domingo, 3 de março de 2019

Tradução: Poema de E. A. Poe



Um sonho dentro de um sonho
                                   Poema: E. A. Poe
                                   Tradução: Rodrigo Suzuki 





Receba este beijo em tua fronte!
Partirei rumo a um novo horizonte,
Mas confesso: olhos nos olhos defronte –
Não erra quem proclama que disponho
Os meus dias como se fossem um sonho;
Se a esperança não tem mais serventia,
Seja de noite ou mesmo de dia,
Uma visão real ou talvez nenhuma,
Será que tudo não passa de bruma?
Tudo que vejo, sou ou suponho
É apenas um sonho dentro de um sonho.

Fico parado como que perdido
Em uma praia qualquer sem sentido,
E seguro firme dentro da mão
Um punhado de areia que peguei do chão –
Poucos grãos! Ainda assim, me atormento
Pois pelos dedos fogem, não tenho alento,
Enquanto lamento – enquanto lamento!
Oh Deus! Será que não consigo conter
Nem um único pedrisco sem sofrer?
Oh Deus! Será que não consigo salvar
Um ao menos da fúria do mar?
Será que tudo que vejo, sou ou suponho
É apenas um sonho dentro de um sonho?




A dream within a dream
                        Edgar Allan Poe

Take this kiss upon the brow!
And, in parting from you now,
Thus much let me avow –
You are not wrong, who deem
That my days have been a dream;
Yet if hope has flown away
In a night, or in a day,
In a vision, or in none,
Is it therefore the less gone?
All that we see or seem
Is but a dream within a dream.

I stand amid the roar
Of a surf-tormented shore,
And I hold within my hand
Grains of the golden sand –
How few! yet how they creep
Through my fingers to the deep,
While I weep – while I weep!
O God! can I not grasp
Them with a tighter clasp?
O God! can I not save
One from the pitiless wave?
Is all that we see or seem
But a dream within a dream?



sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

Vivendo em um fio de navalha: Kafka, (anti) filósofo do direito


Vivendo em um fio de navalha: Kafka, (anti) filósofo do direito
Rodrigo Suzuki Cintra

(A narrativa objeto desse ensaio, pelo qual o texto inicia, está completa e foi escrita por Franz Kafka. A tradução, intitulada “Sobre a questão das leis”, é de autoria de Modesto Carone. Os comentários posteriores aos três parágrafos que seguem são meus e projetam um esboço de interpretação.)

