I
A arte é tudo que for o caso.
Esta roda de bicicleta disposta sobre
um banquinho branco é perfeitamente inútil. Este
banquinho branco sob uma roda de bicicleta é perfeitamente inútil.
Talvez tivessem utilidade prática como
objetos de indústria se estivessem separados, mas daí não fariam uma sombra,
dependendo do ângulo da luz, absolutamente improvável.
Se os bancos servem para se sentar e as
rodas de bicicleta para se mover, existe algo nesta construção que não leva a
nenhuma dessas possibilidades. Esta montagem é contraditória: há algo nela de
potência de movimento, mas está profundamente inerte.
Não é bem uma escultura o que se
propõe, apesar de situar-se no espaço. É um evento singular. Um evento do novo.
Na física, os eventos são quadridimensionais. Somam à altura, à profundidade e
à largura, o tempo. Os eventos situam hora e local. Esta Roda de Bicicleta é um evento malcriado. Situa-se no espaço, mas
nega a inércia e também o movimento. Seu tempo é sempre o do instante. Mas, bem
pode ter sido ontem e, sem dúvida, persistirá para amanhã e depois.
Sem ser escultura, a montagem, que não
tem assinatura aparente, causa impacto por ser, em sua materialidade dos usos
cotidianos, apenas uma justaposição vertical. Trata-se de um deslocamento, este
de ser outra forma de arte, que devolve a ela a sua dimensão mais importante:
um certo ar de escândalo. Sua força artística está em uma rejeição: se nega a
ser objeto de consumo ou de indústria, apesar de ser composta por elementos de
consumo e indústria.
É só uma ideia.
A luz do ambiente, com o passar do dia,
provoca transformações na sombra desta peça. É curioso olhar para arte por meio
de sua sombra. Há algo de original nisso também. A luz, dependendo do horário,
incide sobre a montagem com ângulos e intensidades diferentes. O que provoca as
mais variadas formas de distorção em sua sombra. E pode se ter a nítida
impressão que a obra tem vida; pois sua sombra se movimenta, aumenta de
tamanho, diminui, fica mais evidente ou se apresenta quase como uma mera
sugestão de sombra.
Olhar para essa justaposição inaugural
de um novo modo de fazer arte, por meio de sua sombra, é como que investigar os
rastros que formalizaram a estrutura como ela é. Escura, mutável,
irresponsavelmente avessa à ideia de representação dos elementos da composição,
a sombra, misteriosa, sempre nos prega peças se o caso é tentar entender a obra
a partir dela.
A sombra é estar ali e aqui.
A
sombra é um antes e um depois.
Um banquinho e uma roda de bicicleta
são o que são e ainda assim.
II
Uma
roda de bicicleta preta é uma roda de bicicleta preta.
Um
banquinho branco é um banquinho branco.
Uma
roda de bicicleta preta em cima de um banquinho branco não é uma roda de
bicicleta preta em cima de um banquinho branco.
III
Não podemos sentar nesta roda de
bicicleta ou pedalar de banquinho. Juntos, estes dois elementos são, em
verdade, um novo elemento.
Quem sabe alguém que passe andando por
esta estrutura se negue a perder tempo para entendê-la. Quem sabe a peça não
desestabilize mais as formas prontas dos críticos mais respeitados. Talvez as
crianças desejem brincar com a coisa toda e os adultos, secretamente, pensem
serem capazes de criar coisas do gênero.
Dizem que é perfeitamente possível
repetir esta montagem infinitamente. Um diâmetro de roda de aproximadamente 64
cm. Um banquinho de aproximadamente 60 cm. E basta colocá-los na posição
indicada. O seu truque escapa à lógica da arte tradicional que evita a
imitação. Pois, trata-se, em todo caso, sobretudo, de um conceito.
É claro que ocorre de imitadores
fazerem justaposições variadas de outros objetos de indústria, às vezes, até
mesmo elaboradas, porém, dificilmente conseguem o mesmo efeito.
Escritores excêntricos tentam, sem
sucesso, descrevê-la da melhor maneira possível. Há sempre uma perda.
Obviamente, como não poderia ser de outro modo, algo escapa às palavras e tudo
que se pode fazer é contemplá-la.
Mas,
um pensamento radical é deixar a Roda de
Bicicleta como está. Perdida em um dos salões de galeria. Apenas mais uma
peça entre peças. Deixá-la, ali, esquecida em sua improbabilidade.
Deixar
que a luz do ambiente modele sua sombra. Aguardar que a luz solar projete no
chão e na parede uma imagem como em um relógio de sol.
E,
inevitavelmente, perceberíamos em sua sombra o movimento lento do objeto
estático. Criando caso, certamente, pois, em verdade, sua sombra é, sempre, um
momento do agora.
IV
A
sombra da roda de bicicleta preta não é a roda de bicicleta preta.
A
sombra do banquinho branco não é o banquinho branco.
A
sombra de uma roda de bicicleta preta em cima de um banquinho branco é uma roda
de bicicleta preta em cima de um banquinho branco.
V
Já
pensei, algumas vezes, em tentar derrubar a famosa justaposição. Duvido que a
roda de bicicleta esteja solta sobre o banquinho. Civilizado, quando a vi pela
primeira vez, tentei soprar o mais forte que conseguia, um sopro de plenos
pulmões, para ver se a estrutura se movia de algum modo.
Mas,
a roda simplesmente não se movimentava.
Depois,
acabei por perceber que, mesmo que conseguisse destruir a lógica da estrutura,
sua sombra provavelmente não se alteraria. Ficaria ali, enigmaticamente, colada
ao chão.
Trata-se
de uma obra que não proporciona qualquer concessão. O sucesso na destruição em
nada modificaria a sua força e o seu alcance. Sua sombra já estava impressa na
minha mente e na história da arte.
Curiosa
maneira de perceber que a arte é uma forma absoluta de dizer “não”.