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segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Ensaio publicado na Revista Sibila (Revista de Poesia e Crítica Literária) em 23/08/2021 sob o título "Um conto de Kafka".  

http://sibila.com.br/critica/um-conto-de-kafka/14163


Uma mensagem imperial, de Franz Kafka

(O conto objeto deste ensaio e pelo qual o texto se inicia está completo e foi escrito por Franz Kafka. A tradução intitulada “Uma mensagem imperial” é de Modesto Carone. Os comentários posteriores ao conto são de minha autoria.)

Rodrigo Suzuki Cintra

 

“Quem escuta uma história está em companhia do narrador; mesmo quem a lê partilha dessa companhia.”

Walter Benjamin, O narrador.

 

            O imperador – assim consta – enviou a você, o só, o súdito lastimável, a minúscula sombra refugiada na mais remota distância diante do sol imperial, exatamente a você o imperador enviou do leito de morte uma mensagem. Fez o mensageiro se ajoelhar ao pé da cama e segredou-lhe a mensagem no ouvido; estava tão empenhado nela que o mandou ainda repeti-la no seu próprio ouvido. Com um aceno de cabeça confirmou a exatidão do que tinha sido dito. E perante todos os que assistem à sua morte – todas as paredes que impedem a vista foram derrubadas e nas amplas escadarias que se lançam ao alto os grandes do reino formam um círculo –, perante todos eles o imperador despachou o mensageiro. Este se pôs imediatamente em marcha; é um homem robusto, infatigável; estendendo ora um, ora o outro braço, ele abra caminho na multidão; quando encontra resistência aponta para o peito onde está o símbolo do sol; avança fácil como nenhum outro. Mas a multidão é tão grande, suas moradas não têm fim. Fosse um campo livre que se abrisse, como ele voaria! – e certamente você logo ouviria a esplêndida batida dos seus punhos na porta. Ao invés disso porém – como são vãos os seus esforços; continua sempre forçando a passagem pelos aposentos do palácio mais interno; nunca irá ultrapassá-los; e se o conseguisse nada estaria ganho: teria de percorrer os pátios de ponta a ponta e depois dos pátios o segundo palácio que os circunda; e outra vez escadas e pátios; e novamente um palácio; e assim por diante, durante milênios; e se afinal ele se precipitasse do mais externo dos portões – mas isso não pode acontecer jamais, jamais – só então ele teria diante de si a cidade-sede, o centro do mundo, repleto da própria bossa amontoada. Aqui ninguém penetre; muito menos com a mensagem de um morto. – Você no entanto está sentado junto à janela e sonha com ela quando a noite chega.

 

Resumo

 

O conto “A Mensagem Imperial”, de Franz Kafka, pode ser entendido a partir dos posicionamentos em que os sujeitos envolvidos na armação literária (autor, leitor, narrador e personagens) se situam para a interpretação do texto. Nosso ensaio propõe que para além da interpretação de que o personagem imperador envia a nós, os leitores, uma mensagem que nunca chegará ao destino, existem outras mensagens em jogo na elaboração complexa desse texto. Sugerimos, em uma segunda hipótese de interpretação, que o conto inteiro “A Mensagem Imperial” também é uma mensagem, nesse caso de um narrador para nós, leitores. Também indicamos a possibilidade do leitor, justamente por compreender as táticas narrativas desse narrador perfeitamente, também poder se transformar no enunciador de uma mensagem: a interpretação de sucesso. Por último, discutiremos a possibilidade do autor, Franz Kafka, por meio do narrador em jogo, estar mandando uma mensagem aos leitores em potencial do conto. Essas hipóteses de interpretação de “A Mensagem Imperial” se situam nas fronteiras da literatura, quando operam em regime de metaliteratura.

            Kafka é um incansável analista do poder. Poucos de seus textos não exploram dimensões dessa temática. Em “A Mensagem Imperial”, o autor trata das facetas do poder na própria arte de narrar, em mais uma obra sobre a dominação, o conto denuncia também certa forma de violência específica: a interpretação literária.

