O recente artigo de Luiz Felipe Pondé na Folha de S. Paulo (11/07) é uma das maiores demonstrações das distorções pelo que se passa por Filosofia no Brasil. O autor, jornalista ilustrado, com crises de filósofo, escreve como se a irreverência e a vontade de polêmica fossem sinônimos de preconceito e o mais tacanho machismo.
Em seu artigo, Pondé discorre sobre a vontade interna de toda mulher de ser tratada como um objeto. O texto não teria maiores problemas - seria mais um ensaio machista - se não fosse a pretensa análise filosófica do autor. Através de construções do tipo "cada um é cada um", Pondé enuncia sua pergunta pseudo-filosófica: como uma mulher pode ser gostosa sem ser objeto?
Para além da filosofia de boteco, que mesmo quando toca no tema das mulheres é muito mais elaborada e interessante, Pondé tece um discurso que demonstra a própria desarticulação de seu pensamento sobre o assunto. Mistura as coisas e, no mesmo artigo, é capaz de falar das bicicletas em Copenhague, da falta de educação dos europeus e do banho com pouca água... É perfeitamente possível discutir diversos assuntos em um mesmo texto. No entanto, o que ocorre na escrita de Pondé é a própria prova da falta de rigor do raciocínio. Ele não consegue fazer as conexões entre todos estes assuntos, de modo que os recados são dados como se o leitor avisado fosse quem devesse articular o que ele mesmo não fez.
O texto desastrado evoca o que há de pior no pensamento dos homens sobre as mulheres e estabelece, sobretudo, uma relação de desigualdade entre os gêneros que não poderia ser mais conservadora. Para o autor, a igualdade somente deve ser enunciada na lei porque, na realidade, as diferenças seriam o que mais importa.
Esse tipo de análise, na verdade apenas a exteriorização de uma opinião tacanha, é o que vem ganhando espaço cada vez maior em nossos jornais e revistas. Um tipo de conservadorismo que não tem vergonha de se mostrar porque se pensa protegido por uma condescendente liberdade de expressão. Nada contra o fato de que o jornalismo esteja caminhando para este lado, menos radical e libertário e, com certeza, mais reacionário e de direita. É só que a gente cansa de ler tanta bobagem travestida de inteligência. Tanto cinismo fantasiado de ironia. Tanta boçalidade fingida de irreverência.
Mostrando postagens com marcador feminismo. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador feminismo. Mostrar todas as postagens
quarta-feira, 13 de julho de 2011
Pondé e as Mulheres como Objeto
Labels:
feminismo,
Filosofia,
Folha de S. Paulo,
jornais,
mulheres
sexta-feira, 29 de abril de 2011
A BURCA E OS DIREITOS DAS MULHERES
Não há duvida de que quando falamos em diferenças culturais estamos em terreno escorregadio. Para além de qualquer análise antropológica, qualquer pessoa razoavelmente sensata percebe que o outro, aquele que não compartilha dos mesmos pressupostos culturais que nós, deve ter suas tradições preservadas. De fato, sempre que uma cultura tenta intervir em outra a tendência é ocorrer choques, tensões e, não raro, o velho colonialismo que aparece como discurso civilizatório.
Mas existe algo de esquizofrênico no debate atual sobre a proibição da utilização da burca e do niqab na França. Acabamos lendo discursos inflamados a favor da liberdade de expressão religiosa, discursos um pouco estranhos, para dizer o mínimo, na medida em que são sustentados por argumentos da ordem dos direitos humanos. Para falar a verdade, falemos diretamente: existe um consenso quase que unânime na esquerda de que o governo francês, de direita, ultrapassou os limites do razoável e está apenas perseguindo uma certa religião tida como perigosa para os valores ocidentais.
Ocorre que colocar a palavra burca e a palavra liberdade na mesma frase é muito mais perigoso do que parece. Ainda mais no caso de sustentar tal direito a se vestir como se queira como manifestação calorosa de garantia de direitos humanos.
A burca e o niqab são, sim, manifestações culturais e religiosas. Mas não são manifestações apenas culturais, são manifestações de subserviência cultural. Representam uma cultura que inferioriza, e isso ninguém pode negar, as mulheres. Trata-se, e aqui vamos ser um pouco generalistas, de uma cultura que prevê o apedrejamento até a morte de uma mulher que for considerada adúltera.
Será que o sistema dos direitos humanos pode ser relativista até o ponto de aceitar qualquer manifestação que degrada a mulher como mero símbolo de diferenciação cultural?
A liberdade religiosa, o Estado laico, a tolerância são historicamente batalhas dificeis que o Ocidente enfrentou, mas que acabaram dando o tom da dimensão religiosa minimamente aceitável dentro de Estados que respeitam os direitos humanos. No Ocidente, uma religião que se dispusesse a sacrificar criancinhas toda sexta-feira à noite para louvar os deuses certamente seria intolerável. Isto porque o regime da tolerância, desde sua formulação lockiana, não pode tolerar qualquer coisa. Existem questões que são intoleráveis, que não estamos dispostos a abrir mão em nome da diferença cultural.
Dilacerar o órgão genital feminino pode até ser um ritual de muita importância em certos lugares, verdadeira tradição, mas acreditamos que seria completamente insustentável, tal qual o apedrejamento até a morte, em nosso sistema jurídico.
