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sábado, 10 de agosto de 2019

Cabide, 1920/21 (Man Ray) Ou Medo de Brinquedo




         Uma mulher por trás de uma boneca de cartolina.
         À primeira vista, pode-se pensar que se trata de uma colagem, mas, o exame mais detido evidencia que é uma fotografia.
         É importante perceber, nesse caso, que se trata de uma fotografia. Pois, inadvertidamente, é uma imagem que causa impacto por suas ambiguidades, por sua improbabilidade extrema enquanto um instantâneo do real, por uma estruturação do elemento que se pretende representar radicalmente misteriosa.
         Não há como não sentir algo de perturbador na imagem.
Sua incompletude, seu modo de mesclar o corpo humano com a cartolina, um modo de representar o feminino que se dá estranhamente entre o que se vê e o que se esconde, o que está na frente e o que está atrás, tudo ali provoca incômodo.
         Não é exatamente o fato de existir potencialmente uma mulher por trás da cartolina o que causa essa sensação particular. Tampouco é a cartolina à frente da mulher que induz a certa rejeição. É a fusão desconcertante entre o que é vivo com o que não tem vida o que nos deixa perplexos. Pois, nossos olhos se alternam, demasiadamente e sem autorização, entre o corpo nu e a boneca de cartolina. E é nos momentos em que se percebe esses dois elementos em conjunto que ficamos completamente estarrecidos por estarem escandalosamente em uma pretensa harmonia na fotografia. Ali, a tensão entre o orgânico e o inorgânico obriga a buscar significados e estabelecer conexões de sentido de modo a tornar possível suportar essa composição absolutamente inusitada.
A sensação geral, ao olhar para obra, é tão particular que, apesar da modelo por trás deste singular cabide estar nua, deixando à mostra os seios, o sexo e seus contornos curvilíneos de mulher, não sentimos qualquer espécie de ímpeto sexual.
Alguma coisa na fotografia inviabiliza o desejo.
         O recorte da cartolina que acaba por representar os braços, os ombros, a cabeça com olhos, boca e cabelos de uma boneca pode parecer, inicialmente, uma representação mais infantil, porém, no entanto, é perturbador demais para ter sido feito por crianças. 
         A boca desta boneca é demasiada pequena e, se somar isso à ausência de nariz e aos cabelos desenhados de um modo singelo, temos um rosto de boneca quase que esquemático. É claro que os olhos completam a equação da face particular da boneca de cartolina. Muito abertos, dão a impressão de olhar diretamente para frente e além. É um olhar por demais profundo, é bom que se diga, e parece, inclusive, trespassar a estrutura da fotografia e enxergar o próprio sujeito que está a observá-la.
Por certo, o cabide vertical que sustenta a estrutura de cartolina garante que a imagem pareça não ter movimento. Além disso, a brancura do corpo e da cartolina contrasta com o fundo da fotografia que é profundamente negro. Essa escuridão é um truque de luz e, ao mesmo tempo, é contagiosa. De algum modo, absorve parte da perna direita da modelo. E ficamos sem saber ao certo se a perna foi apenas sequestrada pela lógica da escuridão do fundo da imagem, ou se a modelo já não tinha esse pedaço do corpo desde o princípio.
A cartolina disposta à frente do rosto e dos ombros da modelo esconde completamente o semblante da mulher real, funciona como uma máscara, e tem traços de boneca inerte que contrariam o corpo vivo e em evidência do resto da composição.
Porém, sequer é possível dizer, seguramente, para falar a verdade, que a boneca de cartolina é que encobre a mulher real. Talvez o rosto e os ombros da modelo também não apareceriam se o caso fosse o de retirar a boneca de cartolina da sua frente. Tal qual a perna pela metade, nada garante a completude da modelo acima dos seios. Pode bem ser que se encontrasse escuridão também por trás do lugar que a boneca ocupa na fotografia.
Esse é um tipo de pensamento coerente com a lógica interna desta fotografia, não há dúvida, mas, profundamente improvável para falar a verdade.
Porém, não são essas possibilidades que causam a sensação mais estranha quando se trata de observar atentamente a lógica da foto. Existe algo na estruturação dos elementos internos dessa representação que provoca, inadvertidamente, um pouco de medo.
Pode ser que essa sensação se origine em um movimento de nossa imaginação. Se pudéssemos retirar a boneca feita de cartão da frente da modelo e assim fosse possível enxergar a mulher por completo, em toda a sua vivacidade, com pernas, sexo, seios, ombros, pescoço, boca, cabelos, ela seria uma pessoa real, alguém que efetivamente pertence ao mundo. Ou seja, tiraríamos da fotografia seu caráter mais inusitado e a reduziríamos a uma mera representação singela de uma modelo.
E todo problema, o que nos aflige nos momentos em que deixamos a imaginação correr solta, consiste no fato de que, mesmo tendo sido retirada a boneca da frente dela, como a retirar uma máscara, essa mulher por trás da cartolina, estaria, inevitavelmente, a olhar diretamente para o espectador, ainda com aqueles olhos inertes de boneca.  
E a dúvida que apareceria, se assim fosse, não seria mais a proposta da foto (o que há de mulher por trás de uma boneca), mas, inversamente, o que há de boneca por trás de uma mulher: um pouco de morte.