 

Introdução

            Talvez não seja à toa que o imperador, após segredar a mensagem no ouvido do mensageiro, tenha mandado que esse repetisse a mensagem em seu próprio ouvido. O vai-e-vem de quem enuncia a mensagem e quem a recebe, nesse breve conto que propõe o desafio de sua interpretação, sob risco de sermos, enquanto leitores, alvo do escárnio de um narrador calculista demais, é tão importante quanto o conteúdo da mensagem que se quer transmitir. E uma leitura mais radical do conto bem poderia propor que a substância da mensagem imperial e as posições dos sujeitos em relação a ela são, no fundo, a mesma coisa. Ou mesmo que o conteúdo da própria mensagem possa variar de acordo com o emissor do recado. Pois, é por camadas sobre camadas de interpretação, variações dos emissores e mensageiros, reposicionamentos do leitor, que o conto nos impressiona: em aproximadamente vinte linhas, em um único parágrafo, Kafka arquiteta um modo próprio de se aproximar de seus leitores. Nas letras bem traçadas de “Uma mensagem imperial”, a mensagem do imperador ao súdito distante, o relato que nunca chega ao destino proposto, é apenas a primeira das camadas a serem percorridas. Pois, o breve conto, em cálculo de façanha, pode ser entendido como a análise e ativação do circuito que opera as relações entre os sujeitos (autor, narrador, leitor, personagens) envolvidos na história que se conta, como processo de comunicação entre autor e leitor da obra, como estatuto do narrador em relação ao autor, como relações entre personagens fictícios e leitores reais, enfim, um conto que opera em regime de determinação de quem é enunciador e de quem é receptor. Posicionamentos que, se bem calculados em suas consequências, podem, a título de exagero, dobrar o conto sobre si mesmo. A metaliteratura, nesse conto, desafia interpretações inventivas porque se situa no registro próprio da narração.

            O narrador é suspeito, traiçoeiro e cínico por inclinação. Comanda imperialmente todo escrito em seu andamento, pois determina tempo, espaço, personagens e ações. O personagem da representação da respeitabilidade, de onde emana um poder inicial, o imperador, está moribundo, morrerá na temporalidade interna do próprio conto, mas nunca foi poderoso de verdade na armação da trama que realmente importa. A não ser que se façam interpretações simbólicas dos significados do conto, itinerário possível e recomendável, mas que está distante de nossa fórmula autoral própria de ensaiar texto sobre texto. O mensageiro do recado misterioso não alcançará seu destino enquanto for um mero personagem secundário, é preciso mais que ser infatigável e robusto para entregar palavras decoradas segredadas aos ouvidos, e seus esforços por espaços quase infinitos já estavam comprometidos no primeiro passo – o imperador está no leito de morte e esse morrer impedirá categoricamente a entrega da mensagem, pelo que nos relata o narrador. O leitor ocasional do conto, homem de carne e osso que segura o livro no exato momento da leitura, é convidado, por engenho de estratégia e tática de armadilha, a participar do escrito, como se fosse possível, por dentro da trama, redobrá-lo como personagem, e precisará sofrer nas interpretações de obviedade da crítica literária sem imaginação, antes de se libertar como sujeito. As multidões, casas, palácios, escadas, portões, pátios, enchem o cenário como obstáculos intransponíveis, os espaços próprios do ritmo do conto, mas ninguém poderia entregar a mensagem, na verdade, porque uma morte (do imperador) inviabilizou a possibilidade de acessar o locus em que se situa o sonhador da janela, o leitor na noite, o destinatário final da misteriosa mensagem imperial –, como enuncia, ao fim do escrito, em tom de superioridade (inclusive, e principalmente, intelectual) o narrador.

            A estratégia literária de base, no fundo, é a habitual.

Kafka nos obriga, sempre, na trama essencial de seus textos, após a primeira leitura, a reler o escrito.

Porque é por meio do efeito literário criado nesse ler/reler que percebemos aquela lógica própria feita de absurdo e que é política a todo momento, pois, a organização estrutural do poder e dominação é contraposta à própria vida intelectual insubordinada do autor em que a temática de base era feita de fragilidade e culpa. Em “A mensagem imperial” não poderia ser diferente. Só que, nesse conto feito de intrincados modos de se propor caminhos de interpretação, parece estar mais em jogo os mecanismos de poder entre autor, texto, personagens e leitor: existe opressão na narrativa e ela é quase uma rede feita de camadas sob camadas de textualidade a desafiar os processos de comunicação. Nesse texto, Kafka investiga o poder próprio da palavra, da comunicação e das fórmulas de interpretação. Aqui parece que o embate do autor se situa no âmbito do poder que se estabelece na relação literária. O autor parece querer explorar o poder das operações táticas de narração.

