Talvez
se o busto de Apolo estivesse completo, com ombros e tudo, a luva cirúrgica não
precisaria ficar pregada na arquitetura de uma construção geométrica. Não
seria, obviamente, possível colocar a luva na escultura, afinal, bustos não têm
mãos, mas pode ser que a luva vermelha ficasse solta nos ombros invisíveis de
Apolo.
A luva de borracha nos incomoda,
sobretudo por ser vermelha, acostumados que estamos com uma higiene que
embranquece o vestuário. Mas, ela não é o único objeto de borracha. A bola também
aparenta ser feita desse material e, ali, inerte, nos induz a pensar em
movimentos maiores.
De certo modo, a bola de jogar parece
caber perfeitamente na luva, como se pudéssemos segurar o brinquedo com apenas
uma das mãos. Este senso de proporção acompanha o tamanho do busto. Seria
possível, inclusive, usar a luva para dar um estalo na face insensível de
Apolo, forçando esse Deus a demonstrar sentimentos humanos. Aquele que leva um
estalo na face sempre demonstra alguma espécie de sentimento humano.
Evidentemente, a construção geométrica
que está em segundo plano do quadro é demasiado pequena, se compararmos com o
tamanho dos demais objetos. Mas, sem dúvida, é o único elemento da composição
que está verdadeiramente do tamanho real.
O modo como a luva de borracha vermelha
está pregada à construção é algo que incomoda. Por certo, um prego de aço é
exagerado para segurar o peso de uma mera luva vermelha. É exagerado porque ela
é vermelha, não por causa de seu peso.
A bola de jogar dá a impressão de que é
preciso fazer alguma coisa com ela. Porém, é perfeitamente descartável. E se
fosse preciso pintar o quadro mais uma vez, de modo absolutamente fiel à
primeira versão, uma cópia completamente exata, uma segunda tela somente seria
a representação adequada da original se jogássemos a bola fora.
Isso
é verdade.
Não
é, no entanto, por ser de borracha, nem por ser verde, que a bola é
descartável. É porque ela tem um segredo, na sua inutilidade dentro da
composição, que transborda o sentido da pintura como um todo.
Se a bola de jogar fosse parar em outro
quadro, uma representação exclusiva da bola de jogar, uma representação verde,
como não poderia ser diferente, uma vez que é uma bola de jogar, teríamos um
quadro que incomodaria mais que esta Canção
de Amor. Isto porque a bola tem um segredo, na sua inutilidade dentro da
nova composição, que transborda o sentido da pintura como um todo. O problema é
que a pintura como um todo seria somente a representação da bola de jogar
verde. Este é o segredo: a bola de jogar é verde.
Existe música na pintura. Trata-se, sem
dúvida, de uma canção de amor. Não é o estalo na face do busto de Apolo
(inadvertidamente, esta ideia é tentadora) o que pode produzir a sonoridade,
provocando este Deus a se manifestar. Há algo de divertido em estapear os
deuses. É o trem que passa que produz toda a musicalidade. É uma música por
demais urbana, pois representa os amores na solidão das metrópoles. O ritmo da
passagem do trem, um som contínuo e sedutor – uma marcha – essa é a melodia da
canção. Mas, é preciso estar atento para o fato de que no exato momento em que
vemos o trem ao fundo do quadro, no instante preciso em que sua presença se faz
sentir, quando percebemos que a pintura estaria incompleta sem a sua
representação, ouvimos, nitidamente e sem maiores avisos o seu apito.
Este apito, singularmente curto,
corresponde ao refrão da canção.
Algo preocupa muito na lógica da
compreensão do quadro. É certamente uma questão essencial e, pode-se dizer que,
após o som do apito, naquele momento em que percebemos o trem, acaba por nos
intrigar profundamente pois diz respeito à direção que devemos tomar nas
questões amorosas. Pode ser que seja, inclusive, o mais importante da
composição: não dá para saber ao certo se o trem, ao fundo da tela, produzindo
fumaça, seguirá para a esquerda ou para a direita.