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sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

Vivendo em um fio de navalha: Kafka, (anti) filósofo do direito


Vivendo em um fio de navalha: Kafka, (anti) filósofo do direito
Rodrigo Suzuki Cintra

(A narrativa objeto desse ensaio, pelo qual o texto inicia, está completa e foi escrita por Franz Kafka. A tradução, intitulada “Sobre a questão das leis”, é de autoria de Modesto Carone. Os comentários posteriores aos três parágrafos que seguem são meus e projetam um esboço de interpretação.)

Nossas leis não são universalmente conhecidas, são segredo do pequeno grupo de nobres que nos domina. Estamos convencidos de que essas velhas leis são observadas com exatidão, mas é extremamente penoso ser governado segundo leis que não se conhecem. Não penso neste caso nas diferentes possibilidades de interpretá-las nem nas desvantagens que há quando apenas indivíduos e não o povo inteiro podem participar da sua interpretação. Talvez essas desvantagens não sejam tão grandes assim. As leis são de fato muito antigas, séculos trabalharam na sua exegese, certamente até essa interpretação já se tornou lei, na verdade continuam a existir as liberdades possíveis no ato de interpretar, mas elas são muito limitadas. Além do mais é evidente que a nobreza não têm motivo algum, na interpretação, para se deixar influenciar pelo interesse pessoal em detrimento do nosso, pois as leis foram desde o início assentadas para os nobres, a nobreza está fora da lei e precisamente por isso a lei parece ter sido posta com exclusividade nas mãos da nobreza. Naturalmente existe sabedoria nisso – quem duvida da sabedoria das velhas leis? –, mas é também um tormento para nós, provavelmente algo inevitável.
            Aliás essas leis aparentes podem na realidade ser apenas presumidas. É uma tradição que elas existam e sejam confiadas à nobreza com um segredo, mas não se trata nem pode tratar-se de mais que uma tradição antiga e, por sua antiguidade, digna de fé, pois o caráter dessas leis exige também que se mantenha o segredo da sua existência. Mas se nós do povo acompanhamos com atenção desde os tempos mais remotos as ações da nobreza, possuímos a respeito delas registros dos nossos antepassados, demos a esses registros um prosseguimento consciencioso e acreditamos reconhecer nos inúmeros fatos certas normas que permitem concluir esta ou aquela determinação histórica, e se procuramos nos orientar um pouco por essas conclusões filtradas e ordenadas da forma mais cuidadosa em relação ao presente e ao futuro – então tudo isso é incerto e quem sabe somente um jogo mental, uma vez que essas leis, que aqui tentamos adivinhar, talvez não existam de maneira alguma. Há um pequeno partido que realmente pensa assim e busca provar que, se existe uma lei, ela só pode rezar o seguinte: o que a nobreza faz é a lei. Esse partido vê apenas atos de arbítrio dos nobres e rejeita a tradição popular que, na sua opinião, só traz proveitos diminutos e casuais e na maior parte das vezes, pelo contrário, grave prejuízo, já que ela dá ao povo uma segurança falsa, enganosa, que leva à leviandade diante dos acontecimentos vindouros. Esse prejuízo não deve ser negado, mas a esmagadora maioria do nosso povo vê a causa disso no fato de a tradição ainda não ser nem de longe suficiente, havendo portanto necessidade de que muito mais nela seja pesquisado; de qualquer maneira, por mais gigantesco que pareça, seu material ainda é muito pequeno e séculos terão de passar antes que a tradição acumulada baste. O sombrio dessa perspectiva para o presente só é iluminado pela crença de que virá um tempo no qual – de certo modo com um suspiro – a tradição e o seu estudo chegarão ao ponto final, que tudo terá ficado claro, que a lei pertencerá ao povo e que a nobreza desaparecerá. Isso não é dito, porventura, com ódio da nobreza – em absoluto e por ninguém. Odiamos antes a nós mesmos porque ainda não podemos ser julgados dignos da lei. E na verdade foi por essa razão que aquele partido – muito sedutor em certo sentido –, que não acredita em nenhuma lei propriamente, permaneceu tão pequeno: porque também ele reconhece plenamente a nobreza e o seu direito à existência.
            A rigor só é possível exprimi-lo numa espécie de contradição: um partido que rejeitasse, junto com a crença nas leis, também a nobreza, teria imediatamente o povo inteiro ao seu lado, mas um partido como esse não pode nascer porque ninguém ousa rejeitar a nobreza. É nesse fio da navalha que nós vivemos. Certa vez um escritor resumiu isso da seguinte maneira: a única lei visível e indubitavelmente imposta a nós é a nobreza – e será que queremos espontaneamente nos privar dela?