            Mas, se a releitura consola e consolida apreciações de maior precisão, é aquele primeiro golpe de vista no texto kafkiano que fornece bússola mais acurada, um quase suspeitar de nosso próprio entendimento, um arrepio de lógica ou um desconforto de certezas o que garante, também, na violência textual meramente sugerida, a fórmula de enfrentamento de mundo desse autor singular.

A primeira leitura desse conto próprio para leituras sucessivas talvez seja a mais proposicional, no fundo.

Convidado, na qualidade de leitor, a participar da trama arquitetada, o homem concreto que segura o livro e está a ler “A mensagem imperial”, logo de saída, se sente desconfortável com o modo diminuído com que o narrador o enquadra no conto. Porque desde o princípio, no primeiro olhar para o texto todo, a operação realizada pelo narrador de posicionar o leitor dentro do escrito não o deixa muito conformado ou feliz por essa participação maior. O leitor entra na tessitura das letras, vira personagem do conto que está a ler, aceita o convite, mas, pode ser que perca os significados mais instigantes do conto justamente por ter concordado em seguir as regras desse narrador. De um modo ou de outro, o leitor precisa ler esse formidável escrito até o fim.

É possível, para atribuir significado a “Uma mensagem imperial”, percorrer, inclusive, outras hipóteses e fórmulas de encaminhamentos, até mesmo científicas, que ajudem na investigação desse conto feito de improbabilidades. Hipóteses psicanalíticas, investigações etimológicas, análises sociológicas, filosóficas, enquadramentos religiosos, todas essas formas de aproximação metodológicas, se feitas com rigor, podem contribuir para entendermos melhor a mensagem. Nosso recorte, no entanto, é o de demonstrar emissores e receptores de mensagens no conto, estruturações de posições dos sujeitos, reais ou fictícios. Um ensaio nas bordas de uma metaliteratura meramente sugerida.

Ensaiaremos, a título de hipótese, quatro possibilidades de envios de mensagens que reposicionam os sujeitos envolvidos no processo que engloba autoria, textualidade e leitura. Superpostas umas sobre as outras, existe uma sofisticação crescente na constituição dessa obra singular. E o texto kafkiano funciona porque nos obriga a pensar sobre nós mesmos enquanto leitores transformados em personagens.

Mas, antes de explorar as mensagens em jogo, é preciso investigar a relação mais imediata entre o narrador e o leitor. Se é estruturante da obra, não é de todo evidente a sua oposição mais singular. E é preciso enunciar a estrutura de base do escrito para, posteriormente, demonstrarmos outras formulações de poder não tão evidentes.   

Na moldura da primeira frase e da última do conto, quase as únicas que aparecem o você [leitor] como personagem textualmente descrito, começamos como o só, o súdito lastimável, a minúscula sombra refugiada na mais remota distância diante do sol imperial; e terminamos fechando o conto com Você no entanto está sentado junto à janela e sonha com ela [a mensagem] quando a noite chega. Começamos o texto como leitores-personagens insignificantes, pequenos, e terminamos o conto caracterizados como alguma espécie de românticos ingênuos, nos limites do tédio próprio aos babacas. O texto é muito bom, mas nos espeta a espinha dorsal: ninguém quer ser diminuído ou não ser capaz de entender letras. E, menos ainda, ao ser transformados em personagem, aguardar por uma mensagem que não chega e que nunca saberemos o conteúdo. É preciso notar que quem diminui o leitor, apesar de o incluir no relato, é o narrador e não o imperador, que, inclusive, vai mandar mensagem para ele.

Entre a caracterização, no leito de morte do imperador, do leitor ser súdito lastimável e a finalização na última frase em que está sonhando com a mensagem quando a noite chega, todo resto do texto consiste em mostrar as dificuldades na jornada do mensageiro para encontrar o leitor, o destinatário final.

Os espaços são feitos de espaços dentro de espaços, pátios levam a pátios de castelos que circundam castelos, escadas levam a outras escadas – o trajeto a ser percorrido entre emissor (imperador) e destinatário (leitor) é estruturado quase como um infinito de obstáculos que se alongam e se repropõem novamente a cada investida de sucesso em uma ultrapassagem.

O tempo é um assim por diante, durante milênios– aparentemente, ninguém viverá para contar a mensagem, pois temporalidade de milênio bem bloqueia qualquer expectativa de sucesso maior, mesmo aos obstinados.