Nossas leis não são universalmente conhecidas, são segredo do pequeno grupo de nobres que nos domina. Estamos convencidos de que essas velhas leis são observadas com exatidão, mas é extremamente penoso ser governado segundo leis que não se conhecem. Não penso neste caso nas diferentes possibilidades de interpretá-las nem nas desvantagens que há quando apenas indivíduos e não o povo inteiro podem participar da sua interpretação. Talvez essas desvantagens não sejam tão grandes assim. As leis são de fato muito antigas, séculos trabalharam na sua exegese, certamente até essa interpretação já se tornou lei, na verdade continuam a existir as liberdades possíveis no ato de interpretar, mas elas são muito limitadas. Além do mais é evidente que a nobreza não têm motivo algum, na interpretação, para se deixar influenciar pelo interesse pessoal em detrimento do nosso, pois as leis foram desde o início assentadas para os nobres, a nobreza está fora da lei e precisamente por isso a lei parece ter sido posta com exclusividade nas mãos da nobreza. Naturalmente existe sabedoria nisso – quem duvida da sabedoria das velhas leis? –, mas é também um tormento para nós, provavelmente algo inevitável.
            Aliás essas leis aparentes podem na realidade ser apenas presumidas. É uma tradição que elas existam e sejam confiadas à nobreza com um segredo, mas não se trata nem pode tratar-se de mais que uma tradição antiga e, por sua antiguidade, digna de fé, pois o caráter dessas leis exige também que se mantenha o segredo da sua existência. Mas se nós do povo acompanhamos com atenção desde os tempos mais remotos as ações da nobreza, possuímos a respeito delas registros dos nossos antepassados, demos a esses registros um prosseguimento consciencioso e acreditamos reconhecer nos inúmeros fatos certas normas que permitem concluir esta ou aquela determinação histórica, e se procuramos nos orientar um pouco por essas conclusões filtradas e ordenadas da forma mais cuidadosa em relação ao presente e ao futuro – então tudo isso é incerto e quem sabe somente um jogo mental, uma vez que essas leis, que aqui tentamos adivinhar, talvez não existam de maneira alguma. Há um pequeno partido que realmente pensa assim e busca provar que, se existe uma lei, ela só pode rezar o seguinte: o que a nobreza faz é a lei. Esse partido vê apenas atos de arbítrio dos nobres e rejeita a tradição popular que, na sua opinião, só traz proveitos diminutos e casuais e na maior parte das vezes, pelo contrário, grave prejuízo, já que ela dá ao povo uma segurança falsa, enganosa, que leva à leviandade diante dos acontecimentos vindouros. Esse prejuízo não deve ser negado, mas a esmagadora maioria do nosso povo vê a causa disso no fato de a tradição ainda não ser nem de longe suficiente, havendo portanto necessidade de que muito mais nela seja pesquisado; de qualquer maneira, por mais gigantesco que pareça, seu material ainda é muito pequeno e séculos terão de passar antes que a tradição acumulada baste. O sombrio dessa perspectiva para o presente só é iluminado pela crença de que virá um tempo no qual – de certo modo com um suspiro – a tradição e o seu estudo chegarão ao ponto final, que tudo terá ficado claro, que a lei pertencerá ao povo e que a nobreza desaparecerá. Isso não é dito, porventura, com ódio da nobreza – em absoluto e por ninguém. Odiamos antes a nós mesmos porque ainda não podemos ser julgados dignos da lei. E na verdade foi por essa razão que aquele partido – muito sedutor em certo sentido –, que não acredita em nenhuma lei propriamente, permaneceu tão pequeno: porque também ele reconhece plenamente a nobreza e o seu direito à existência.
            A rigor só é possível exprimi-lo numa espécie de contradição: um partido que rejeitasse, junto com a crença nas leis, também a nobreza, teria imediatamente o povo inteiro ao seu lado, mas um partido como esse não pode nascer porque ninguém ousa rejeitar a nobreza. É nesse fio da navalha que nós vivemos. Certa vez um escritor resumiu isso da seguinte maneira: a única lei visível e indubitavelmente imposta a nós é a nobreza – e será que queremos espontaneamente nos privar dela?