*

Escrito inclassificável, “Sobre a questão das leis” opera nos limites fronteiriços entre dissertação-argumentativa, ensaio filosófico e prosa narrativa, seu ritmo bem arquitetado se resolve em meros três parágrafos, mas, apesar da economia do texto, sua potência formal e seu conteúdo desconcertante desconstroem as estruturas do poder por dentro. O texto se refere à uma comunidade específica (seu povo, sua nobreza e suas leis); mas é preciso não estar entendendo nada se o caso é o de não perceber que as reflexões do narrador, apesar de serem particularíssimas, bem podem servir para interpretar todas as comunidades em geral.      
A técnica de narrar é certeira e se utiliza de um duplo recurso. Ao mesmo tempo em que tudo parece ser um mero desabafo casual de um membro do povo, certas afirmações são por demais rigorosas para serem ditas sem caso pensado. No vai e vem que estrutura o texto, uma forma dialética de se orquestrar o escrito, o narrador nunca foge do tema principal, aquele que dá título à narrativa (“Sobre a questão das leis”), se bem que constata com uma percuciência notável que a questão das leis é derivada de uma outra questão.  
A reflexão do narrador sobre às leis pode parecer, a princípio, um conjunto de ideias absolutamente corriqueiras sobre as características das leis de sua comunidade, mas, com a acuidade de analista, o narrador enxerga na lei a verdade sobre sua estrutura, função e sentido: a nobreza.
Nesse caso específico, Kafka não brinca de esconder por trás da lei um significado oculto ou misterioso, um inacessível do sentido; está tudo lá: o problema da lei, no fundo, é o problema da nobreza.
Pode-se dizer, assim, que o narrador é especialmente perspicaz: ele é aquele que sabe. Percebe que as leis não foram feitas para o povo, percebe que são instrumentos de dominação de classe, relaciona o conteúdo das leis ao capricho dos nobres, pondera se as leis não são os próprios nobres em si (uma daquelas identificações bizarras próprias ao sistema do capital), e, por fim, reflete sobre a ideia de revolução, uma vez que acabar com a lei é acabar com a própria nobreza.
O raciocínio que estrutura o percurso pelos parágrafos do texto é especialmente bem construído e pode bem ser que denuncie a progressiva tomada de consciência do narrador sobre o fundamental por trás da questão das leis. A frase inicial (Nossas leis não são universalmente conhecidas, são segredo do pequeno grupo de nobres que nos domina), impregnada de luta de classes, enuncia a dominação e, não é preciso muito, para perceber que as leis cumprem um papel importante para a estruturação do poder na comunidade específica a que o narrador pertence. Apesar de não serem conhecidas, as leis funcionam com perfeição para a classe específica dos nobres. Porém, gradativamente, ao longo dos três parágrafos que compõem a totalidade da narrativa, por meio do cálculo preciso do narrador, o problema das leis começa a se mostrar como o problema da nobreza.
O primeiro parágrafo do texto descreve as dez características das leis da comunidade do narrador, são elas:
1)      Secretas: não são universalmente conhecidas, são segredo do pequeno grupo de nobres;
2)      Antigas: essas velhas leis, As leis são de fato muito antigas, séculos trabalharam na sua exegese;
3)      Efetivas: são observadas com exatidão;
4)      Interpretáveis: diferentes possibilidades de interpretá-las;
5)      Tendenciosas: as leis foram desde o início assentadas para os nobres;
6)      Particularistas: a nobreza está fora da lei;
7)      Parciais: [a lei] posta com exclusividade nas mãos da nobreza;
8)      Sábias: naturalmente existe sabedoria nisso, Quem duvida da sabedoria das velhas leis?;
9)      Incômodas: mas é também um tormento para nós;
10)  Inevitáveis: provavelmente algo inevitável;
O curioso por trás dessas dez características que compõem a descrição do narrador sobre as leis de sua comunidade é que nenhum desses elementos corresponde ao discurso liberal tradicional sobre às leis. Certamente que as leis para o liberalismo devem ser: (1) Públicas; (2) Novas (adaptadas ao progresso contínuo); (3) Precisas (é necessário saber qual a sua função exata); (4) Interpretáveis (não apenas pelos indivíduos da nobreza, mas passíveis de serem interpretadas por todos); (5) Neutras; (6) Universais; (7) Imparciais; (8) Sábias (mas, de uma sapiência que fuja ao discurso de classe); (9) Adequadas; (10) Evitáveis (o sujeito deve ter a capacidade de se portar em acordo ou desacordo com a lei, conforme sua livre escolha).  
Logo no primeiro parágrafo, Kafka já deixa claro que não reproduzirá o conteúdo dos manuais protocolares de direito que dizem que a lei deve ser pública, neutra, universal... O leitor, nas primeiras linhas, já entra de cabeça no universo desigual da legislação daquela comunidade a qual o narrador pertence.
Nas idas e vindas argumentativas da narrativa, podemos dizer que o narrador faz uma abstração cada vez maior sobre a questão das leis, mas isso não leva a um deslocamento etéreo, descolado do real. Ao contrário, com uma consciência de classe cada vez mais aguçada, o narrador, membro do povo, vai inserindo as leis na concretude própria das relações de poder que imperam no real. Desde a primeira frase do texto, a nobreza não se esconde propriamente por trás das leis, isso não é sequer necessário. A denúncia e a reflexão do narrador não vão passar exatamente por esse argumento: são mais elaboradas.
Esquematicamente, na lógica do primeiro parágrafo, tudo se passa como se as leis por serem exclusividade da nobreza, servissem à dominação de classe. A lei, nesse caso, é instrumento para a dominação do povo pelos nobres, uma vez que fica claro que a nobreza é executora da lei. A lei, aqui, ao contrário do que ocorre com o discurso liberal sobre a legalidade, não se apresenta como ferramenta que permite acobertar a luta de classes inerente a um mundo em que existe o povo e a nobreza. A nobreza, nesse caso, não se utiliza de um aparato legal pretensamente igualitário para operar a dominação. A igualdade não é pressuposta em nenhum momento do texto.