domingo, 26 de março de 2017

A Reza, 1930 (Man Ray) ou Como Contar os Dedos do Pé com o Próprio Cu




  
         Entre o claro e o escuro há um pouco de corpo. No escuro, nada podemos ver; no claro, vemos demais.
O erotismo é uma arte traiçoeira. Pode parecer, à primeira vista, que consiste em mostrar sem revelar a imagem por completo, mas, na verdade, consiste em um jogo de esconder. É o que se oculta que provoca o desejo, não o que se mostra visível.
Esta fotografia, no entanto, é erótica às avessas.
O corpo se contorce e dobrando-se sobre si mesmo dá a impressão de uma posição que, se não for impossível, é certamente improvável. Toda a obscenidade da imagem não está no que não vemos. De maneira desconcertante, é exatamente o que encobre os orifícios deste corpo o que faz a imaginação flutuar. O inusitado é que, neste caso singular, o que se vê claramente é que remete ao erótico.
Pois, há algo de excessivo em todos aqueles dedos.
Os orifícios cujas imagens nos são negadas, que poderiam apontar para o apelo sexual do instantâneo, não são, a bem da verdade, o que importa na representação. São os dedos, escancaradamente nítidos, que provocam o pensamento a tomar certas formas mais sensuais.
Os glúteos, são excessivamente redondos. Também são demasiadamente brancos. Lembram uma maçã que perdeu a cor. E na composição da totalidade da imagem, junto aos dedos que estão em escala de cinza, correspondem a uma corporalidade quase que meramente sugerida. Mas, a imagem está perceptivelmente completa, mesmo que tenha algo de menos corpo no que foi retratado.
Os pés estão juntos, mas os vemos pela metade. Estão profundamente inertes. É a sombra dos glúteos o que os coloca no limiar entre o claro e o escuro. Porém, podemos ver todos os dedos. Existe algo de profundamente obsceno em tentar contá-los. É no momento exato em que examinamos se todos os dedos estão aparentes que somos pegos por uma sexualidade menos sutil e mais evidente. Todo escândalo que advém desse jogo de somar os dedos dos pés consiste, paradoxalmente, no fato de que, nesta imagem, é o esforço de minúcia, que induz ao sexual. Na foto, os pés e as mãos são de uma nudez mais provocativa do que os orifícios que tentam esconder. É preciso perceber isso. Por trás das mãos e pés, que inclusive nos enganam quando pretendem não ter nada a ver com a posição corporal inusitada, algo de sexual se insinua. 
O sexo está no detalhe.
As mãos que pretendem esconder os orifícios são quase que exclusivamente dedos. Dedos que, ao contrário dos pés, podem se movimentar. A imagem é estática, como não poderia deixar de ser, mas, o sugestivo está justamente em imaginar estes dedos em movimento. Dedos que tentam nervosamente esconder o sexo. Existe, inclusive, uma vontade de que os dedos, dada a posição que estão, não consigam cumprir seu papel no jogo de esconde e fiquem se movimentando, uma mão sobre outra, de modo que quando conseguem cobrir uma parte do sexo, acabam, invariavelmente, por deixar outra parte comprometedora descoberta.  
Além disso, não é exatamente alguma forma de toque o que precipita uma fantasia mais imaginativa. É a disposição dos dedos.
Dedos sobre dedos.
As mãos podem até ser nervosas, mas os pés são calmos. Reclinado como em uma forma de reza, o corpo é contraditório. Os pés juntos, com seus múltiplos dedos, podem até sugerir ave-marias se o caso fosse o de rezar. Se não provocassem, maliciosamente, na sua visão, certa inclinação para verificar se todos os dedos estão realmente ali. Mas as mãos, com a sobreposição de dedos sobre dedos, denunciam evidentemente, certas vontades menos religiosas.
  