*

Escrito inclassificável, “Sobre a questão das leis” opera nos limites fronteiriços entre dissertação-argumentativa, ensaio filosófico e prosa narrativa, seu ritmo bem arquitetado se resolve em meros três parágrafos, mas, apesar da economia do texto, sua potência formal e seu conteúdo desconcertante desconstroem as estruturas do poder por dentro. O texto se refere à uma comunidade específica (seu povo, sua nobreza e suas leis); mas é preciso não estar entendendo nada se o caso é o de não perceber que as reflexões do narrador, apesar de serem particularíssimas, bem podem servir para interpretar todas as comunidades em geral.      
A técnica de narrar é certeira e se utiliza de um duplo recurso. Ao mesmo tempo em que tudo parece ser um mero desabafo casual de um membro do povo, certas afirmações são por demais rigorosas para serem ditas sem caso pensado. No vai e vem que estrutura o texto, uma forma dialética de se orquestrar o escrito, o narrador nunca foge do tema principal, aquele que dá título à narrativa (“Sobre a questão das leis”), se bem que constata com uma percuciência notável que a questão das leis é derivada de uma outra questão.  
A reflexão do narrador sobre às leis pode parecer, a princípio, um conjunto de ideias absolutamente corriqueiras sobre as características das leis de sua comunidade, mas, com a acuidade de analista, o narrador enxerga na lei a verdade sobre sua estrutura, função e sentido: a nobreza.
Nesse caso específico, Kafka não brinca de esconder por trás da lei um significado oculto ou misterioso, um inacessível do sentido; está tudo lá: o problema da lei, no fundo, é o problema da nobreza.
Pode-se dizer, assim, que o narrador é especialmente perspicaz: ele é aquele que sabe. Percebe que as leis não foram feitas para o povo, percebe que são instrumentos de dominação de classe, relaciona o conteúdo das leis ao capricho dos nobres, pondera se as leis não são os próprios nobres em si (uma daquelas identificações bizarras próprias ao sistema do capital), e, por fim, reflete sobre a ideia de revolução, uma vez que acabar com a lei é acabar com a própria nobreza.
O raciocínio que estrutura o percurso pelos parágrafos do texto é especialmente bem construído e pode bem ser que denuncie a progressiva tomada de consciência do narrador sobre o fundamental por trás da questão das leis. A frase inicial (Nossas leis não são universalmente conhecidas, são segredo do pequeno grupo de nobres que nos domina), impregnada de luta de classes, enuncia a dominação e, não é preciso muito, para perceber que as leis cumprem um papel importante para a estruturação do poder na comunidade específica a que o narrador pertence. Apesar de não serem conhecidas, as leis funcionam com perfeição para a classe específica dos nobres. Porém, gradativamente, ao longo dos três parágrafos que compõem a totalidade da narrativa, por meio do cálculo preciso do narrador, o problema das leis começa a se mostrar como o problema da nobreza.
O primeiro parágrafo do texto descreve as dez características das leis da comunidade do narrador, são elas:
1)      Secretas: não são universalmente conhecidas, são segredo do pequeno grupo de nobres;
2)      Antigas: essas velhas leis, As leis são de fato muito antigas, séculos trabalharam na sua exegese;
3)      Efetivas: são observadas com exatidão;
4)      Interpretáveis: diferentes possibilidades de interpretá-las;
5)      Tendenciosas: as leis foram desde o início assentadas para os nobres;
6)      Particularistas: a nobreza está fora da lei;
7)      Parciais: [a lei] posta com exclusividade nas mãos da nobreza;
8)      Sábias: naturalmente existe sabedoria nisso, Quem duvida da sabedoria das velhas leis?;
9)      Incômodas: mas é também um tormento para nós;
10)  Inevitáveis: provavelmente algo inevitável;
O curioso por trás dessas dez características que compõem a descrição do narrador sobre as leis de sua comunidade é que nenhum desses elementos corresponde ao discurso liberal tradicional sobre às leis. Certamente que as leis para o liberalismo devem ser: (1) Públicas; (2) Novas (adaptadas ao progresso contínuo); (3) Precisas (é necessário saber qual a sua função exata); (4) Interpretáveis (não apenas pelos indivíduos da nobreza, mas passíveis de serem interpretadas por todos); (5) Neutras; (6) Universais; (7) Imparciais; (8) Sábias (mas, de uma sapiência que fuja ao discurso de classe); (9) Adequadas; (10) Evitáveis (o sujeito deve ter a capacidade de se portar em acordo ou desacordo com a lei, conforme sua livre escolha).  
Logo no primeiro parágrafo, Kafka já deixa claro que não reproduzirá o conteúdo dos manuais protocolares de direito que dizem que a lei deve ser pública, neutra, universal... O leitor, nas primeiras linhas, já entra de cabeça no universo desigual da legislação daquela comunidade a qual o narrador pertence.
Nas idas e vindas argumentativas da narrativa, podemos dizer que o narrador faz uma abstração cada vez maior sobre a questão das leis, mas isso não leva a um deslocamento etéreo, descolado do real. Ao contrário, com uma consciência de classe cada vez mais aguçada, o narrador, membro do povo, vai inserindo as leis na concretude própria das relações de poder que imperam no real. Desde a primeira frase do texto, a nobreza não se esconde propriamente por trás das leis, isso não é sequer necessário. A denúncia e a reflexão do narrador não vão passar exatamente por esse argumento: são mais elaboradas.
Esquematicamente, na lógica do primeiro parágrafo, tudo se passa como se as leis por serem exclusividade da nobreza, servissem à dominação de classe. A lei, nesse caso, é instrumento para a dominação do povo pelos nobres, uma vez que fica claro que a nobreza é executora da lei. A lei, aqui, ao contrário do que ocorre com o discurso liberal sobre a legalidade, não se apresenta como ferramenta que permite acobertar a luta de classes inerente a um mundo em que existe o povo e a nobreza. A nobreza, nesse caso, não se utiliza de um aparato legal pretensamente igualitário para operar a dominação. A igualdade não é pressuposta em nenhum momento do texto.
