III – Um voo profundo
Um
abutre estava bicando os meus pés. Já havia despedaçado as minhas botas e as
meias, agora atacava os pés. Bicava-os com ferocidade, circundava-me sem
trégua, e continuava o trabalho.
Franz Kafka, O
Abutre
Não
sabemos nada sobre os motivos que levaram o abutre a bicar violentamente o
narrador. A história já começa com os ataques deste pássaro. Pode ser que o
personagem tenha cometido algum crime contra os deuses, tal qual Prometeu,
condenado por ter roubado o fogo de Zeus e tê-lo entregue aos mortais, a ter o
fígado comido eternamente por uma águia. Porém, em se tratando de Kafka, é bem
possível, talvez quase certo, que o narrador não tenha cometido mal algum. O
abutre simplesmente chegou e começou a bicar, conforme relata o personagem. A
história inteira pode ser resumida em poucas frases. Um abutre que bicava
ferozmente os pés do narrador escuta uma conversa entre esse e um cavalheiro. O
cavalheiro, com a intenção de ajudar o torturado, se propõe a pegar uma
espingarda para matar o abutre. Porém, compreendendo perfeitamente toda a
armação para liquidá-lo, em um último ataque fulminante, o abutre arremessa,
qual lança, o bico pela boca do protagonista.
O
que chama a atenção neste breve conto de Kafka é o ritmo da narrativa, uma
capacidade de contar uma história inteira em poucas linhas e estabelecer uma
quebra com a lógica das imagens surpreendente. Ao longo da narração, somos
levados a imaginar concretamente cenas possíveis, porém, o conto termina com
uma abstração, uma verdadeira negação da imagem e provoca a impressão de que
tudo que podemos fazer é compreender, mas não imaginar.
Podemos
visualizar claramente a figura do abutre a dar voltas pelo céu e investir com
seu bico nos pés do personagem principal. Também a conversa entre o narrador e
o cavalheiro, conversa em que esse promete pegar uma espingarda e liquidar com
o pássaro, pode ser perfeitamente idealizada. Porém a história, em dado
momento, impede a possibilidade de representarmos imageticamente o que nos é
narrado. É possível até imaginar o voo preciso em que o abutre mergulha dentro
da boca do narrador: uma imagem violentíssima. No entanto, as últimas palavras
são decisivas para a avaliação do valor deste texto: Caí para trás, aliviado ao sentir que ele se afogava irreparavelmente
no meu sangue que inundava todos os abismos, cobria todas as praias.
De
maneira surpreendente, o abutre que a princípio parecia que liquidaria o
personagem-narrador, até mesmo porque se arremessa após inclinar-se bem para trás a fim de tomar impulso e
mergulhar como uma lança o bico pela
garganta do personagem, nas últimas linhas do conto, morre afogando-se irreparavelmente. Mas, como imaginar de
maneira efetiva um abutre se afogando sem salvação no sangue dentro de um
homem? Um afogamento em que o sangue deste homem inundava todos os abismos, cobria todas as praias.
Kafka,
ao fim de seu conto, na última sentença, inverte a lógica estabelecida durante
toda a narrativa. Não só porque nos nega brilhantemente a possibilidade de
compreendermos e representarmos o desfecho final por meio de imagens, mas
porque inverte a lógica da violência, estabelecendo no sangue, por dentro do
homem, a possibilidade de destruição daquilo que o atacava. Existe aqui uma
verdadeira fusão da corporalidade. O inimigo externo, o abutre, se infiltra por
dentro do homem após penetrar em voo rápido e certeiro pela boca do narrador.
Torturador e torturado identificam-se, ao fim da história, corporalmente, no
limite do próprio sangue, e, talvez somente assim, possam compartilhar do mesmo
implacável destino.
O
personagem-narrador sente-se, de algum modo, aliviado. Ninguém mais lhe bica os
pés. O abutre se afogou irreparavelmente
dentro de seu sangue. A história, então, pode
terminar abruptamente. Mas é claro que, dentro da estrutura narrativa montada
por Kafka, a morte do abutre não significa a vida do narrador.