A multidão é grande, suas moradas não têm fim, e como é preciso passar por ela esticando os braços ou mostrando o símbolo imperial, também fornecem uma imagética de empecilhos gigantescos aos caminhos que são compostos pelas grandes dificuldades de a locomoção.

Todos esses obstáculos são muito avantajados. Hiperbólicos de propósito. Espaços grandes demais, durações de jornadas infinitas, multidões intransponíveis. E, como na descrição do leitor pelo narrador, o leitor é sozinho, sonhador da noite, homem de janela, pessoa que aguarda mensagens que não virão, uma minúscula sombra refugiada nos confins do império, a magnitude espacial, temporal e de ação do conto lhe sobrepõe uma existência inteira, prontamente, ao longo das frases.  

A estratégia, aqui, parece ser clara. Ao antepor um tamanho diminuto e humilhante para o leitor, preso ali na primeira frase, todo resto do conto, até quase a última frase, é feito dos empecilhos gigantes do império. As frases vão sendo lidas, e os espaços são grandes demais, o tempo é insanamente longo, as multidões servem para atrapalhar: em registro de hipérbole das circunstâncias da entrega da mensagem e de diminuição do leitor nas duas únicas frases que o caracterizam, o resultado é a humilhação direta ou indireta do leitor, enquanto personagem, ao longo do conto inteiro.

O diminuto homem sozinho dos confins do império que espera por uma mensagem, à noite na janela, jamais receberá o recado. Seu feito de abobado é aguardar por algo que era impossível, ao que parece, acontecer desde o princípio.

A tática de se propor, enquanto narrador, superior ao leitor faz parte do modo específico como ele arma a narração da história. Ao operar uma estrutura pelo exagero diminui o leitor-personagem e engrandece os espaços, o tempo e a multidão. É uma técnica formal e literária – e se está nas entranhas do estilo da narração, está presente nas ambições e na formulação do caráter desse narrador.  

Aliada a essa primeira estratégia de diminuição do leitor enquanto personagem, uma segunda forma de expressão também é calculada pelo narrador. Diz respeito a ação. Quase ao fim do texto, o narrador entoa [...] e se ele se precipitasse do mais externo dos portões – mas isso não pode acontecer jamais, jamais.

A impossibilidade de se alcançar efetivamente o mais externo dos portões pelo mensageiro fica quase que ofuscada pela declaração de que isso não pode acontecer jamais, jamais. A duplicação da palavra jamais efetivada pelo narrador mostra, inclusive aquela mistura de capricho, exercício de poder e superioridade que parece ser o modo específico com que o narrador lida com o que não lhe é conveniente. É perceptível porque é uma duplicação desnecessária, situa-se no limite da enunciação de uma autoridade textual que está tão segura de si que se permite repetir as interdições que propôs como máximas.

Aqui, a técnica é, sobretudo, política: o narrador não está propenso em considerar que a mensagem deva chegar ao seu destino. Mas, em irritabilidade de duplicidade (jamais, jamais), acabou se denunciando como um narrador que exerce o poder de contar a história como fórmula tática de personagem mandão.

Uma terceira forma de golpear o leitor vem pela leitura da lógica do próprio texto. Lendo as peripécias pelos castelos, pátios e escadas, subitamente, o discurso começa a mudar, torna-se mais agressivo, peremptório. Às vezes, opera nas bordas próprias de um exagero máximo e fornece a nítida impressão de que o narrador não quer que o leitor receba a mensagem. Mas, quando o narrador diz: Aqui ninguém penetra; muito menos com a mensagem de um morto, a interpretação textual do leitor pode vacilar porque, na lógica interna do conto, já era sabido que o imperador estava para morrer em seu leito. A frase se torna absurda, então, para um leitor atento e consequentemente o agride não pela via dos enquadramentos textuais, mas por fugir da lógica esperada de alguém que vai entregar a mensagem de um moribundo.

Trata-se, aqui, de uma provocação lógico-racional. Pois, exatamente pelo imperador ter morrido que talvez a mensagem tenha mais significado. Era essa a primeira hipótese de leitura – quase em regime de promessa – do conto que qualquer leitor faria.