sábado, 11 de fevereiro de 2017

Rrose Sélavy, 1920/1921 (Duchamp/Man Ray) ou Mulher de Tempo Lento




  
I

         O chapéu é por demais inusitado, personalíssimo, e chega mesmo a ser ousado, quase insolente, se levarmos em consideração o fato de que é composto basicamente por figuras geométricas dispostas de uma maneira aparentemente aleatória.
         Claro que isso já é uma forma de impostura, uma vez que toda geometria que se pretenda aleatória é, em verdade, a própria negação da geometria. Há sempre um princípio organizador nas formas geométricas, elas são avessas ao caótico, de modo que basta decifrar sua lógica interna para inviabilizar a sensação de que essas formas possam ser dispostas sem alguma espécie de simetria própria.
         Porém, os desenhos no chapéu dessa mulher-enigma, basicamente compostos pelas ocasiões do negro no branco ou vice-versa, são misteriosos a seu modo e decifrar o seu padrão é tarefa difícil.
         As figuras no chapéu parecem escapar – quando fixamos uma das formas, outra delas dá a impressão de sorrateiramente começar a se ocultar.
         Por isso, talvez, alguns dizem, inclusive, que estabelecer como se deslocam essas formas, essa brincadeira de esconde, é a melhor maneira para começar a compreender essa mulher.
         Existe, na essência do chapéu, um jogo geométrico entre o visível e o invisível que potencializa o caráter misterioso da fotografia. Mas, obviamente, os defensores dessa tese – os “analistas do chapéu” (como ficaram historicamente conhecidos) – são aqueles mais tendentes a matematizar a condição humana, e se esquecem, com frequência, de investigar, na sua ânsia por delimitar quadrados, retângulos e triângulos, outros aspectos da imagem desconcertante da mulher na fotografia.

II

Olhar o próprio observador, perfurar o espectador, olhar para além e não enxergar propriamente ninguém.

III
          
         Há algo naqueles dedos que sugere indiscutivelmente a feminilidade. Não é, como poderia se pensar, o fato de serem menores e mais finos que os dedos dos homens, com suas mãos maiores e mais brutas. Tampouco é a presença dos anéis o que nos certifica que se trata de uma mulher.
          É o modo como foram capturados pelo instantâneo.
Levemente dobrados, sutis, delicados ao tocar o casaco de pele. Dedos que sugerem movimentos mais suaves, talvez menos bruscos. Dedos que fazem manha, que delongam as ocasiões, e que são menos objetivos ao cumprir a tarefa de levantar a gola do casaco de pele. Dedos de tempo lento, habituados aos caprichos próprios à atuação, sempre demorando em completar cada movimento, como se cada ação fosse uma espécie de performance.

IV

Somente uma lente objetiva poderosamente aguçada poderia registrar o exato segundo em que Rrose está propositalmente se atrasando alguns breves instantes para fazer qualquer coisa absolutamente irrelevante: tudo se passa efetivamente na cadência distendida de um momento meticulosamente alargado.

V

Toda e qualquer mulher, de maneira absolutamente manhosa, atrasaria o ato de arrumar o casaco de pele apenas alguns breves instantes só para ser registrada na fotografia como uma mulher ligeiramente manhosa atrasando o ato de arrumar o casaco de pele apenas alguns breves instantes antes de fazer alguma coisa de importância sabidamente superestimada.

VI

         É preciso não estar entendendo absolutamente nada se o caso é o de indagar se a mulher da fotografia é uma atriz ou não. Se ela está indo ao teatro ou se acaba de sair de cena.
         Em um sentido muito particular, toda mulher é ela mesma e, ao mesmo tempo está sempre em cena.
          O mais interessante da fotografia, na verdade, é outra coisa.  
Ela enigmaticamente nos lembra de algo sobre as mulheres que vez ou outra deixamos escapar e que pode passar despercebido inclusive por elas, acostumadas a simplesmente agir da maneira habitual. A fotografia é de Rrose, mas bem poderia ser de qualquer mulher representada em um momento em que se arquiteta propositalmente, mas de maneira natural, as formas corporais e espirituais que compõem aquilo que chamamos de feminilidade.
         Talvez o segredo dessa fotografia seja que ela consegue retratar perfeitamente, na captura do instantâneo, uma mulher em um momento de verdade absoluta. Em performance ou não, o que no fundo é a mesma coisa, a mulher que busca a plenitude feminina é aquela que não se cansa de atuar, no teatro da vida, de acordo com aquele sonho maravilhosamente impossível que ela mesma inventou para si.