvez, serem considerados opressivos, dependendo dos limites de cada um. A burca, no entanto, não é signo da opressão: ela é o próprio objeto que oprime.
A igualdade de todos é principio essencial de qualquer democracia e requisito primordial de Estados comprometidos com os direitos humanos. É, inclusive, o pressuposto jurídico da liberdade religiosa. As religiões têm o mesmo valor, em um Estado laico, porque são consideradas iguais, sendo justo qualquer caminho que os homens busquem para chegar aos céus. Porém, ao colocar a mulher como ser inferior ao homem, e em alguns casos, até como impura, não estamos jogando a lógica da igualdade.
Poderia-se objetar que quase todas as religiões fazem distinções entre homens e mulheres. Isso é verdade. Mas a consequência lógica disso não é que, portanto, nada devemos fazer. Pelo contrário, está mais do que na hora de colocarmos esta questão em debate.
Talvez, um dia, comecemos a debater a vestimenta de freiras, padres e monges. O debate que se coloca diante da sociedade, no entanto, vai além da lógica da idumentária religiosa. Trata-se de uma questão de direito. E não é porque não discutimos estas vestimentas que devemos também não discutir a burca utilizada pelas mulheres. A agressão, nesse caso, é estendida a todas, não importando o grau de relacionamento que queiram ter com a divindade. As freiras, por outro lado, escolheram dentre inumeras possibilidades de vida a via religiosa.
A história, nessa discussão, nada explica. A tradição não aponta para valores positivos que devem ser levados em consideração como requisitos fundamentais da identidade de uma cultura. Se é verdade que a burca tem toda uma história tradicional que sustenta a sua utilização, por outro lado, essa história é a do mais puro preconceito, uma história com a qual não devemos compactuar. A história não pode servir de argumento para a  legitimação da iniquidade.   
As mulheres sabem melhor o que tudo isso significa. É o velho, tradicional e cultural machismo o que está em jogo. Argumentar que, no caso islâmico, elas usam porque querem, é tripudiar sobre a inteligência das mulheres. No mínimo, caso se visite por turismo o Afeganistão, as mulheres teriam problemas com suas vestimentas – a cultura local não abriria exceções para as ocidentais que seriam tidas como impuras, pervertidas e assim por diante. Por que, então, em um Estado que pretenda cumprir os direitos humanos as mulheres teriam que obedecer a lógica da diferença de gênero e da submissão?
Não se trata, em todo caso, de proteger as mulheres que usam a burca contra si mesmas. A liberdade de usar esta idumentária é uma falsa liberdade. Tudo se passa como se o discurso dos direitos humanos dissesse: “está vendo, somos tão libertários que até permitimos que vocês demonstrem sua cultura machista.” Que espécie de liberdade seria essa de se utilizar como roupa justamente o que oprime?
A diferença é um valor a ser preservado, quanto a isso não há duvida. Desde que não signifique desrespeito à igualdade jurídica de todos. O limite entre o aceitável e o inaceitável muitas vezes fica obscurecido quando tratamos de questão tão difícil e importante para a discussão de valores humanistas. Os direitos humanos, no entanto, não servem apenas como abstrações. Devem representar politicamente e juridicamente a dignidade de todas as mulheres. A verdadeira liberdade de usar qualquer vestimenta, por mais curioso que pareça, para as mulheres que eram obrigadas a usar a burca por questões culturais, é fruto de uma lei que proibe a utilização de uma espécie de vestimenta. Não existe, de fato, liberdade de escolha para as mulheres muçulmanas se não se dispor de uma lei sobre o assunto. O universo familiar, as amarras culturais, as obrigações religiosas impediriam esta mulher de escolher efetivamente o que pretende usar como roupa nas ruas. É a escolha da não-escolha, argumento insustentável do ponto de vista de uma verdadeira liberdade.  
O discurso que denuncia a burca como símbolo de opressão não é novo e também não constrói seu estatuto nas bandeiras tradicionais do feminismo. É a feminilidade que está em jogo. Mas a feminilidade que toda a mulher tem direito. O que os homens precisam perceber é que as diferenças que realmente importam não discriminam, de forma alguma, a mulher enquanto ser inferior. Pelo contrário, constroem a sua identidade própria.
O caso, também, não pode se limitar simplesmente a ideia de que a mulher com o rosto coberto representa um perigo para a segurança pública. Pensar assim é diminuir a questão. O problema não é o de identificar o inimigo, mas sim o de permitir a mulher formar e criar a identidade que bem quiser para si mesma. As roupas, assim, se mostram elementos de diferenciação em que cada uma das mulheres escolhe, de verdade, o que usar. Em outras palavras, o caso não diz respeito a segurança do Estado francês, mas aos direitos das mulheres que habitam a França.
É claro que os conservadores franceses adoraram a nova lei. Para eles, no entanto, não é uma questão de princípios, é puro preconceito e xenofobia. No entanto, para criticarmos tal governo, não podemos abrir mão da verdadeira igualdade entre os sexos, da liberdade que não dá tiro no próprio pé. A única saída viável da esquerda atual, nos parece, é sempre não admitir relativismos no que tange aos direitos humanos.