Escrito
em João Pessoa (07/11/14)
I
Um céu com texturas compostas de
tonalidades variadas de azul denuncia, por oposição, a terra desolada.
Apesar
de a imagem estar preenchida em quase toda a sua totalidade por uma criatura-estrutura
gigantesca e singular, temos a impressão que a área ao seu redor, caso
pudéssemos vê-la à distância, seria desértica.
A máquina-animal que está no centro da
cena é particularmente única. Pelo menos, e disso estamos certos, é a única que
pode ser vista nas proximidades.
Há algo de aço na robustez dessa coisa-coisa.
E mesmo que exista qualquer elemento orgânico em sua estrutura, isso deve,
provavelmente, também ser feito de algum material metálico, sem dúvida.
Alguns apostam, sem titubear, que se
trata de um elefante muito particular. Outros, que é, certamente, um tanque de
guerra pronto para o combate. De qualquer modo, veículo ou animal, trata-se de
um artefato ou de um ser extremamente curioso.
Aqueles que sustentam a tese de que se
trata de um elefante, apontam para a existência de uma tromba que, curvilínea,
causa mais impressão pelo fato de não parecer funcional do que pela sua
posição. Ela não parece ter começo nem fim. Está ligada ao mesmo tempo ao corpo
do elefante e a cabeça do animal, o que impossibilitaria o seu uso. Mas, parece
perfeitamente adequada a composição, apesar de ser, se assim o for, plenamente
inútil.
Para os que estão certos de que se trata
de um veículo de combate, é claro que a estrutura curvilínea a que os outros
chamam de tromba corresponde ao canhão do tanque. Um canhão meio inusitado
pois, a princípio, é menos rígido do que se esperaria de uma máquina de
artilharia pesada.
A cabeça da criatura-estrutura possui chifres
e dentes de latão e está separada do corpo ligando-se a este pela tromba, ou se
arriscarmos outra interpretação, pelo canhão.
Dois elementos, no entanto, chamam
atenção e apontam, cada um a seu modo, para interpretações divergentes. Uma
espécie de chaminé feita de peças de metal colorido disposta logo acima da estrutura
sugere que essa é mais um veículo militar que um elefante em potencial. Porém,
em contraposição, do lado esquerdo da criatura, duas presas se projetam do
corpo, dando a entender que se trata de um elefante particularmente especial e
não de uma máquina de guerra.
Às vezes, devido à posição das presas,
temos a impressão de que a cabeça verdadeira do animal está escondida pelo seu
corpo e que o que podemos ver na figura corresponde à sua parte traseira. A
tromba, assim, se transforma em rabo e a criatura toda parece ser ainda mais
enigmática visto que teria, nesse caso, duas cabeças.
II
Com
um gesto gracioso, o corpo da mulher sem cabeça domina o primeiro plano da
pintura, apesar de quase ninguém reparar nela. Sua imagem está recortada pela
própria tela e seu corpo muito branco, sem sombra de dúvida, está completamente
nu. Não há dúvida de que deve ser uma mulher muito bela, mas, de qualquer modo,
sua representação completa foi sequestrada pela lógica do quadro. Talvez o
gesto que ela faz com um dos braços, delicado e preciso, sugira que se trata de
uma bailarina. Inadvertidamente, sempre que estamos em dúvida, pensamos que são
bailarinas. A mulher certamente não está inerte e o movimento do braço não
poderia estar completo sem aquele gesto absolutamente característico da sua mão
que, atrevida e de propósito, deixa-se levar por aqueles modos caprichosos
exclusivamente femininos que causam admiração, proporcionam beleza e são
extremamente sedutores. É evidente e perceptível que a ausência da cabeça nessa
figura não se dá pelo recorte da tela. Sentimos, em um primeiro momento, a sua
falta. Porém, a delicadeza do gestual (e os seios perfeitos...) nos cativa logo
após um segundo exame e não conseguimos pensar em nenhuma cabeça específica que
pudesse ajudar a dar um significado maior para o modo como ela foi representada.
A ausência de cabeça, de certa maneira, facilita a imaginação – pois leva a
pensar qual rosto de mulher nos vem à mente quando o caso é o de tentar
preencher uma face que a própria imagem nos negou. A brancura do corpo da
mulher, a perfeição do volume de seus seios e a ausência de cabeça produzem um
impacto profundo em quem se propõe a olhar essa bailarina de um modo mais
detido. Essas características do corpo da bailarina quase que fazem com que não
nos preocupemos em perceber a luva que ela veste em uma das mãos. Talvez fosse
possível dizer, por causa disso, que a mulher não está completamente nua – a
luva ainda esconde algo de seu corpo. Porém, essa seria uma visão severamente
equivocada. Pois é justamente a luva, em cores vivas, a contrastar com a
brancura do corpo, que garante a nudez total.
III
Ao
ocupar quase que a totalidade da tela, a coisa-coisa, criatura-estrutura,
elefante-tanque tem matizes escuros, em tonalidades de cinza. Podemos ver toda
a sua proporção a partir do ponto de vista em que nos encontramos como
observadores. Estamos em ângulo privilegiado, bem de frente para este
monstruoso constructo.
Sua disposição aponta para a inércia, parece
estar parado, e sua estatura e volume, sem dúvida, nos remetem ao peso. Pode
bem ser que se trate de uma máquina de guerra singular, um elefante-tanque, e,
nesse caso, a impressão de que o cenário para além dos limites da tela, caso
pudéssemos vê-lo por completo, seria de pura desolação confirmaria a sensação
de que a estrutura em questão serve mais à destruição do que à vida.
Sua
existência, como potencial máquina de guerra, uma estrutura do extermínio, é intrigante
porque estranhamente dá a sensação de operar de maneira autônoma, sem
intervenção humana. Como se fosse uma mecânica que, de alguma forma, se bastasse.
A
mulher-bailarina é branca. Muito branca. Seu corpo está incompleto, em muitos
sentidos – a mulher não é retratada da cintura para baixo. Inclusive, estar ao
mesmo tempo dentro do campo de visão do observador e fora de seu campo de
visão, é estratégia fundamental para destacar sua movimentação. Ela está na
extremidade direita da pintura, mas em primeiro plano, e contrasta visivelmente
com a centralidade do tanquedeguerraelefante. Tudo nela aponta para um suave
deslocamento. Bem pode ser que ela esteja ensaiando para uma apresentação de
balé.
A
estrutura ao centro é, sem dúvida, composta de aço, metal e ferro; já a
bailarina, é feita de carne e sua estatura pequena, leve e magra entra em conflito
com o tamanho avantajado, o peso e o porte avolumado da criatura.
Mas, se a contradição é evidente, não
se sabe ao certo se é a possibilidade de dança ou a possibilidade de destruição
o que está fora do lugar na tela.
E, talvez, alguns críticos mais
atentos sugiram que, no fundo, as duas hipóteses correspondem à mesma coisa na
lógica da composição.
IV
Em
um céu de texturas elaboradas em tonalidades variadas de azul, em uma terra
desolada, em um solo em que a sombra nada revela, ao meio de três elementos
viris que brotam do chão, entre um peixe e outro voando no céu, entre o cinza e
o branco, peso e leveza, inércia e movimento, aço e carne: a tensão entre a
tromba e o seio.