No parágrafo seguinte, após algumas reflexões sobre a existência ou não das leis, que nos enganam um pouco, mas que depois retomam o fio da meada, uma outra ideia se apresenta. A lei não é um dispositivo que separa as classes sociais, é o próprio capricho e interesse da nobreza. Não se trata apenas, então, de um mecanismo de dominação. Como o que a nobreza faz é a lei, as ações de uma classe social específica se universalizam como se fossem ações de todos. Fica a impressão de que o capricho dos nobres se transforma, em termos de dominação, na própria lei. A lei não apenas separa povo/nobreza; ela, aqui, se mostra o modo como os interesses da nobreza colonizam a conduta do povo, afinal, a nobreza está de fora da lei, enquanto o povo deve segui-la à risca. Isso é ideológico: os caprichos são elevados à altura de lei.
O terceiro parágrafo arremata a coisa toda: a única lei visível e indubitavelmente imposta ao povo é a nobreza. Agora, não é apenas uma lei que serve à dominação de classe (1º parágrafo), os interesses de classe elevados à potência de lei (2º parágrafo), mas sim que a classe dos nobres é a própria lei. Em outras palavras, a única lei que impera naquela comunidade, como em todas as outras por sinal, é a de que a desigualdade existe e deve ser perpetuada. Dizer que a nobreza é a lei não é apenas dar autoridade a essa classe social; é dizer que da efetividade de sua dominação decorre a estrutura legal que torna possível sua dominação. Tudo se passa como se pelo fato de ela mandar na comunidade toda no campo do real, automaticamente ela manda também no campo do legal. Uma obviedade, na prática, na medida em que a verdade da comunidade em questão é a de que existe nobreza e existe povo, ou seja, a desigualdade é a característica principal da coisa toda.
Mas, o narrador, membro do povo, leva ao limite sua percepção da problemática das leis. Se ele enuncia, no primeiro parágrafo, que existem desvantagens quando apenas indivíduos e não o povo inteiro podem participar na interpretação das leis, situando a noção de individualidade como atributo exclusivo da nobreza, e não do povo – uma análise bem acertada –, no segundo parágrafo, em um lampejo de esperança, diz que haverá um tempo em que a lei pertencerá ao povo e a nobreza desaparecerá. Isso pode parecer, inicialmente, quase que revolucionário: leis que imperam para todos e ausência da nobreza. Porém, se levarmos às últimas consequências a própria lógica que o narrador nos permite traçar quando lemos essa narrativa inusitada, permeada de uma forma argumentativa que não nos dá opção que não seja raciocinar dialeticamente, a verdadeira revolução traria, junto com a desaparição da nobreza, a extinção de toda forma de lei.
A tomada de consciência do narrador, sua percepção de classe, sua análise profunda sobre a questão das leis, não se completa, no entanto, até que ele formule uma outra estratégia. Apesar de ser um membro qualquer do povo – um sem-nome –, é um verdadeiro analista do poder, sabe muitas coisas e pondera sobre a questão das leis de um modo especialmente aguçado. Suas observações são especialmente afiadas e questionam a ordem de uma cultura inteira.
Quando enuncia o fio de navalha  em que vive o povo, quase nas linhas finais do texto, a coisa toda ganha um novo peso. A questão se coloca de uma maneira clara, mas, ele faz questão de sublinhar que o argumento só pode ser expresso numa espécie de contradição. Se surgisse um partido que rejeitasse as leis e a nobreza ao mesmo tempo, tal partido teria todo povo a seu lado. Porém, esse partido não pode nascer porque ninguém rejeita a nobreza. Tudo nos levaria a crer, portanto, que nada vai mudar nessa comunidade específica.
            A verdade é que somente quando esse fio de navalha for ultrapassado é que, talvez, o narrador se liberte não só da nobreza e da dominação, mas também, de toda e qualquer estrutura legal, que é sempre um dispositivo de classe para organizar a servidão. O caminho da tomada de consciência completa só pode se dar ao meio da revolução. É lutando contra a nobreza que, efetivamente, o narrador e sua comunidade poderiam se libertar da ideologia e ter uma consciência de classe mais plena. Aqui, algo fica evidente. No processo revolucionário, não se tem duas etapas distintas: 1. Tomada de consciência de classe; 2. Luta contra a nobreza e dominação. A verdade é que a revolução é mais simples do que isso. É no próprio processo de luta que se percebe com maior clareza contra o que se luta.
Talvez isso apontasse para um momento pré-revolucionário ainda, em que o narrador não estivesse de todo seguro sobre o que se deve efetivamente fazer.
           Mas, o corte da navalha, de repente, ganha gume.
           Pois não é que na última frase do texto ele introduz um novo elemento? Um escritor que, certa vez¸ teria resumido tudo de uma maneira precisa. A técnica é estranha, no mínimo, porque estamos acostumados a encontrar escritores a formular histórias, certas vezes, nos começos de textos, e não ali, na última frase.
            E qual é a formulação do escritor de certa vez?
            Ela começa exatamente com os mesmos argumentos que ele dialeticamente foi construindo ao longo do texto: a única lei visível e indubitavelmente imposta a nós é a nobreza. Não há nada de novo até aqui. O tal escritor de certa vez aparentemente não fez mais que escrever o que nosso narrador já havia escrito. Redobro?
       A sentença final, não obstante, revigora o escrito pois adiciona um dado a mais. Será que queremos espontaneamente nos privar dela [nobreza]? Uma palavra apenas está fora do lugar. Tem mais peso que as demais porque é escrita com a vontade: espontaneamente. A questão das leis, então, que tinha se mostrado ao longo de todo o texto um problema que se referia à nobreza muda de lado. Espontaneamente aponta, sem dúvida, para a vontade própria. Agora, a questão das leis é questão do povo. De um texto que, inicialmente, somente constatava a ligação lei-nobreza, um texto meio que ultra-reflexivo, passamos a um novo convite.
           Pela própria conta e risco do povo, será que não está na hora de agir?
       Talvez esse seja o fio de navalha mais contundente da reflexão do narrador. O limite entre nobreza e povo é o limite da revolta. Então, continuar por mais um parágrafo ou mais uma linha não é apenas desnecessário, é a derrota, pois seria, de certa forma, admitir que nada poderá mudar.

