Rodrigo Suzuki Cintra
“Perguntei a um homem o
que era o Direito. Elle me respondeu que era a garantia do exercício da
possibilidade. Esse homem chamava-se Galli Mathias. Comi-o”
Oswald de Andrade
A epígrafe deste ensaio pode ser
encontrada na Teoria da Norma Jurídica
de Tercio Sampaio Ferraz Junior. Seu conteúdo, um tanto jocoso, já denuncia,
logo de saída, os discursos jurídicos herméticos, o palavrório legal, as
definições jurídicas confusas[1].
O que a antropofagia de Oswald faz é quase uma impostura: quando os tecnocratas
do direito pensam estar falando sério, mas, de fato, apenas produzem um
discurso ininteligível, o melhor a se fazer é fazer graça.
E ao mesmo tempo, esta citação está
em um dos livros mais importantes produzidos por um dos nossos mais
fundamentais juristas.
A
questão, nos parece, está para além do bom-humor. A pergunta inicial de Oswald
na citação em pauta está longe de ser ingênua. Afinal, o que é o direito?
Um professor de Introdução ao Estudo
do Direito tradicional não vacilaria, nem por um instante, em encher,
protocolarmente, os estudantes de definições do que seria o fenômeno jurídico.
Pois, o objetivo deste breve ensaio é mostrar um pouco da atividade de Tercio
Sampaio Ferraz Jr. como professor de direito[2]
e autor de textos de análise jurídica. O que significará, sem sombra de dúvida,
mostrar o que singulariza este pensador e o torna professor inesquecível e
autor incontornável. Para isso, faremos um certo desvio das amarras de um
artigo objetivo e buscaremos em nossa experiência pessoal de contato com o professor
Tercio, como aluno, espectador de sala de aula, e como leitor de sua obra,
alguns elementos que possam, de alguma maneira, caracterizar o efeito
impressionante que sua figura causa a um interlocutor eventual. Falaremos, em
um exercício de rememoração, portanto, inicialmente, da excelência de suas aulas.
Ao contrário de um professor
tradicional, Tercio Sampaio Ferraz Junior, talvez até por sua sólida formação
filosófica[3],
não era dado, nas aulas na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, a
definir antes de questionar. Cada aula sobre um tema específico era uma análise
dos pressupostos e dos limites do jurídico. O professor Tercio, em suas aulas,
encorajava os alunos a refletir zeteticamente – tema, aliás, caro ao professor
– sobre conceitos da dogmática jurídica. O resultado era uma forma de se fazer Introdução
ao Estudo do Direito que era extremamente crítica, ao mesmo tempo em que deixava
claro os institutos jurídicos que o jurista lida no dia-a-dia.
O objetivo era evidente. O professor
Tercio se preocupava não apenas com a formação de profissionais do direito, mas
com a formação de juristas. Figuras que estariam imbuídas de cultura geral e
jurídica e que pensariam o direito para além da interpretação fria e formal dos
textos jurídicos.
As aulas do professor Tercio eram
marcadas por um estilo todo próprio, inconfundível. Tratava-se de apresentar um
tema que, subitamente, devido a uma
série de questionamentos, se transformava em um problema. Este problema era, por assim dizer, contornado na própria
aula e, através de exemplos retirados da prática do direito, mostravam a íntima
ligação entre o direito como teoria e o direito como práxis. Este problema, no
entanto, levava a formação de um outro problema, invariavelmente, de difícil
resolução. Nesse momento da aula, o professor Tercio, mais zetético do que
nunca, apontava para as diversas dificuldades e armadilhas que esse problema
dado suscitava. Terminava sua aula, na imensa maioria das vezes, com a frase:
“Mas, isso nós vamos ver na próxima aula...”
Deliciosa suspensão esta do próximo
capítulo de seu curso em que um novo tema seria introduzido e posteriormente
questionado e assim por diante. Com uma precisão de cronômetro, as aulas do
professor terminavam pontualmente no momento devido e sempre com uma
expectativa a ser satisfeita no próximo encontro.
O
que os alunos tinham o privilégio de presenciar não era apenas a lógica de um
pensamento que se constrói em frente aos nossos olhos em forma de puro
argumento, mas era também, o constante exercício de uma retórica absolutamente
envolvente que levava o interlocutor, espectador de sala de aula, a se seduzir
pelo discurso de um filósofo do direito que é um verdadeiro professor. Forma e
conteúdo, nas aulas do professor Tercio, começavam a se delinear como elementos
do mesmo, como momentos indissociáveis da atividade de se pensar.
Assim, como não identificar, nas
aulas do professor Tercio, as finalidades tradicionais da retórica?