No parágrafo seguinte, após algumas reflexões sobre a existência ou não das leis, que nos enganam um pouco, mas que depois retomam o fio da meada, uma outra ideia se apresenta. A lei não é um dispositivo que separa as classes sociais, é o próprio capricho e interesse da nobreza. Não se trata apenas, então, de um mecanismo de dominação. Como o que a nobreza faz é a lei, as ações de uma classe social específica se universalizam como se fossem ações de todos. Fica a impressão de que o capricho dos nobres se transforma, em termos de dominação, na própria lei. A lei não apenas separa povo/nobreza; ela, aqui, se mostra o modo como os interesses da nobreza colonizam a conduta do povo, afinal, a nobreza está de fora da lei, enquanto o povo deve segui-la à risca. Isso é ideológico: os caprichos são elevados à altura de lei.
O terceiro parágrafo arremata a coisa toda: a única lei visível e indubitavelmente imposta ao povo é a nobreza. Agora, não é apenas uma lei que serve à dominação de classe (1º parágrafo), os interesses de classe elevados à potência de lei (2º parágrafo), mas sim que a classe dos nobres é a própria lei. Em outras palavras, a única lei que impera naquela comunidade, como em todas as outras por sinal, é a de que a desigualdade existe e deve ser perpetuada. Dizer que a nobreza é a lei não é apenas dar autoridade a essa classe social; é dizer que da efetividade de sua dominação decorre a estrutura legal que torna possível sua dominação. Tudo se passa como se pelo fato de ela mandar na comunidade toda no campo do real, automaticamente ela manda também no campo do legal. Uma obviedade, na prática, na medida em que a verdade da comunidade em questão é a de que existe nobreza e existe povo, ou seja, a desigualdade é a característica principal da coisa toda.
Mas, o narrador, membro do povo, leva ao limite sua percepção da problemática das leis. Se ele enuncia, no primeiro parágrafo, que existem desvantagens quando apenas indivíduos e não o povo inteiro podem participar na interpretação das leis, situando a noção de individualidade como atributo exclusivo da nobreza, e não do povo – uma análise bem acertada –, no segundo parágrafo, em um lampejo de esperança, diz que haverá um tempo em que a lei pertencerá ao povo e a nobreza desaparecerá. Isso pode parecer, inicialmente, quase que revolucionário: leis que imperam para todos e ausência da nobreza. Porém, se levarmos às últimas consequências a própria lógica que o narrador nos permite traçar quando lemos essa narrativa inusitada, permeada de uma forma argumentativa que não nos dá opção que não seja raciocinar dialeticamente, a verdadeira revolução traria, junto com a desaparição da nobreza, a extinção de toda forma de lei.
A tomada de consciência do narrador, sua percepção de classe, sua análise profunda sobre a questão das leis, não se completa, no entanto, até que ele formule uma outra estratégia. Apesar de ser um membro qualquer do povo – um sem-nome –, é um verdadeiro analista do poder, sabe muitas coisas e pondera sobre a questão das leis de um modo especialmente aguçado. Suas observações são especialmente afiadas e questionam a ordem de uma cultura inteira.
Quando enuncia o fio de navalha  em que vive o povo, quase nas linhas finais do texto, a coisa toda ganha um novo peso. A questão se coloca de uma maneira clara, mas, ele faz questão de sublinhar que o argumento só pode ser expresso numa espécie de contradição. Se surgisse um partido que rejeitasse as leis e a nobreza ao mesmo tempo, tal partido teria todo povo a seu lado. Porém, esse partido não pode nascer porque ninguém rejeita a nobreza. Tudo nos levaria a crer, portanto, que nada vai mudar nessa comunidade específica.
            A verdade é que somente quando esse fio de navalha for ultrapassado é que, talvez, o narrador se liberte não só da nobreza e da dominação, mas também, de toda e qualquer estrutura legal, que é sempre um dispositivo de classe para organizar a servidão. O caminho da tomada de consciência completa só pode se dar ao meio da revolução. É lutando contra a nobreza que, efetivamente, o narrador e sua comunidade poderiam se libertar da ideologia e ter uma consciência de classe mais plena. Aqui, algo fica evidente. No processo revolucionário, não se tem duas etapas distintas: 1. Tomada de consciência de classe; 2. Luta contra a nobreza e dominação. A verdade é que a revolução é mais simples do que isso. É no próprio processo de luta que se percebe com maior clareza contra o que se luta.
Talvez isso apontasse para um momento pré-revolucionário ainda, em que o narrador não estivesse de todo seguro sobre o que se deve efetivamente fazer.
           Mas, o corte da navalha, de repente, ganha gume.
           Pois não é que na última frase do texto ele introduz um novo elemento? Um escritor que, certa vez¸ teria resumido tudo de uma maneira precisa. A técnica é estranha, no mínimo, porque estamos acostumados a encontrar escritores a formular histórias, certas vezes, nos começos de textos, e não ali, na última frase.
            E qual é a formulação do escritor de certa vez?
            Ela começa exatamente com os mesmos argumentos que ele dialeticamente foi construindo ao longo do texto: a única lei visível e indubitavelmente imposta a nós é a nobreza. Não há nada de novo até aqui. O tal escritor de certa vez aparentemente não fez mais que escrever o que nosso narrador já havia escrito. Redobro?
       A sentença final, não obstante, revigora o escrito pois adiciona um dado a mais. Será que queremos espontaneamente nos privar dela [nobreza]? Uma palavra apenas está fora do lugar. Tem mais peso que as demais porque é escrita com a vontade: espontaneamente. A questão das leis, então, que tinha se mostrado ao longo de todo o texto um problema que se referia à nobreza muda de lado. Espontaneamente aponta, sem dúvida, para a vontade própria. Agora, a questão das leis é questão do povo. De um texto que, inicialmente, somente constatava a ligação lei-nobreza, um texto meio que ultra-reflexivo, passamos a um novo convite.
           Pela própria conta e risco do povo, será que não está na hora de agir?
       Talvez esse seja o fio de navalha mais contundente da reflexão do narrador. O limite entre nobreza e povo é o limite da revolta. Então, continuar por mais um parágrafo ou mais uma linha não é apenas desnecessário, é a derrota, pois seria, de certa forma, admitir que nada poderá mudar.