Nos mecanismos de poder do narrador sobre o leitor, o primeiro é a diminuição do homem por contrastá-lo, via jogo de hipérbole, com grandezas espaciais, temporais e humanas; o segundo modo de humilhação; o capricho se denuncia em um enrijecer da narrativa escrita e na duplicidade de palavras que impedem o mensageiro de chegar a seu destino. O poder político em exercício literário. Em terceiro lugar, não permitir entrada no locus em que está o leitor, sob o argumento de que a mensagem era de um homem morto, foge a qualquer racionalidade imediata e agride o leitor porque lhe distorce a lógica. Pois foi justamente pelo imperador estar no leito de morte, moribundo, a querer mandar mensagem a um súdito, que essa ideia parece ser razoável e deveria ser cumprida.

            Se o narrador estabeleceu que o leitor é um personagem, um receptor da mensagem que jamais alcançará o objetivo, em sua fórmula e técnica de narrar também se denunciam as operações de um personagem autoritário, calculista e que gosta de exercer o poder – o narrador é um caprichoso político.

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A primeira hipótese de mensagem diz respeito ao recado que o imperador enuncia aos ouvidos do mensageiro para que esse entregue a informação para um receptor bem diferente do usual: o próprio leitor do conto. Mas, quem nos informa desse destinatário é o próprio narrador do texto. Essa mensagem, no entanto, não chegará ao leitor, que ficará apenas aguardando por ela. O narrador não sabe o conteúdo do recado em nenhum momento, mas, parece não se importar com isso, a mensagem era destinada ao leitor sonhador que ficará aguardando na janela inutilmente por ela. O leitor-personagem, que foi convidado à trama, nunca saberá o que o imperador queria dizer a ele.

Certamente que a melhor forma de interpretar o “você” duramente apontado como destinatário da mensagem imperial deve ser levar a arquitetura kafkiana a sério e nos colocarmos, enquanto leitores, como os destinatários da mensagem do imperador. Somos os leitores externos de um livro físico, mas participamos, em ritmo de personagens da própria narrativa, daquela estruturação dos percalços do mensageiro para entregar o recado para nós. Pois, o início do conto é claro e deve ser levado a sério: O imperador – assim consta – enviou a você, o só, o súdito lastimável, a minúscula sombra refugiada na mais remota distância diante do sol imperial, exatamente a você o imperador enviou do leito de morte uma mensagem.

            A mensagem segue do personagem imperador para nós, leitores, em regime de orquestração dos obstáculos a serem transpostos pelo mensageiro, e o resultado final, obrigatoriamente para essa interpretação, é que a mensagem não alcançará o destinatário. Nós, no ritmo interno dessa possibilidade de interpretação do texto, não vamos receber nunca a mensagem dada pelo imperador: somos apenas sonhadores na janela e nossa participação como personagens na trama não é só pequena – foi propositalmente diminuída pelo narrador. E se o narrador desconhece o conteúdo dessa mensagem, ele não demonstra saber disso em nenhum momento, o mensageiro fica sendo o único a conhecer o recado do imperador que, na temporalidade lógica do conto, morre lá pelo final do escrito.

            A lógica operando pelo absurdo, aqui, toma corpo, porque o narrador vai dizer que “penetrar no centro do mundo” não é permitido a ninguém, “muito menos com um recado de um morto”. Estranho modo de resolução da coisa toda, na medida em que o recado que se tem a obrigação de entregar tem origem justamente porque o imperador estava para morrer, e ao fim não pode ser entregue porque o imperador morreu, como se a vida do imperador, que estava por um fio, virasse subitamente condição de possibilidade para a entrega da mensagem. A mensagem que era para ser entregue porque ele estava a morrer, de repente, não pode jamais ser entregue justamente porque ele morreu.

 

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Uma segunda hipótese de interpretação é pensar que o conto inteiro, “Uma mensagem imperial”¸ é um recado e é também, em si, uma mensagem organizada estrategicamente pelo narrador, para a exegese do leitor. Pois se o narrador não é o imperador, nem o mensageiro, nem o receptor da mensagem, tudo que escreve está sob seu comando, inclusive situar o leitor como o receptor dos enunciados. Nada nos garante, sob o regime do escrito, que o narrador não seja o autor do conto inteiro, o sujeito que está por trás da inventividade da história bem pode ser o mesmo que a narra.