***

1.    O narrador termina com um corte que não é apenas preciso, é esperançoso até. Sua última dúvida aponta para um lugar absolutamente relevante para a estruturação do escrito, pois, o inverte. Agora, pela primeira vez, ele está falando do povo. Se ele continuar a refletir, nada mudará, é evidente. Então, ele pára! Mais uma palavra e tudo estaria perdido. Sua ponderação final é o verdadeiro fio de navalha: uma vez que todo povo sabe que a verdade da dominação é a nobreza, por que não subtraí-la definitivamente da comunidade em questão?

***

2.      Kafka, mais uma vez, sugere o cálculo imponderável: uma forma do saber que é menos poder. “Sobre a questão das leis”, o escrito, é afiado no melhor de uma dialética literária. Existe espaço de sobra para uma utopia que, obviamente, opera sempre meio que às avessas em seu funcionamento, ou simplesmente tarde demais. Em Kafka, até o sentido da utopia passa por uma utopia do sem-sentido. Pode não parecer, porém, há algo de esperança mesmo nisso. E o desfecho dessa história nos parece desconcertante não tanto porque não a compreendemos, não sabemos, mas, porque já não podemos. Isso é quase nada, e no entanto, apenas na frase final, repetição do pressentido, surge o momento do agir – estranho modo de contar uma história da liberdade. Tudo começa pelo final, e ainda assim, a tragédia é que lá no começo, do texto e das leis, deveríamos ter negado o próprio escrito, aproveitando o instante para cortar com navalha afiada a garganta dos canalhas.