***

1.    O narrador termina com um corte que não é apenas preciso, é esperançoso até. Sua última dúvida aponta para um lugar absolutamente relevante para a estruturação do escrito, pois, o inverte. Agora, pela primeira vez, ele está falando do povo. Se ele continuar a refletir, nada mudará, é evidente. Então, ele pára! Mais uma palavra e tudo estaria perdido. Sua ponderação final é o verdadeiro fio de navalha: uma vez que todo povo sabe que a verdade da dominação é a nobreza, por que não subtraí-la definitivamente da comunidade em questão?

***

2.      Kafka, mais uma vez, sugere o cálculo imponderável: uma forma do saber que é menos poder. “Sobre a questão das leis”, o escrito, é afiado no melhor de uma dialética literária. Existe espaço de sobra para uma utopia que, obviamente, opera sempre meio que às avessas em seu funcionamento, ou simplesmente tarde demais. Em Kafka, até o sentido da utopia passa por uma utopia do sem-sentido. Pode não parecer, porém, há algo de esperança mesmo nisso. E o desfecho dessa história nos parece desconcertante não tanto porque não a compreendemos, não sabemos, mas, porque já não podemos. Isso é quase nada, e no entanto, apenas na frase final, repetição do pressentido, surge o momento do agir – estranho modo de contar uma história da liberdade. Tudo começa pelo final, e ainda assim, a tragédia é que lá no começo, do texto e das leis, deveríamos ter negado o próprio escrito, aproveitando o instante para cortar com navalha afiada a garganta dos canalhas.


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Esse texto foi apresentado no XXVIII Congresso Mundial de Filosofia do Direito e Filosofia Social (IVR), em Lisboa, julho de 2017 e foi publicado na Revista Sibila - revista de poesia e crítica literária - em 01/02/2018.










segunda-feira, 6 de novembro de 2017

Tradução - Poema de W. B. Yeats

When you are old
W. B. Yeats

When you are old and grey and full of sleep,
And nodding by the fire, take down this book,
And slowly read, and dream of the soft look
Your eyes had once, and of their shadows deep;

How many loved your moments of glad grace,
And loved your beauty with love false or true,
But one man loved the pilgrim soul in you,
And loved the sorrows of your changing face;

And bending down beside the glowing bars,
Murmur, a little sadly, how Love fled
And paced upon the mountains overhead
And hid his face amid a crowd of stars.