“Uma Mensagem Imperial”, o conto, pensado do título até o ponto final, se transforma subitamente em um recado que o narrador quer emitir para o leitor, que foi convidado a participar da história toda na qualidade de personagem. E algo a se perceber, nesse caso, é que o narrador é quem qualifica, posiciona, descreve e até mesmo manda nesse personagem inusitado: o próprio leitor do conto. Estranho modo de enunciação entre os sujeitos em jogo. O leitor, de carne e osso, que lê a obra, uma pessoa efetiva, nada pode determinar sobre si mesmo no conto e, em contrapartida, um narrador, alguém que enuncia e descreve o mundo nas palavras contidas em um livro, alguém que é pura ficção, determina mais sobre a posição do leitor na estruturação dessa interpretação específica do que um homem real.

Existe uma violência em jogo, até mesmo por insinuação de superioridade intelectual, em obrigar o leitor a ficar abobado na janela, como diz o fim do escrito e, pior: sendo um incapaz de perceber que o conto inteiro era um recado, uma mensagem literária que o intérprete simplesmente não conseguiria enxergar. Tudo se passa como se o leitor lesse o conto, mas não entendesse que ele, por completo, era uma estratégia de o diminuir como um intérprete: enquanto o leitor-personagem aguarda a mensagem que não chega nunca, um narrador ri da coisa toda, e pior, ri por último.

Nesse esquema de interpretação do conto de Kafka, o narrador não é apenas o enunciador da mensagem mais encoberta, a própria “Uma Mensagem Imperial”, mas também o próprio mensageiro de todo o escrito pois o texto inteiro está sob seu comando. É um sujeito que é narrador, mensageiro e, talvez – nada comprova o contrário –, o autor real do escrito. É uma interpretação em que o conteúdo da mensagem é de perfeito conhecimento do narrador, ele inventou toda a narração, e o insucesso do leitor em conhecer o recado vem de uma incapacidade de, até mesmo, levar a sério propostas literárias ficcionais.

 

3

            Mas, um outro registro interpretativo da lógica entre emissores e receptores das mensagens em jogo na leitura desse conto, os sujeitos da trama, também pode ocorrer.

            Nada obriga o leitor a não reconhecer o caráter suspeito e caprichoso do narrador.

            O leitor pode bem compreender a possibilidade de “A Mensagem Imperial”, o conto completo, ser também um recado, uma mensagem, para leitores. Nesse caso, obviamente, o intérprete da obra não estaria sozinho na janela a esperar pela mensagem, como pensaria e tentaria o enquadrar o narrador do conto. E esse narrador que ardilosamente transformava leitores em personagens e os diminuía por dizer que não entendem de recados, nesse caso, se transformaria, ele mesmo, em apenas um mensageiro, alguém que pretendeu esconder que estava dando um recado, mas, foi descoberto pela leitura do leitor atento.

            O narrador é quem não atinge o objetivo que pretendia, ele não consegue dar o recado aos ouvidos do leitor. E o intérprete se valoriza no processo todo de leitura, na trama dos sujeitos, porque ao não ser ridicularizado por falta de entendimento, se propõe também como um emissor de um recado: nem todo mundo se engana tão facilmente.

 

4

            Uma das formas de entrada no universo da literatura kafkiana é compreender suas composições como análises do poder. Pois, em maquinaria de sentença mortal (“Na colônia penal”), na opressão patriarcal (“A metamorfose”, “O veredicto”, “Carta ao pai”), na alienação burocrática do poder (“O castelo”), nas armações textuais de proprietário burguês e mandatário enquanto narrador (“A tribulação de um pai de família”) ou em tribunais que se espalham por todo real (“O processo”), Kafka explora e analisa diversas maneiras de manifestação de estruturas de poder.

            Não é muito recomendável se imaginar que o narrador de um texto é o seu autor empírico, que existe uma identidade perfeita entre o homem concreto que escreve e aquilo que é enunciado em texto.

            Mas, se pensarmos na possibilidade de Kafka, o autor, estar mandando uma mensagem para seus leitores em potencial, ou seja, a ideia de que ele é o próprio narrador da proposição toda, teremos que aceitar a ideia de que é ele quem enquadra o leitor, dentro do conto, a ser um sonhador na janela a não receber mensagens ou recados.

            Existe uma certa descrença de Kafka, se esse for o caso, na capacidade do leitor em compreender a sua obra. E se insinua, brevemente, uma relação autor-leitor em que o poder fica do lado do autor.

