Uma mulher por trás de uma boneca de
cartolina.
À primeira vista, pode-se pensar que se
trata de uma colagem, mas, o exame mais detido evidencia que é uma fotografia.
É importante perceber, nesse caso, que
se trata de uma fotografia. Pois, inadvertidamente, é uma imagem que causa
impacto por suas ambiguidades, por sua improbabilidade extrema enquanto um
instantâneo do real, por uma estruturação do elemento que se pretende
representar radicalmente misteriosa.
Não há como não sentir algo de
perturbador na imagem.
Sua
incompletude, seu modo de mesclar o corpo humano com a cartolina, um modo de representar
o feminino que se dá estranhamente entre o que se vê e o que se esconde, o que
está na frente e o que está atrás, tudo ali provoca incômodo.
Não é exatamente o fato de existir
potencialmente uma mulher por trás da cartolina o que causa essa sensação
particular. Tampouco é a cartolina à frente da mulher que induz a certa
rejeição. É a fusão desconcertante entre o que é vivo com o que não tem vida o
que nos deixa perplexos. Pois, nossos olhos se alternam, demasiadamente e sem
autorização, entre o corpo nu e a boneca de cartolina. E é nos momentos em que
se percebe esses dois elementos em conjunto que ficamos completamente
estarrecidos por estarem escandalosamente em uma pretensa harmonia na
fotografia. Ali, a tensão entre o orgânico e o inorgânico obriga a buscar
significados e estabelecer conexões de sentido de modo a tornar possível
suportar essa composição absolutamente inusitada.
A
sensação geral, ao olhar para obra, é tão particular que, apesar da modelo por
trás deste singular cabide estar nua, deixando à mostra os seios, o sexo e seus
contornos curvilíneos de mulher, não sentimos qualquer espécie de ímpeto
sexual.
Alguma
coisa na fotografia inviabiliza o desejo.
O recorte da cartolina que acaba por
representar os braços, os ombros, a cabeça com olhos, boca e cabelos de uma
boneca pode parecer, inicialmente, uma representação mais infantil, porém, no
entanto, é perturbador demais para ter sido feito por crianças.
A boca desta boneca é demasiada pequena
e, se somar isso à ausência de nariz e aos cabelos desenhados de um modo singelo,
temos um rosto de boneca quase que esquemático. É claro que os olhos completam
a equação da face particular da boneca de cartolina. Muito abertos, dão a
impressão de olhar diretamente para frente e além. É um olhar por demais
profundo, é bom que se diga, e parece, inclusive, trespassar a estrutura da
fotografia e enxergar o próprio sujeito que está a observá-la.
Por
certo, o cabide vertical que sustenta a estrutura de cartolina garante que a
imagem pareça não ter movimento. Além disso, a brancura do corpo e da cartolina
contrasta com o fundo da fotografia que é profundamente negro. Essa escuridão é
um truque de luz e, ao mesmo tempo, é contagiosa. De algum modo, absorve parte
da perna direita da modelo. E ficamos sem saber ao certo se a perna foi apenas
sequestrada pela lógica da escuridão do fundo da imagem, ou se a modelo já não
tinha esse pedaço do corpo desde o princípio.
A
cartolina disposta à frente do rosto e dos ombros da modelo esconde
completamente o semblante da mulher real, funciona como uma máscara, e tem
traços de boneca inerte que contrariam o corpo vivo e em evidência do resto da
composição.
Porém,
sequer é possível dizer, seguramente, para falar a verdade, que a boneca de
cartolina é que encobre a mulher real. Talvez o rosto e os ombros da modelo
também não apareceriam se o caso fosse o de retirar a boneca de cartolina da
sua frente. Tal qual a perna pela metade, nada garante a completude da modelo
acima dos seios. Pode bem ser que se encontrasse escuridão também por trás do
lugar que a boneca ocupa na fotografia.
Esse
é um tipo de pensamento coerente com a lógica interna desta fotografia, não há
dúvida, mas, profundamente improvável para falar a verdade.
Porém,
não são essas possibilidades que causam a sensação mais estranha quando se
trata de observar atentamente a lógica da foto. Existe algo na estruturação dos
elementos internos dessa representação que provoca, inadvertidamente, um pouco
de medo.
Pode
ser que essa sensação se origine em um movimento de nossa imaginação. Se
pudéssemos retirar a boneca feita de cartão da frente da modelo e assim fosse
possível enxergar a mulher por completo, em toda a sua vivacidade, com pernas,
sexo, seios, ombros, pescoço, boca, cabelos, ela seria uma pessoa real, alguém
que efetivamente pertence ao mundo. Ou seja, tiraríamos da fotografia seu
caráter mais inusitado e a reduziríamos a uma mera representação singela de uma
modelo.
E
todo problema, o que nos aflige nos momentos em que deixamos a imaginação
correr solta, consiste no fato de que, mesmo tendo sido retirada a boneca da
frente dela, como a retirar uma máscara, essa mulher por trás da cartolina,
estaria, inevitavelmente, a olhar diretamente para o espectador, ainda com
aqueles olhos inertes de boneca.
E
a dúvida que apareceria, se assim fosse, não seria mais a proposta da foto (o
que há de mulher por trás de uma boneca), mas, inversamente, o que há de boneca
por trás de uma mulher: um pouco de morte.
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