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terça-feira, 19 de outubro de 2021


Quem tem medo do “Pequeno Príncipe”?

Rodrigo Suzuki Cintra

 

Quando ele chegou, eu já estava ali escondida no fundo da sala. Os outros se esparramavam pelas outras cadeiras e, sem me ver, ele começou a se arrumar lá na frente para iniciar aquela espécie de homilia particular que inventou para si e que apelidou formalmente de “aula”. No limite, uma espécie de masturbação verbal que é exercida por homens cultos quando querem demonstrar poder pela razão.

Minha presença era mais do que justa. Era até sagrada se ele levasse a sério tudo que dizia quando afirmava que uma lição é um evento público e, depois daquelas duas semanas que se recusou a falar comigo, também era um direito meu que ele vislumbrasse meu aparecimento repentino em sua vida. No fundo mesmo, sabia que ele ia amar me ver e que suas esquivas faziam parte do incompreensível jeito de ser desses homens que, sobretudo, cheiram a masculinidades maiores a todo tempo. Truque de pirata.

Esperei começar a fala para me levantar e sentar na primeira fileira. Andei devagar para que ele pudesse admirar o meu corpo enquanto caminhava, pois estava usando o vestido preto de sempre e tenho certeza que quando ele viu a cena deve ter sentido um pouco de tesão. Não existe outra opção de olhar para as mulheres andando se o olhar é de um tarado, afinal de contas. Pois, eu sempre tive certeza absoluta que quando ele olhava para qualquer mulher, tinha vontades sexuais reprimidas. E quando ele negava essa conduta de machinho, percebia mais ainda o cinismo daquele sujeito.  

Tudo bem que ele não hesitou no discurso quando me viu ali, uns 7 metros de distância, mas ficava esperando que ele gaguejasse a todo momento. Eu bem que ia gostar disso. Por alguns instantes, pensei que por causa de nossa intensa paixão pregressa, ele fosse desistir da importância de falar sobre qualquer outra coisa programada para a aula e começasse a falar comigo diretamente. Em público seria melhor ainda porque eu tinha muita coisa a dizer para aquele homem ridículo e todo mundo precisava saber o quanto ele me fez mal. Talvez fosse uma boa ideia insistir naquela conversa que ele estava obrigado a ter comigo, que ele me devia enquanto uma mulher que tem o que dizer, alguém que sabe o que quer e tem o direito de se expressar. Estava disposta a ter essa última discussão, a qualquer custo. Os telefonemas que eu fazia na madrugada e as andanças pela vizinhança dele não estavam surtindo efeito. Ele nunca atende o celular e quase sempre está fora de casa.  

Como suspeitei, ele havia deixado a pasta de trabalho na primeira fileira, perto de mim. Esse tipo de homem confiante jamais suspeita que seus ex-alunos de tempos longínquos vão entrar na aula e abrir a sua surrada pasta de couro marrom. Lembrei que era a mesma ingenuidade que ostentou quando não percebeu que abri a terceira gaveta da escrivaninha da casa dele enquanto ele dormia, às 3h da madrugada, aquela que ele cuidava com segurança e não queria que ninguém abrisse. Nada me impede de fazer o que eu quero e era altamente suspeito existir um lugar particular interditado para mim na casa dele.

Que espécie de segredo esse cara podia esconder?

Meu presente estava embrulhado em papel azul e a fita era rosa. Conheço o homem e sei que gostaria dessa estética. Coloquei dentro da pasta, lá no fundo, quando ele se virou inocentemente para a lousa. Era uma edição de luxo de “O Pequeno Príncipe”. Ele não tinha a obra no meio daquela biblioteca infinita e era culpado, obviamente, de não ter lido um clássico incontornável.

Esse recado ele teria que aceitar, ah, se teria!

Levantei e estava quase abrindo a porta quando escutei no meio do palavrório dele uma palavra solta: “princesa”. Ele deve ter percebido que eu ia sair e quis me lisonjear, tenho certeza. Olhei para trás e ele estava de novo virado para lousa. Abri a porta com som e fúria, demorei uns segundos por ali. Tenho certeza que ele me olhou e admirou, deve ter sentido uma baita saudade da minha bunda, só pode ser. Conheço o homem, fiquei com ele direto por sete semanas. E aprendi direitinho quando ele disse, certa vez, que existe toda uma eternidade dentro de um segundo.  

domingo, 29 de janeiro de 2017

Diagnóstico Preciso, um conto de Rodrigo Suzuki Cintra


         Cheguei, como de costume, atrasado para a sessão. Claro que eu não gostava nem um pouco de ir lá todas as semanas. Mas, meu comportamento, pelo que diziam, exigia intervenções maiores.
          Ele estava me esperando. Nunca perguntava o motivo de meus atrasos. A verdade é que eu me atrasava só para ver se ele ia falar alguma coisa. Nas nossas conversas, invariavelmente, somente eu falo. Não é bem, então, o que se poderia chamar de uma conversa. Mas, essa parece ser a técnica da coisa toda. Sabia que aquela seria a última sessão. Eu já não aguentava mais aqueles truques intelectuais baratos e além disso, no fundo, tudo que bastava era só eu não querer mais aparecer por lá. Ninguém me levaria à força, obviamente. Avisei, por respeito, mas sem maiores avisos, que seria nosso último encontro. Ele concordou. Não falou nada. Apenas acenou afirmativamente com a cabeça. Eu estava me lixando para tudo aquilo, então, já de saída na porta, antes de dar a despedida final, resolvi fazer alguma pergunta cínica – daquelas típicas coisas que adoro fazer. Eu ia fingir, pela última vez, que me interessava por aquelas conversas: ia simular um interesse no meu próprio caso (como se eu, no fundo, não me conhecesse melhor do que ninguém).
          “Doutor, diga-me com franqueza, qual é o seu diagnóstico?
          Ele me olhava fixamente, mas, não parecia querer falar. Decidi, então, pressionar um pouco: “Eu já venho aqui há muito tempo. Acho que o mínimo que o senhor poderia fazer é ser sincero comigo.”
          Então, ele respondeu: “Você é um impostor!”
          Resolvi investigar melhor a afirmação. Era a nossa última consulta, e afinal, aquilo era uma tese um pouco estranha. Disse: “Mas, doutor, por que diz isso?”
      Ele respondeu prontamente dessa vez: “Você anda se fazendo passar por você mesmo!”
          Não respondi. Desci pelo elevador. Saí para o sol. Atravessei a rua fora da faixa de pedestres. Dobrei a primeira esquina à direita. Não pensava em nada. Eu estava indo a pé para algum lugar qualquer. Talvez, para casa. Dobrei à direita. Estava, de fato, até mesmo feliz, afinal, estava me livrando de uma chatice das boas. Pensei, inclusive, em dar uma passada em algum boteco. Talvez eu devesse, inclusive, comemorar. Eu até que gosto de beber sozinho em botecos sujos. Dobrei à direita e fiquei a olhar o sol, os pássaros, até as nuvens me encantavam com seus formatos inesperados. Comecei, também, a olhar fixamente para as pessoas que passavam por mim. Atravessei a rua na faixa de pedestres. Caminhei alguns metros. Subi de elevador. O corredor era longo e estava escuro. 
          Cheguei, como de costume, atrasado para a sessão.