            Essa possibilidade, ao que nos parece, é absolutamente única em todos os textos de Kafka, o que faz de “A Mensagem Imperial” um texto estratégico para conhecer concepções literárias do autor, até porque a temática dos sujeitos envolvidos como emissores ou receptores de mensagens é o que estrutura essa forma artística de manifestação de poder.

            Pois em absolutamente nenhuma outra das obras de Kafka, ele se coloca do lado da manifestação do poder. Kafka, analista de muitas formas de poder, fica sempre do lado dos oprimidos, denuncia a dominação, demonstra sua irracionalidade, luta com palavras contra a violência. Os filhos que são dominados, animais que recebem violências, seres inanimados que ganham vida e são brutalizados, homens que lutam contra estruturas institucionais irracionais, máquinas que esmagam a vida: Kafka é um escritor do contra-poder.

            Nessa curiosa maneira de interpretar “Uma mensagem imperial”, autor sendo seu próprio narrador, e o conto um recado para potenciais leitores, teríamos a única obra em que uma demonstração de poder seria uma manifestação em que Kafka seria protagonista.

            O conto, nesse caso, engrandece mais ainda por ser singular e a dificuldade de sua tessitura bem autoriza Kafka a duvidar de nossas interpretações como leitores. Porque o que é certo é que ele sabia perfeitamente o que estava escrevendo, nós, leitores, é que inventamos formas de aproximação de maior ou menor sucesso da narração de gênio.     

 

 

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

 

Estratégias de Narrador em A mulher pequena, de F. Kafka

(O conto A mulher pequena é de F. Kafka, a tradução utilizada nas citações é de Modesto Carone, o ensaio, mero exercício escolar de primeira leitura, é de minha autoria.)

 

Dedicado aos que decidem, no pensar solitário, por própria conta e risco, tentar alcançar o tamanho que querem ter para a própria vida.

Rodrigo Suzuki Cintra

 

“Ora, essa mulherzinha está muito insatisfeita comigo, sempre tem algo a censurar em mim, diante dela estou sempre errado e irrito-a a cada passo; se fosse possível dividir a vida em partes mínimas e cada partícula pudesse ser julgada em separado, certamente qualquer pedacinho da minha vida seria um aborrecimento para ela.”

A Mulher pequena, de F. Kafka

 

A contrariedade é existencial, “questão de princípio”, e certa profundidade pseudo-obscura, em ritmo obsessivo de desaprovação, por preencher os sentimentos incompreensivelmente exagerados de gente pequena levou, ao que parece, o personagem-narrador do conto kafkiano ao discurso em registro textual. O feito literário, então, é menos opção por um cálculo qualquer de acerto de contas por parte desse personagem, como fica claro no escrito todo, uma vez que ele vive muito bem sem a mulherzinha, e mais provocado pelo caráter desproporcional da raiva que ele ocasiona na vida dela, o que o inclina, marcadamente, para aquelas reflexões talvez metódicas, mas, inúteis, de tentativa de compreensão da racionalidade em jogo quando se trata da construção incansável de um ódio absolutamente incomum. E é por demais evidente, mesmo no correr de leitura rápida do conto, que enquanto o papel do personagem-narrador na história é refletir com seu estilo particular, os prós e contras para uma tomada de decisão a partir das amarrações que o próprio texto engendra em seu vai e vem conjectural, à mulher pequena sobra a coadjuvância de um existir que se perfaz e se exerce somente na medida em que tem ódio de uma outra personagem. Na armação do conto, o personagem-narrador reflete em voz alta, mas no registro de escrita, e pode se dizer que sua existência é o próprio estilo peculiar com que organiza todo o discurso. A mulherzinha, por outro lado, se propõe mais importante que o narrador, uma vez que desagradá-la já é uma forma de culpa, e no entanto, nessa arquitetura textual de Kafka, ela é que se posiciona como objeto de análise. A existência ficcional do narrador se exerce pela reflexão, ao longo das frases encadeadas, para uma decidibilidade final que resolva o problema – e arremate o conto –, enquanto a forma de representação da mulher diminuta se encerra nos sorrisos engasgados que produz enquanto inflama uma raiva incomensurável.