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Esse texto foi apresentado no XXVIII Congresso Mundial de Filosofia do Direito e Filosofia Social (IVR), em Lisboa, julho de 2017 e foi publicado na Revista Sibila - revista de poesia e crítica literária - em 01/02/2018.










sábado, 24 de setembro de 2016

Palestra Informal na Casa do Prof. Tercio Sampaio Ferraz Jr.


Prezados amigos,

Acabei de achar um vídeo em que discorro sobre Shakespeare e a Corrupção. Trato de Hamlet e da tetralogia A Henríada. Foi uma intervenção que fiz no Seminário da Feiticeira (um grupo de debate que ocorre na casa de praia do professor Tercio Sampaio Ferraz Jr.). Ali, tudo é informal. Menos, as ideias... Algumas figuras conhecidas aparecem: Nelson Jobim, Celso Lafer etc. O seminário foi em outubro de 2015: o Brasil estava polarizado. Tentei dar o meu recado político por meio da arte. Pois, assistam! Abraços!


sexta-feira, 24 de abril de 2015

Em sala de aula - Breves impressões e notas de um aluno de Tercio Sampaio Ferraz Junior

Rodrigo Suzuki Cintra

“Perguntei a um homem o que era o Direito. Elle me respondeu que era a garantia do exercício da possibilidade. Esse homem chamava-se Galli Mathias. Comi-o”
                              Oswald de Andrade                                                                          

