Rodrigo Suzuki Cintra
“No âmbito do marxismo, a
ligação entre literatura e sociedade não é uma audácia, é uma obrigação.”
Roberto Schwarz
Quando Antonio Candido escreveu seu ensaio sobre as Memórias de um
sargento de milícias acabou fazendo mais que reavaliar a tradição crítica
sobre este romance. De fato, como constata Roberto Schwarz, o crítico realizou
a proeza de escrever em 1970 nosso primeiro estudo propriamente dialético.
Tratava-se, na ocasião, de um ensaio literário que, por sondar a
experiência social brasileira, ativava o programa materialista.
Em sua Dialética da malandragem, nosso Autor escrevia de forma
clara e precisa, sem alardear vocabulário carregado de terminologias, e
explicava, com a paciência de professor, os motivos pelos quais as Memórias
de um sargento de milícias devem ser compreendidas como uma obra singular
em nossa tradição literária.
Fugindo da caracterização europeia logo de saída, ao sustentar que o
romance de Manoel Antônio de Almeida não era picaresco nem documentário, nosso
Autor estava de maneira indireta assumindo a posição de que a literatura
brasileira não é mera repetição de formas estrangeiras, mas sim algo novo.
É nesse sentido que o herói de Memórias
não deve ser entendido como uma figura pícara, como na experiência
literária espanhola: ele é malandro. A determinação de suas
características faz mais que mostrar especificamente quem é Leonardo Filho, mas
o insere em uma tradição. Uma tradição brasileira que segue desde a Colônia,
manifestada pela figura de Pedro Malasartes, e percorre a história literária
brasileira até o modernismo no século XX, com Macunaíma e Serafim
Ponte-Grande - a malandragem. O
malandro é o aventureiro astucioso, gosta do “jogo em si”, está sempre no
limite entre o lícito e o ilícito e será a figura chave para a compreensão do
ensaio de Antonio Candido. Isso porque o malandro é figura que existe
efetivamente tanto no campo da ficção quanto no da realidade.
As Memórias, como aponta
Antonio Candido, são únicas no panorama de nossa ficção oitocentista porque não
expressam a visão de nossa classe dominante. O autor das Memórias
suprime os escravos e as classes dirigentes, sobrando-lhe um setor intermediário
e anômico da sociedade, cujas características, entretanto, serão decisivas para
a medida das relações ideológicas entre as classes sociais.
Tratava-se de caracterizar os homens
livres e sua lei. Estes homens viviam num espaço social intermediário e
anômico, em que não integravam a ordem, mas também não podiam dela prescindir.
Talvez o maior achado de Antonio
Candido tenha sido o de perceber que as Memórias operam através da
lógica da dialética entre ordem e desordem. Ordem e desordem seriam a própria
forma do romance, a “lei de sua intriga”, seriam o princípio que organizaria a
realidade e a ficção.
A figura do malandro é a mais
adequada a este tipo de organização de mundo em que forças da ordem, como a
polícia, por exemplo, concorrem com as forças da desordem. Ele é o tipo que
transita entre os dois mundos. Está sempre atuando no limiar, no cinzento,
entre o que se pode e o que não se deve fazer. A alternativa lícito/ilícito é
perfeitamente relativizada pelo malandro. O malandro encarna a esperteza
popular, sabedoria genérica da sobrevivência em um mundo repleto de obstáculos
e iniquidades.
Antonio
Candido consegue, inclusive, sintetizar a questão da dialética da ordem e da
desordem em uma imagem que capta do livro: o chefe-de-polícia, major Vidigal,
vestido com a casaca do uniforme, mas com as calças domésticas e exibindo, sem
querer, seus tamancos. A imagem, boa demais para ser descartada, mas que
somente a leitura do crítico faz perceber, aponta para os dois “hemisférios”
nos quais orbitam a vida dos personagens e as relações sociais descritas no
romance. Nem mesmo o pólo mais evidente da ordem, o da polícia de Vidigal,
passa livre da desordem que caracteriza a vida dos personagens que o próprio
Vidigal persegue.
Tudo se passa como se os personagens
descrevessem uma verdadeira dança entre lícito e ilícito, sem que possamos
dizer, satisfatoriamente, o que é um e o que é outro.
Tomemos o roteiro das relações
amorosas que pululam aos montes no romance. São “vinte mancebias a cada
casamento e mil uniões fortuitas a cada mancebia”. Em outras palavras, os
homens e mulheres livres e pobres se arranjavam da maneira que a vida parecia
mandar, em uma oposição clara entre os casamentos devidamente realizados de
acordo com a ordem moral, e as relações de convivência efetivas, mas não
oficiais.
Fazendo uma crítica materialista
toda a seu jeito, Antonio Candido, esbanjando originalidade, impregna de
dialética seu ensaio porque vislumbra a dialética na composição do próprio
romance de Manoel Antônio. De caso pensado ou não, o fato é que as Memórias
serviriam de registro da sociedade oitocentista – afinal, “Era no tempo do
rei”...
O valor do ensaio de Antonio Candido
não está na mera ligação entre sociedade e literatura. Está muito mais no fato
de nosso Autor buscar a sociedade através da forma literária e não o contrário.
O elemento estético está em primeiro lugar.
Em outras palavras, antes de intuída e objetivada pelo romancista, a
forma que o crítico estudou foi produzida pelo processo social, porém apesar da
obra relatar seu próprio tempo e sociedade, a dinâmica das Memórias tem
um valor estético todo próprio.
Como explica Roberto Schwarz:
“Assim, o ensaio retoma o esforço de interpretação da experiência brasileira,
que havia sumido da crítica exigente, e talvez se possa dizer que inaugura a
sondagem do mundo contemporâneo através de nossa literatura.”
Redução da forma social a uma forma
estética, a verdade é que nosso Autor, como aponta Paulo Arantes, percebeu que
na circulação dos personagens das Memórias pelas esferas sociais da
ordem (Brasil burguês) e da desordem (pólo negativo do Brasil burguês),
estrutura central do romance, existia a fórmula que estilizava um ritmo geral
da sociedade brasileira na primeira metade do século XIX.
A Dialética da Malandragem, balanceio caprichoso entre ordem e
desordem, define não apenas a estrutura da obra que se critica, mas explica a
fisionomia do país que a produziu.
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