I
O
chapéu é por demais inusitado, personalíssimo, e chega mesmo a ser ousado,
quase insolente, se levarmos em consideração o fato de que é composto
basicamente por figuras geométricas dispostas de uma maneira aparentemente
aleatória.
Claro que isso já é uma forma de
impostura, uma vez que toda geometria que se pretenda aleatória é, em verdade,
a própria negação da geometria. Há sempre um princípio organizador nas formas
geométricas, elas são avessas ao caótico, de modo que basta decifrar sua lógica
interna para inviabilizar a sensação de que essas formas possam ser dispostas
sem alguma espécie de simetria própria.
Porém, os desenhos no chapéu dessa
mulher-enigma, basicamente compostos pelas ocasiões do negro no branco ou
vice-versa, são misteriosos a seu modo e decifrar o seu padrão é tarefa
difícil.
As figuras no chapéu parecem escapar –
quando fixamos uma das formas, outra delas dá a impressão de sorrateiramente
começar a se ocultar.
Por isso, talvez, alguns dizem,
inclusive, que estabelecer como se deslocam essas formas, essa brincadeira de
esconde, é a melhor maneira para começar a compreender essa mulher.
Existe, na essência do chapéu, um jogo
geométrico entre o visível e o invisível que potencializa o caráter misterioso
da fotografia. Mas, obviamente, os defensores dessa tese – os “analistas do
chapéu” (como ficaram historicamente conhecidos) – são aqueles mais tendentes a
matematizar a condição humana, e se esquecem, com frequência, de investigar, na
sua ânsia por delimitar quadrados, retângulos e triângulos, outros aspectos da
imagem desconcertante da mulher na fotografia.
II
Olhar
o próprio observador, perfurar o espectador, olhar para além e não enxergar
propriamente ninguém.
III
Há algo naqueles dedos que sugere
indiscutivelmente a feminilidade. Não é, como poderia se pensar, o fato de
serem menores e mais finos que os dedos dos homens, com suas mãos maiores e
mais brutas. Tampouco é a presença dos anéis o que nos certifica que se trata
de uma mulher.
É o modo como foram capturados pelo
instantâneo.
Levemente
dobrados, sutis, delicados ao tocar o casaco de pele. Dedos que sugerem
movimentos mais suaves, talvez menos bruscos. Dedos que fazem manha, que
delongam as ocasiões, e que são menos objetivos ao cumprir a tarefa de levantar
a gola do casaco de pele. Dedos de tempo lento, habituados aos caprichos
próprios à atuação, sempre demorando em completar cada movimento, como se cada
ação fosse uma espécie de performance.
IV
Somente
uma lente objetiva poderosamente aguçada poderia registrar o exato segundo em
que Rrose está propositalmente se atrasando alguns breves instantes para fazer
qualquer coisa absolutamente irrelevante: tudo se passa efetivamente na
cadência distendida de um momento meticulosamente alargado.
V
Toda
e qualquer mulher, de maneira absolutamente manhosa, atrasaria o ato de arrumar
o casaco de pele apenas alguns breves instantes só para ser registrada na
fotografia como uma mulher ligeiramente manhosa atrasando o ato de arrumar o
casaco de pele apenas alguns breves instantes antes de fazer alguma coisa de
importância sabidamente superestimada.
VI
É
preciso não estar entendendo absolutamente nada se o caso é o de indagar se a
mulher da fotografia é uma atriz ou não. Se ela está indo ao teatro ou se acaba
de sair de cena.
Em um sentido muito particular, toda
mulher é ela mesma e, ao mesmo tempo está sempre em cena.
O mais interessante da fotografia, na
verdade, é outra coisa.
Ela
enigmaticamente nos lembra de algo sobre as mulheres que vez ou outra deixamos
escapar e que pode passar despercebido inclusive por elas, acostumadas a
simplesmente agir da maneira habitual. A fotografia é de Rrose, mas bem poderia
ser de qualquer mulher representada em um momento em que se arquiteta
propositalmente, mas de maneira natural, as formas corporais e espirituais que
compõem aquilo que chamamos de feminilidade.
Talvez o segredo dessa fotografia seja
que ela consegue retratar perfeitamente, na captura do instantâneo, uma mulher
em um momento de verdade absoluta. Em performance ou não, o que no fundo é a
mesma coisa, a mulher que busca a plenitude feminina é aquela que não se cansa
de atuar, no teatro da vida, de acordo com aquele sonho maravilhosamente
impossível que ela mesma inventou para si.