            A epígrafe deste ensaio pode ser encontrada na Teoria da Norma Jurídica de Tercio Sampaio Ferraz Junior. Seu conteúdo, um tanto jocoso, já denuncia, logo de saída, os discursos jurídicos herméticos, o palavrório legal, as definições jurídicas confusas[1]. O que a antropofagia de Oswald faz é quase uma impostura: quando os tecnocratas do direito pensam estar falando sério, mas, de fato, apenas produzem um discurso ininteligível, o melhor a se fazer é fazer graça.
            E ao mesmo tempo, esta citação está em um dos livros mais importantes produzidos por um dos nossos mais fundamentais juristas.
A questão, nos parece, está para além do bom-humor. A pergunta inicial de Oswald na citação em pauta está longe de ser ingênua. Afinal, o que é o direito?
            Um professor de Introdução ao Estudo do Direito tradicional não vacilaria, nem por um instante, em encher, protocolarmente, os estudantes de definições do que seria o fenômeno jurídico. Pois, o objetivo deste breve ensaio é mostrar um pouco da atividade de Tercio Sampaio Ferraz Jr. como professor de direito[2] e autor de textos de análise jurídica. O que significará, sem sombra de dúvida, mostrar o que singulariza este pensador e o torna professor inesquecível e autor incontornável. Para isso, faremos um certo desvio das amarras de um artigo objetivo e buscaremos em nossa experiência pessoal de contato com o professor Tercio, como aluno, espectador de sala de aula, e como leitor de sua obra, alguns elementos que possam, de alguma maneira, caracterizar o efeito impressionante que sua figura causa a um interlocutor eventual. Falaremos, em um exercício de rememoração, portanto, inicialmente, da excelência de suas aulas.  
            Ao contrário de um professor tradicional, Tercio Sampaio Ferraz Junior, talvez até por sua sólida formação filosófica[3], não era dado, nas aulas na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, a definir antes de questionar. Cada aula sobre um tema específico era uma análise dos pressupostos e dos limites do jurídico. O professor Tercio, em suas aulas, encorajava os alunos a refletir zeteticamente – tema, aliás, caro ao professor – sobre conceitos da dogmática jurídica. O resultado era uma forma de se fazer Introdução ao Estudo do Direito que era extremamente crítica, ao mesmo tempo em que deixava claro os institutos jurídicos que o jurista lida no dia-a-dia.
            O objetivo era evidente. O professor Tercio se preocupava não apenas com a formação de profissionais do direito, mas com a formação de juristas. Figuras que estariam imbuídas de cultura geral e jurídica e que pensariam o direito para além da interpretação fria e formal dos textos jurídicos.
            As aulas do professor Tercio eram marcadas por um estilo todo próprio, inconfundível. Tratava-se de apresentar um tema que, subitamente, devido a uma série de questionamentos, se transformava em um problema. Este problema era, por assim dizer, contornado na própria aula e, através de exemplos retirados da prática do direito, mostravam a íntima ligação entre o direito como teoria e o direito como práxis. Este problema, no entanto, levava a formação de um outro problema, invariavelmente, de difícil resolução. Nesse momento da aula, o professor Tercio, mais zetético do que nunca, apontava para as diversas dificuldades e armadilhas que esse problema dado suscitava. Terminava sua aula, na imensa maioria das vezes, com a frase: “Mas, isso nós vamos ver na próxima aula...”
            Deliciosa suspensão esta do próximo capítulo de seu curso em que um novo tema seria introduzido e posteriormente questionado e assim por diante. Com uma precisão de cronômetro, as aulas do professor terminavam pontualmente no momento devido e sempre com uma expectativa a ser satisfeita no próximo encontro.
O que os alunos tinham o privilégio de presenciar não era apenas a lógica de um pensamento que se constrói em frente aos nossos olhos em forma de puro argumento, mas era também, o constante exercício de uma retórica absolutamente envolvente que levava o interlocutor, espectador de sala de aula, a se seduzir pelo discurso de um filósofo do direito que é um verdadeiro professor. Forma e conteúdo, nas aulas do professor Tercio, começavam a se delinear como elementos do mesmo, como momentos indissociáveis da atividade de se pensar.
            Assim, como não identificar, nas aulas do professor Tercio, as finalidades tradicionais da retórica?
            As funções da retórica são, tradicionalmente, as seguintes: 1. Docere; 2. Movere; 3. Delectare. Docere é o ato de ensinar, de transmitir conhecimento, informar o interlocutor. Movere é a atividade de mover (co-mover), movimentar o espírito de quem ouve. E, por fim, Delectare é encantar, seduzir pela beleza do discurso. Todos, atributos facilmente percebidos nas aulas do professor Tercio que, pode se dizer, é mestre na arte da oratória. Ou seja, com o professor Tercio, os alunos não apenas aprendem, mas também têm a tendência a se encantar pela arte do bem-falar, pela beleza do argumento bem colocado. O que no caso do professor significa, ao mesmo tempo, invariavelmente, um rigor conceitual assombroso.  
              Nietzsche costumava afirmar que a retórica era republicana. Ela só poderia ter lugar e, de fato, só teve lugar historicamente, entre sujeitos de uma cidadania. Para esse filósofo, ser cidadão é poder persuadir e ser persuadido. As aulas do professor Tercio, nesse sentido, eram verdadeiros convites à cidadania. Não apenas porque materialmente nos ensinavam os institutos e categorias do direito, mas porque em sua forma, permitiam a inter-relação professor/aluno de uma maneira em que as perguntas dos alunos eram muitas vezes reincorporadas ao argumento principal do professor. Em outras palavras, era comum o professor Tercio recuperar na pergunta do aluno algum elemento que pudesse dar o gancho para um novo tema de discussão. Se é verdade que nenhuma pergunta passava sem o crivo da crítica, o professor, por outro lado, pacientemente, sempre sabia aproveitar as indagações dos alunos de modo a dar seguimento a uma nova forma de aproximação do problema jurídico em questão.
            Aliando a análise do direito à formação filosófica, as aulas do professor Tercio conseguiam conciliar a teorização da filosofia com a prática do direito. Nesse sentido, não é possível se enganar. O professor Tercio não é mero leitor de sistemas filosóficos, nem advogado inconsciente dos meandros das doutrinas que ele mesmo sustenta. O professor Tercio é um autor. Autor no sentido mais profundo do termo, que é o daquele que inova e constrói uma obra.
            Não vamos dizer que seus livros sejam acessíveis ao público em geral, se bem que não são, em hipótese alguma, obscuros. Trata-se, em todo caso, de uma escrita que se permite ser extremamente clara. Às vezes, de uma clareza tal que até mesmo ofusca os leitores acostumados com o vocabulário jurídico abstruso. Isso porque a escrita acompanha o que a aula do professor tem de melhor: o rigor.
            O livro de Introdução ao Estudo do Direito do professor Tercio, assim, é completamente diferente dos livros que podem ser encontrados sobre o assunto. Ali, o que está em jogo não é apenas uma exposição ordenada dos institutos jurídicos básicos. O que temos em mãos, e o que ouvimos na sala de aula, é a construção de toda uma teoria sobre o direito. Uma teoria que não esconde seu diálogo com autores das mais variadas tradições, e que importa em uma concepção particular do fenômeno jurídico.  
            Nas aulas, podiamos assistir o professor passear de maneira erudita e tranquila por autores como Kelsen, Viehweg, Hannah Arendt, Luhmann, Habermas, Jhering, Hart, Ross, Bobbio, Hobbes e mais uma série de outros autores[4]. E o que é melhor nisso tudo: discutia cada autor com profundidade de especialista sem se esquecer de traçar ideias por sua própria conta e risco.   