Quando velha
Tradução: Rodrigo Suzuki Cintra

Quando velha e grisalha e cheia de sono,
E cochilando ao fogo, resolver esse livro pegar,
Lendo-o lentamente, sonhando com o doce olhar
Que costumavas ter, com suas sombras de abandono;

Quantos amaram teus momentos de imensa graça,
E amaram, de verdade ou não, tua beleza,
Mas apenas um homem amou tua tristeza,
E amou os sofrimentos de tua face em mudança;

E ao dobrar-te sobre as brasas para vê-las,
Murmurar, quase infeliz, como voou o amor radiante,
Passou por cima das montanhas logo adiante,
E escondeu sua face ao meio de um milhão de estrelas.


domingo, 30 de julho de 2017

Roda de Bicicleta, 1913 (Duchamp) Ou À Sombra da Arte de Obra





I

              A arte é tudo que for o caso.
         Esta roda de bicicleta disposta sobre um banquinho branco é perfeitamente inútil. Este banquinho branco sob uma roda de bicicleta é perfeitamente inútil.
      Talvez tivessem utilidade prática como objetos de indústria se estivessem separados, mas daí não fariam uma sombra, dependendo do ângulo da luz, absolutamente improvável.
         Se os bancos servem para se sentar e as rodas de bicicleta para se mover, existe algo nesta construção que não leva a nenhuma dessas possibilidades. Esta montagem é contraditória: há algo nela de potência de movimento, mas está profundamente inerte.
         Não é bem uma escultura o que se propõe, apesar de situar-se no espaço. É um evento singular. Um evento do novo. Na física, os eventos são quadridimensionais. Somam à altura, à profundidade e à largura, o tempo. Os eventos situam hora e local. Esta Roda de Bicicleta é um evento malcriado. Situa-se no espaço, mas nega a inércia e também o movimento. Seu tempo é sempre o do instante. Mas, bem pode ter sido ontem e, sem dúvida, persistirá para amanhã e depois.
         Sem ser escultura, a montagem, que não tem assinatura aparente, causa impacto por ser, em sua materialidade dos usos cotidianos, apenas uma justaposição vertical. Trata-se de um deslocamento, este de ser outra forma de arte, que devolve a ela a sua dimensão mais importante: um certo ar de escândalo. Sua força artística está em uma rejeição: se nega a ser objeto de consumo ou de indústria, apesar de ser composta por elementos de consumo e indústria.
         É só uma ideia.
         A luz do ambiente, com o passar do dia, provoca transformações na sombra desta peça. É curioso olhar para arte por meio de sua sombra. Há algo de original nisso também. A luz, dependendo do horário, incide sobre a montagem com ângulos e intensidades diferentes. O que provoca as mais variadas formas de distorção em sua sombra. E pode se ter a nítida impressão que a obra tem vida; pois sua sombra se movimenta, aumenta de tamanho, diminui, fica mais evidente ou se apresenta quase como uma mera sugestão de sombra.
         Olhar para essa justaposição inaugural de um novo modo de fazer arte, por meio de sua sombra, é como que investigar os rastros que formalizaram a estrutura como ela é. Escura, mutável, irresponsavelmente avessa à ideia de representação dos elementos da composição, a sombra, misteriosa, sempre nos prega peças se o caso é tentar entender a obra a partir dela.
         A sombra é estar ali e aqui.   
         A sombra é um antes e um depois.
         Um banquinho e uma roda de bicicleta são o que são e ainda assim.

II
Uma roda de bicicleta preta é uma roda de bicicleta preta.
Um banquinho branco é um banquinho branco.
Uma roda de bicicleta preta em cima de um banquinho branco não é uma roda de bicicleta preta em cima de um banquinho branco.

III

         Não podemos sentar nesta roda de bicicleta ou pedalar de banquinho. Juntos, estes dois elementos são, em verdade, um novo elemento.
         Quem sabe alguém que passe andando por esta estrutura se negue a perder tempo para entendê-la. Quem sabe a peça não desestabilize mais as formas prontas dos críticos mais respeitados. Talvez as crianças desejem brincar com a coisa toda e os adultos, secretamente, pensem serem capazes de criar coisas do gênero. 
         Dizem que é perfeitamente possível repetir esta montagem infinitamente. Um diâmetro de roda de aproximadamente 64 cm. Um banquinho de aproximadamente 60 cm. E basta colocá-los na posição indicada. O seu truque escapa à lógica da arte tradicional que evita a imitação. Pois, trata-se, em todo caso, sobretudo, de um conceito.         
         É claro que ocorre de imitadores fazerem justaposições variadas de outros objetos de indústria, às vezes, até mesmo elaboradas, porém, dificilmente conseguem o mesmo efeito.
     Escritores excêntricos tentam, sem sucesso, descrevê-la da melhor maneira possível. Há sempre uma perda. Obviamente, como não poderia ser de outro modo, algo escapa às palavras e tudo que se pode fazer é contemplá-la.  
Mas, um pensamento radical é deixar a Roda de Bicicleta como está. Perdida em um dos salões de galeria. Apenas mais uma peça entre peças. Deixá-la, ali, esquecida em sua improbabilidade.
Deixar que a luz do ambiente modele sua sombra. Aguardar que a luz solar projete no chão e na parede uma imagem como em um relógio de sol.
E, inevitavelmente, perceberíamos em sua sombra o movimento lento do objeto estático. Criando caso, certamente, pois, em verdade, sua sombra é, sempre, um momento do agora.

