Os
pássaros de Kafka
I – O sentido da liberdade
Uma
gaiola saiu à procura de um pássaro.
Franz
Kafka, Aforismos
A frase propõe uma imagem
inusitada. Não é próprio da natureza das gaiolas se moverem, são objetos
inanimados, e, menos ainda, saírem a procurar justamente o que vão oprimir.
Mas, é claro que em Kafka, isto explica pouco. Alguns de seus objetos têm uma
tendência a se comportar de maneira mais viva, assim como seus animais também
podem expressar características humanas. Neste caso, porém, a postura da gaiola
nos incomoda profundamente. De certo modo, se os pássaros inicialmente apontam
para a liberdade, uma vez que podem voar, as gaiolas representam as estruturas
fixas que prendem, que cerceiam, que impedem voos maiores. No entanto, na
frase, tudo se dá como se as gaiolas, que normalmente são imóveis, pudessem
empreender efetivamente deslocamentos. E contrariando uma inércia essencial,
esta estranha gaiola, um arcabouço de aprisionamento, parece sair atrás de seu
próprio prisioneiro.
Esta absurda caçada, no entanto, é
ainda mais intrigante do que inicialmente se supõe. Não se trata de procurar o pássaro, como se na lógica desta busca
insólita, pelo menos esse animal fosse culpado por alguma espécie de desvio.
Tudo leva a crer que a gaiola saiu para prender um pássaro qualquer. Como se o que importasse fosse cumprir com sua
função de prisão, mesmo que para isso precise encontrar um pássaro aleatório, que
não tenha feito nada demais – exceto, talvez, voar. A estrutura de dominação
precisa obrigatoriamente funcionar, neste caso, pouco importando a existência
de alguma espécie de motivação ou justificação. Talvez por isso também seja
possível identificar algo de burocrático na frase. Na imagem que elaboramos ao
tentar representar o sentido do aforismo, a gaiola parece ser mais importante
que o pássaro. Uma estrutura pronta que lhe é superior, e que acaba por operar
uma lógica altamente complexa ao alçar voo, apesar de aparentar sair à procura
de um pássaro distraidamente.
Nesta imagem desconcertante, a
essência da natureza dos pássaros, que é a liberdade de poder voar, fica até
diminuída frente à possibilidade de voo da gaiola e o que isso significa. Pois,
o estranho e o que perturba prontamente na frase não é, na verdade, a imagem de
um pássaro encerrado dentro das grades de uma gaiola – imagem que,
infelizmente, estamos acostumados –, mas a ideia de que essa estrutura de
aprisionamento possa se mover e opere uma perseguição gratuita a um ser que se
encontre livre. Isto aponta para algo
extremamente opressor nesta história que é contada em uma única linha, e que de
certa forma, acaba por nos levar a perguntar: não é assim mesmo que funcionam
as nossas estruturas de dominação? Talvez o que incomode mesmo no aforismo seja
menos a sua violência, apesar dela ser absolutamente devastadora, mas a certeza
de que, de algum modo, a frase está colada irremediavelmente ao real. É claro
que se trata de uma situação bizarra, como qualquer um pode notar, e é
justamente por isso que parece ser plenamente possível que aconteça.
Em um caso como esse, ao contrário
do que se poderia imaginar, toda a impostura parece vir, na verdade, dos pássaros.
Existe um atrevimento em se propor a alçar voo. Bem pode ser que uma gaiola,
inexoravelmente, já estivesse destinada a algum deles por princípio – quem
garante que voar, em si mesmo, já não constitui alguma espécie de culpa? Mas,
quanto a isso, é óbvio que não podemos ter certeza. Kafka jamais seria claro a
respeito disso. A única coisa que parece ser correta é que não são os pássaros
que tornam necessárias as gaiolas para aprisioná-los, mas o contrário, a
existência das gaiolas é que viabiliza uma potencial liberdade aos pássaros.
Reverso de mundo, em Kafka, a opressão é anterior à liberdade.
II – O céu-deserto
As
gralhas afirmam que uma só poderia destruir o céu. Não há dúvida quanto a isso,
mas não prova nada contra o céu, pois os céus significam justamente:
impossibilidade de gralhas.
Franz Kafka, Aforismos
A
sequência das frases é precisa e resolve todo o problema da liberdade em apenas
duas afirmações. Metáfora de nós mesmos, as gralhas de Kafka simbolizam nossas
pretensões e limitações neste aforismo singular que opera uma lógica que a
princípio parece contraditória, mas que no fundo, é verosímil apesar de ser
perversa. Na primeira frase, temos a impressão de que as gralhas têm uma
liberdade plena. Desafiam o ambiente em que podem empreender o voo. Uma forma
de ser livre absoluta, maior que o próprio céu, pois decorre de um princípio de
natureza primordial. Mas, claro que isso é meramente o discurso das próprias
gralhas, o nosso discurso. Animais que, pelo que podemos perceber ao ler a
primeira frase do aforismo, estão corretos em sua afirmação pretensiosa - destruir o céu. O que não significa efetivamente
a concretização do próprio voo. Porém, é na segunda frase que o aforismo se
resolve. Sem maiores avisos, essa frase contraria prontamente a lógica da frase
anterior e finaliza a questão quase que com uma sentença de caráter moral: os céus significam justamente:
impossibilidade de gralhas.
Curiosa maneira de nos fornecer
imagens. Em um primeiro momento, após a leitura da primeira frase, enchemos o
céu de pássaros. A imagem de uma única gralha, inclusive, a voar livremente
pelo céu, nos autoriza a pensar em um mundo em que a liberdade é plena. Porém,
a segunda frase, por meio de uma conclusão lapidar, nos desorienta. A sentença
faz mais que meramente dizer que as gralhas não podem voar livremente. É uma
afirmação que estabelece o próprio sentido dos céus. Proclama que o significado
dos céus é a impossibilidade das gralhas. A imagem que a segunda frase nos
fornece é desanimadora. Após encher o céu de pássaros e posteriormente reduzir
para um único animal dessa espécie, o movimento que nossa imaginação realizou
após a leitura da primeira frase do aforismo, somos obrigados a imaginar um céu
vazio, destituído de pássaros, um céu sem vida. Afinal, ao que tudo indica, a
frase não apenas inviabiliza a liberdade de voar das gralhas, mas nos informa
que as gralhas, em si mesmas, são plenamente impossíveis por causa dos céus. Subtrai-se, portanto, não apenas a liberdade,
mas a própria existência. E esse é o verdadeiro significado do céu, o motivo
para qual existe, sua função conforme nos é informado – o céu é um deserto.
Mas, claro que, apesar disso, o céu
está logo ali, neste aforismo. Existe potencialmente como algo para
vislumbrarmos. Kafka, certa vez, ao ser questionado se não havia esperança no
mundo, assim respondeu: “Sim, há muita esperança. Mas não para nós.” Assim, o
real sentido do céu é algo mais opressor do que as gralhas podem supor, o
oposto do que acreditamos. Sua imagem não pode mais representar a liberdade,
mas sim, ao contrário, ela é a tradução da mais completa impossibilidade de
existir e ser livre. Em Kafka, o céu não tem horizonte.
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