***

            Não são poucos os alunos que sofriam de uma estranha recapitulação intelectual: mesmo depois de formados, ou nos últimos anos da faculdade, resolviam voltar a assistir as primeiras aulas que tiveram na Faculdade de Direito com o professor Tercio.
            Pedindo permissão para frequentar as aulas – pedido que sempre era autorizado, por sinal –, os ex-alunos voltavam em peso para frequentar as aulas daquele professor que, de alguma forma, os marcou. Na maioria das vezes, admitiam que seu interesse consistia em uma constatação simples: sempre se aprende com o professor, não importa quanto já se pretenda saber sobre o direito. 



[1] Tudo que o pensamento de Tercio Sampaio Ferraz Junior não é.
[2] Tercio Sampaio Ferraz Junior foi professor titular da Faculdade de Direito da USP, instituição em que lecionava a disciplina Introdução ao Estudo do Direito.
[3] Vale aqui lembrar que o professor Tercio Sampaio Ferraz Junior, além de ser doutor formado em Direito pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco - USP, também é formado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tendo se doutorado em Filosofia pela Johannes Gutemberg Universitat de Mainz. 
[4] Anos depois de nossas primeiras aulas com o professor Tercio, no primeiro ano da graduação em direito, pudemos constatar, durante nossos estudos de pós-graduação, que o universo de referências do professor era ainda muito mais extenso do que poderíamos supor... 

domingo, 8 de setembro de 2013

Direito e Educação - Reflexões Críticas para uma Perspectiva Interdisciplinar


Direito e Educação - Reflexões Críticas para uma perspectiva interdisciplinarSão Paulo: Editora Saraiva, 2013.

Organização: Rodrigo Suzuki Cintra e Daniella Basso Batista Pinto

Direito e Educação - Reflexões Críticas Para Uma Perspectiva Interdisciplinar - Rodrigo Suzuki Cintra, Daniella Basso Batista Pinto (8502204696)

4ª CAPA:

Não é por outro motivo que o título deste livro, Direito e Educação, que ora o leitor tem em mãos, tem como subtítulo reflexões críticas para uma perspectiva interdisciplinar. De fato, segundo a concepção desta obra, não se separa reflexão de crítica. O pensamento está a serviço de uma exigência de superação da barbárie, das injustiças sociais e da luta contra qualquer forma de opressão e preconceito. Aprender é um ato de liberdade.

AUTORES:

Antonio Isidoro Piacentin
Daniel Francisco Nagao Menezes
Daniella Basso Batista Pinto
Gisele Meirelles Fonseca Inacarato
João Paulo Orsini Martinelli
Léa Fernandes Viana Leal
Regina Célia Pedroso
Rodrigo Suzuki Cintra


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sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Pinheirinho - entre o Direito e a Política

Duas questões jurídicas e políticas essenciais incomodam no que diz respeito à desocupação do terreno do Pinheirinho, em São José dos Campos.


A primeira diz respeito ao conceito de técnica jurídica, a segunda, ao Estado de Direito.


Alguns juristas têm apontado que a decisão jurídica que autorizou a saída forçada das famílias da região, por meio de força policial, é tecnicamente irrepreensível. É preciso, então, retomar o que se entende por técnica jurídica e perguntar, até mesmo, no limite, qual é a finalidade última do Direito.


Se por técnica jurídica se compreender uma leitura infraconstitucional, meramente civilista, desconectada de uma concepção constitucional e humana de Direito, talvez a decisão seja realmente acertada. Ocorre que a correta técnica jurídica não consiste em simplesmente aplicar normas jurídicas, como por exemplo, a que diz respeito ao direito de propriedade, de maneira descontextualizada como se o direito fosse um mero jogo de encaixar, ou seja, aplica-se a norma fria, sem se preocupar com as consequências sociais e também sem se compreender o direito como um sistema de normas e não como uma mera soma de dispositivos normativos. Não se pode interpretar o direito de maneira fragmentária, interpretando partes dos códigos como se fossem o todo, ao sabor de interesses políticos altamente questionáveis.