As funções da retórica são,
tradicionalmente, as seguintes: 1. Docere;
2. Movere; 3. Delectare. Docere é o ato
de ensinar, de transmitir conhecimento, informar o interlocutor. Movere é a atividade de mover
(co-mover), movimentar o espírito de quem ouve. E, por fim, Delectare é encantar, seduzir pela
beleza do discurso. Todos, atributos facilmente percebidos nas aulas do professor
Tercio que, pode se dizer, é mestre na arte da oratória. Ou seja, com o
professor Tercio, os alunos não apenas aprendem, mas também têm a tendência a
se encantar pela arte do bem-falar, pela beleza do argumento bem colocado. O
que no caso do professor significa, ao mesmo tempo, invariavelmente, um rigor
conceitual assombroso.
Nietzsche costumava afirmar que a retórica era republicana. Ela só poderia
ter lugar e, de fato, só teve lugar historicamente, entre sujeitos de uma
cidadania. Para esse filósofo, ser cidadão é poder persuadir e ser persuadido. As
aulas do professor Tercio, nesse sentido, eram verdadeiros convites à
cidadania. Não apenas porque materialmente nos ensinavam os institutos e
categorias do direito, mas porque em sua forma, permitiam a inter-relação
professor/aluno de uma maneira em que as perguntas dos alunos eram muitas vezes
reincorporadas ao argumento principal do professor. Em outras palavras, era
comum o professor Tercio recuperar na pergunta do aluno algum elemento que pudesse
dar o gancho para um novo tema de discussão. Se é verdade que nenhuma pergunta
passava sem o crivo da crítica, o professor, por outro lado, pacientemente,
sempre sabia aproveitar as indagações dos alunos de modo a dar seguimento a uma
nova forma de aproximação do problema jurídico em questão.
Aliando a análise do direito à
formação filosófica, as aulas do professor Tercio conseguiam conciliar a
teorização da filosofia com a prática do direito. Nesse sentido, não é possível
se enganar. O professor Tercio não é mero leitor de sistemas filosóficos, nem
advogado inconsciente dos meandros das doutrinas que ele mesmo sustenta. O
professor Tercio é um autor. Autor no sentido mais profundo do termo, que é o
daquele que inova e constrói uma obra.
Não vamos dizer que seus livros
sejam acessíveis ao público em geral, se bem que não são, em hipótese alguma,
obscuros. Trata-se, em todo caso, de uma escrita que se permite ser
extremamente clara. Às vezes, de uma clareza tal que até mesmo ofusca os
leitores acostumados com o vocabulário jurídico abstruso. Isso porque a escrita
acompanha o que a aula do professor tem de melhor: o rigor.
O livro de Introdução ao Estudo do
Direito do professor Tercio, assim, é completamente diferente dos livros que
podem ser encontrados sobre o assunto. Ali, o que está em jogo não é apenas uma
exposição ordenada dos institutos jurídicos básicos. O que temos em mãos, e o
que ouvimos na sala de aula, é a construção de toda uma teoria sobre o direito.
Uma teoria que não esconde seu diálogo com autores das mais variadas tradições,
e que importa em uma concepção particular do fenômeno jurídico.
Nas aulas, podiamos assistir o
professor passear de maneira erudita e tranquila por autores como Kelsen,
Viehweg, Hannah Arendt, Luhmann, Habermas, Jhering, Hart, Ross, Bobbio, Hobbes
e mais uma série de outros autores[4].
E o que é melhor nisso tudo: discutia cada autor com profundidade de
especialista sem se esquecer de traçar ideias por sua própria conta e
risco.
***
Não são poucos os alunos que sofriam
de uma estranha recapitulação intelectual: mesmo depois de formados, ou nos últimos
anos da faculdade, resolviam voltar a assistir as primeiras aulas que tiveram
na Faculdade de Direito com o professor Tercio.
Pedindo permissão para frequentar as
aulas – pedido que sempre era autorizado, por sinal –, os ex-alunos voltavam em
peso para frequentar as aulas daquele professor que, de alguma forma, os
marcou. Na maioria das vezes, admitiam que seu interesse consistia em uma
constatação simples: sempre se aprende com o professor, não importa quanto já
se pretenda saber sobre o direito.
[1] Tudo que o pensamento de Tercio
Sampaio Ferraz Junior não é.
[2] Tercio Sampaio Ferraz Junior foi
professor titular da Faculdade de Direito da USP, instituição em que lecionava
a disciplina Introdução ao Estudo do Direito.
[3] Vale aqui lembrar que o professor
Tercio Sampaio Ferraz Junior, além de ser doutor formado em Direito pela
Faculdade de Direito do Largo de São Francisco - USP, também é formado em
Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tendo
se doutorado em Filosofia pela Johannes Gutemberg Universitat de Mainz.
[4] Anos depois de nossas primeiras
aulas com o professor Tercio, no primeiro ano da graduação em direito, pudemos
constatar, durante nossos estudos de pós-graduação, que o universo de
referências do professor era ainda muito mais extenso do que poderíamos
supor...
Nenhum comentário:
Postar um comentário