A burca, e aqui pedimos licensa aos linguistas, não é um mero signo da opressão. Outros signos, como o crucifixo e o quipá poderiam, talvez, serem considerados opressivos, dependendo dos limites de cada um. A burca, no entanto, não é signo da opressão: ela é o próprio objeto que oprime.
A igualdade de todos é principio essencial de qualquer democracia e requisito primordial de Estados comprometidos com os direitos humanos. É, inclusive, o pressuposto jurídico da liberdade religiosa. As religiões têm o mesmo valor, em um Estado laico, porque são consideradas iguais, sendo justo qualquer caminho que os homens busquem para chegar aos céus. Porém, ao colocar a mulher como ser inferior ao homem, e em alguns casos, até como impura, não estamos jogando a lógica da igualdade.
Poderia-se objetar que quase todas as religiões fazem distinções entre homens e mulheres. Isso é verdade. Mas a consequência lógica disso não é que, portanto, nada devemos fazer. Pelo contrário, está mais do que na hora de colocarmos esta questão em debate.
Talvez, um dia, comecemos a debater a vestimenta de freiras, padres e monges. O debate que se coloca diante da sociedade, no entanto, vai além da lógica da idumentária religiosa. Trata-se de uma questão de direito. E não é porque não discutimos estas vestimentas que devemos também não discutir a burca utilizada pelas mulheres. A agressão, nesse caso, é estendida a todas, não importando o grau de relacionamento que queiram ter com a divindade. As freiras, por outro lado, escolheram dentre inumeras possibilidades de vida a via religiosa.
A história, nessa discussão, nada explica. A tradição não aponta para valores positivos que devem ser levados em consideração como requisitos fundamentais da identidade de uma cultura. Se é verdade que a burca tem toda uma história tradicional que sustenta a sua utilização, por outro lado, essa história é a do mais puro preconceito, uma história com a qual não devemos compactuar. A história não pode servir de argumento para a legitimação da iniquidade.
As mulheres sabem melhor o que tudo isso significa. É o velho, tradicional e cultural machismo o que está em jogo. Argumentar que, no caso islâmico, elas usam porque querem, é tripudiar sobre a inteligência das mulheres. No mínimo, caso se visite por turismo o Afeganistão, as mulheres teriam problemas com suas vestimentas – a cultura local não abriria exceções para as ocidentais que seriam tidas como impuras, pervertidas e assim por diante. Por que, então, em um Estado que pretenda cumprir os direitos humanos as mulheres teriam que obedecer a lógica da diferença de gênero e da submissão?
Não se trata, em todo caso, de proteger as mulheres que usam a burca contra si mesmas. A liberdade de usar esta idumentária é uma falsa liberdade. Tudo se passa como se o discurso dos direitos humanos dissesse: “está vendo, somos tão libertários que até permitimos que vocês demonstrem sua cultura machista.” Que espécie de liberdade seria essa de se utilizar como roupa justamente o que oprime?
A diferença é um valor a ser preservado, quanto a isso não há duvida. Desde que não signifique desrespeito à igualdade jurídica de todos. O limite entre o aceitável e o inaceitável muitas vezes fica obscurecido quando tratamos de questão tão difícil e importante para a discussão de valores humanistas. Os direitos humanos, no entanto, não servem apenas como abstrações. Devem representar politicamente e juridicamente a dignidade de todas as mulheres. A verdadeira liberdade de usar qualquer vestimenta, por mais curioso que pareça, para as mulheres que eram obrigadas a usar a burca por questões culturais, é fruto de uma lei que proibe a utilização de uma espécie de vestimenta. Não existe, de fato, liberdade de escolha para as mulheres muçulmanas se não se dispor de uma lei sobre o assunto. O universo familiar, as amarras culturais, as obrigações religiosas impediriam esta mulher de escolher efetivamente o que pretende usar como roupa nas ruas. É a escolha da não-escolha, argumento insustentável do ponto de vista de uma verdadeira liberdade.
O discurso que denuncia a burca como símbolo de opressão não é novo e também não constrói seu estatuto nas bandeiras tradicionais do feminismo. É a feminilidade que está em jogo. Mas a feminilidade que toda a mulher tem direito. O que os homens precisam perceber é que as diferenças que realmente importam não discriminam, de forma alguma, a mulher enquanto ser inferior. Pelo contrário, constroem a sua identidade própria.
O caso, também, não pode se limitar simplesmente a ideia de que a mulher com o rosto coberto representa um perigo para a segurança pública. Pensar assim é diminuir a questão. O problema não é o de identificar o inimigo, mas sim o de permitir a mulher formar e criar a identidade que bem quiser para si mesma. As roupas, assim, se mostram elementos de diferenciação em que cada uma das mulheres escolhe, de verdade, o que usar. Em outras palavras, o caso não diz respeito a segurança do Estado francês, mas aos direitos das mulheres que habitam a França.
É claro que os conservadores franceses adoraram a nova lei. Para eles, no entanto, não é uma questão de princípios, é puro preconceito e xenofobia. No entanto, para criticarmos tal governo, não podemos abrir mão da verdadeira igualdade entre os sexos, da liberdade que não dá tiro no próprio pé. A única saída viável da esquerda atual, nos parece, é sempre não admitir relativismos no que tange aos direitos humanos.
Labels:
burca,
direitos humanos,
feminismo,
igualdade,
mulheres
Assinar:
Postagens (Atom)