Assim, mesmo o direito de propriedade, pedra angular de todo o sistema jurídico capitalista moderno, deve obedecer uma lógica interna dentro do sistema jurídico que estabelece, entre outras disposições, a lógica de sua função social. Além disso, é preciso atentar para o fato de que uma decisão jurídica não é uma mera assinatura em um pedaço de papel. Ela tem impacto social e significa, verdadeiramente, uma mudança na vida de pessoas de carne e osso. Assim, a chamada técnica jurídica não pode estar, de forma alguma, desconectada das consequências sociais da decisão. Não é uma correta técnica jurídica, então, simplesmente aplicar uma norma se esquecendo dos resultados que possivelmente decorrerão da decisão. O Direito deve servir as pessoas, não as pessoas devem servir ao Direito.


Qualquer interpretação jurídica que não se guie pela dignidade da pessoa humana, pelo valor do indivíduo socialmente pensado, não pode ser correta do ponto de vista técnico. É sintoma de nossos tempos acreditar que é tecnicamente correta a decisão que promova desabrigar nove mil pessoas para possibilitar um suposto direito de propriedade de alguns. A questão é que 180 milhões de reais parecem valer mais que a dignidade de abrigo destas pessoas. Simples assim.


Aos juristas que, então, elogiam ou se contentam com esta técnica jurídica específica, é bom dar um recado: não existe técnica sem ideologia.


No que diz respeito ao Estado de Direito, conceito que serve aos mais variados propósitos, a questão não é menos desconcertante. Algumas pessoas acreditam, infelizmente, que se uma decisão não for cumprida, custe o que custar, o Estado e suas estruturas não estarão seguros. A segurança jurídica, para alguns, é valor dos mais caros. Isto também é sintoma de nossos tempos. Voltar ao mote: “ordens são ordens”.


O que se deve questionar, na verdade, é outra coisa.


Qual o valor real que devemos perseguir quando falamos em Estado de Direito?


Trata-se de um conceito que aponta para a segurança das instituições socialmente estabelecidas e, assim, deve ser preservado via força policial ou para os direitos das pessoas a terem uma vida digna? Não pode existir um Estado de Direito que desrespeite a dignidade da pessoa humana. Quando o governo estadual decide, via força policial, retirar as pessoas de suas casas para fazer cumprir uma ordem judicial nós não estamos diante de um problema que simplesmente possa ser resumido como “cumprir a lei”. Isto porque, na verdade, cumprir a lei, neste caso, parece ser exatamente o contrário: não retirar as pessoas de suas casas, não permitir que a especulação imobiliária seja maior que a vida.


A verdadeira segurança jurídica é a que promove direitos, não a que possibilita privilégios.


Tomando por base as recentes ações policiais que vemos na mídia, requisitadas pelo governo estadual sob a suposta alegação de “cumprimento da lei”, podemos dizer que, talvez, nós nunca estivemos tão inseguros. 


É preciso, a todo momento, lembrar que a segurança de alguns, possibilitada pela intocável política de preservação da propriedade privada significa, para todos os demais, a mais completa insegurança. As notícias de que as famílias que habitavam a região do Pinheirinho estão em situação degradante, completamente desamparadas pelo mesmo Estado que as desabrigou,  devem causar revolta em qualquer um que realmente acredite em um Estado de Direito.


No fundo, a insistência em retomar a ideia de técnica jurídica e a de Estado de Direito como conceitos que devem organizar a vida social tem uma função bastante clara, no que diz respeito ao incidente em Pinheirinho: legitimar a injustiça. E, assim, mais uma vez, o governo estadual nos obriga a repensar a questão que realmente importa no que diz respeito à relação entre política e direito: afinal, de que lado nós estamos?  

domingo, 24 de julho de 2011

Bobbio e o Sujeito da Filosofia do Direito

Escrevi um pequeno artigo científico sobre uma única afirmação de Norberto Bobbio: a Filosofia do Direito é disciplina feita por juristas, não por filósofos. Tento mostrar como Bobbio reduz a Filosofia do Direito à Teoria Geral do Direito e como essa operação acaba por trazer uma visão estritamente normativista do fenômeno jurídico. O artigo pode ser encontrado no 6º volume da Revista de Crítica Jurídica.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

I Semana Jurídica da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie - Campinas

Uma semana de muita alegria e estudo na Faculdade de Direito do Mackenzie - Campinas. Convidado pelos alunos a participar da Semana Jurídica, ministrei a palestra "Notas sobre a Filosofia no curso de Direito" no dia 17/08/2010. Agradeço o convite e saúdo os alunos pela iniciativa de realizar sua primeira semana jurídica.