IV

A sombra da roda de bicicleta preta não é a roda de bicicleta preta.
A sombra do banquinho branco não é o banquinho branco.
A sombra de uma roda de bicicleta preta em cima de um banquinho branco é uma roda de bicicleta preta em cima de um banquinho branco.

V

Já pensei, algumas vezes, em tentar derrubar a famosa justaposição. Duvido que a roda de bicicleta esteja solta sobre o banquinho. Civilizado, quando a vi pela primeira vez, tentei soprar o mais forte que conseguia, um sopro de plenos pulmões, para ver se a estrutura se movia de algum modo.
Mas, a roda simplesmente não se movimentava.
Depois, acabei por perceber que, mesmo que conseguisse destruir a lógica da estrutura, sua sombra provavelmente não se alteraria. Ficaria ali, enigmaticamente, colada ao chão.
Trata-se de uma obra que não proporciona qualquer concessão. O sucesso na destruição em nada modificaria a sua força e o seu alcance. Sua sombra já estava impressa na minha mente e na história da arte.
Curiosa maneira de perceber que a arte é uma forma absoluta de dizer “não”.
         

sábado, 1 de julho de 2017

Citação do mês - Jul/2017

"É preciso ter uma ideia do que se irá fazer. Mas deve ser uma vaga ideia"

Picasso

réquiem para um poeta vivo


Decidi escrever sobre o filme “Ferroada” (2016) de Adriana Barbosa e Bruno Mello Castanho. Não pensei em escrever sobre o filme após ter assistido. Era enquanto assistia, no meio da platéia do cinema, que minha imaginação se movimentava. O filme é sobre um poeta, um coveiro: um homem. Comecei por tentar escrever uma crítica formal, bem cortada, elogiosa. Desisti. Resolvi escrever uma crítica ao filme via poesia. Achei que era uma forma de respeito, de certa maneira, ao próprio personagem principal. Também, é claro, aos cortes da montagem dos diretores. Pode acontecer, às vezes, de uma forma de arte impulsionar outra. Se o filme sobre o Tico saiu de sua literatura indo parar nas telas, agora, devolvo imagens em letras. Mas, faço isso a meu modo: com cortes que emendam as imagens… no mundo da vida.  
réquiem para um poeta vivo

para Tico


embora palavras

não passem

de nuvens

ainda que

formatos indeterminados

do imaginário

discordem tolos

teimando contornos

meramente sugestivos

fugidios da

primeira arquitetura

*

dos símbolos


também agulhas

 podem ser

 pois picam

alfinetam juízo

coçam por

dentro a

tragédia infinita

anunciado assassinato

no texto

difícil do

golpe arriscado

*

da escrita


talvez lápides

obras invisíveis

mas sempre

vermelhas como

virgulas suicidas

do mergulho

do ferrão

certa loucura

mistura nariz

de palhaço

no veneno

*

de escorpião


pudera conceitos

dessem conta

enquanto letras

que enterram

a música

interna do

sentimento quando

silêncio um

grito pressentido

acorde final

ferroada poética

*

de marimbondo


naqueles signos

construções narrativas

onde veículos

fatais se

movem sempre

ou nunca

via contramão

o caso

daquele homem

argumento de

si mesmo

*

do não


nas imagens

sempre algo

de morte

estrutura a

nebulosa arte

do sonho

ressignifica mundo

num blefe

o último

da forma

dialética

*

de vagabundo




Esse poema foi publicado na Revista Zagaia, em junho de 2017.