Se o escrito revela um relacionamento problemático do narrador, descreve até infortúnios potenciais que, à título de hipótese, uma mulher menor poderia causar; na economia própria de sua peculiar progressão narrativa, um formato de quase-ensaio produz a sensação de um homem que pensa alto, e consigo mesmo, sobre a empulhação que a pessoa pequena lhe proporciona. No conto em que só o narrador fala, reflete e registra, a pequena obra-prima kafkiana sobre relações humanas e seus desencontros, o vagar do escrito leva a uma declaração espontânea de espanto perante aquele sentimento negativo incontrolável proveniente da mulher pequena, que descrita na sua particular obviedade de estatura baixa, característica que não se altera nunca apesar de virarmos as páginas do livro, parece ter dimensões físicas menorzinhas, como também pode significar aquele modo de ser diminuto que entende o mundo a partir da moralidade padrão e que faz do mais puro capricho valorativo pessoal uma regra universal. Pois, ela comparece nos parágrafos apenas para destilar, sem ter voz própria, por meio daquela montagem distorcida de caras e bocas que o narrador nos faz ver; insatisfações, censuras, aborrecimentos, negatividades e dores e apesar dele sequer se importar tanto com o modus operandi de suas lástimas, particularmente própria de criança teimosa, ou mulher que recebeu um adeus, toda a maledicência própria de mulherzinha contrariada inunda o escrito com o ecos da negatividade. Página após página do conto, ouvimos seus gritos abafados, grunhidos quase só simbólicos, contra ele e tudo que ele implica. Apesar do narrador ter sequestrado no texto as frases de indignação provenientes do tamanhinho da mulher, todo um gestual alentado na amargura produz a persona e a cena da desaprovação feita de desprezo.

Mas, nesse conto de Kafka, se ela é o objeto da reflexão momentânea, e também, participa com facilidade do rol das personagens que nos desagradam logo na leitura das primeiras linhas, é a estruturação das razões textuais no discurso do narrador que pode operar um registro de denúncia de sua inadequação real –, pois, sem ser criminoso de qualquer acusação precisa (só sabemos, ao certo, que ele irrita a moça diminuta), isso bem não significa que o personagem-narrador não seja culpado de outros crimes nos quais a pequenez moral e circunstancial dela apenas influenciem um caminhar existencial também problemático. Se o conto de Kafka é por demais bem escrito, preciso em prudência de refletir, a redução da mulher pequena a seu próprio tamanhinho, por meio das letras, é obviamente uma estratégia de composição singular. O que bem pode comprometer aquele status de pensador coerente, tolerante e racional com que o narrador tenta se apresentar.  

Conto breve em que só o narrador articula o encadeamento das ideias, a temática concreta até pode confundir, se o leitor cair em uma das duas armadilhas de interpretação mais fáceis, que permeiam a superfície das artimanhas dessa estratégia particular de narrar. Esse personagem principal que admite ser vítima de uma raiva incompreensível de uma mulher pequena não está, em hipótese alguma, escrevendo e narrando em regime de confissão. Não existe ali registro de redenção espiritual, social, comunicacional ou civilizatória. Nada aponta que um apelo a entidades superiores ou inferiores, por admissão de uma qualquer culpa de ocasião, possa solucionar o caso. O narrador não recorre a espíritos quaisquer como também não encontra solução em imperativos éticos, descarta a racionalidade comunicacional da mesma maneira que não obedece conselho de amigo, e sua atividade de escritura, então, parece não estar buscando aprovação de ninguém.

Além disso, também nada nos permite buscar um entendimento completo, global, dos motivos e causas para esse relacionamento desastroso descrito; a fala no texto não é partilhada, se bem que intuída em diálogos hipotéticos, pois, nesse conto singular parece ser a vez dele de gastar tempo no assunto. A mulher pequena, nesse conto, também não tem voz porque se trata antes de uma incomunicabilidade unilateral, é ela quem não conseguiria, por excesso de incômodo e repulsa, falar abertamente com o narrador e, portanto, tudo que lemos no texto é relato do modo particular com que um personagem-narrador lida, administra, reflete, esquece e pensa naqueles problemas diminutos de dia-a-dia que a pouca estatura pode proporcionar –, como se escrever lhe trouxesse a lembrança, só por ter que gastar tinta, que pessoas menorzinhas também existem no por aí. Talvez a mulher diminuta não consiga falar diretamente com o narrador por um asco primordial que lhe faria muito mal, mas, a hipótese simples de que pertencem a linguagens diferentes também é possível: não se entenderiam simplesmente porque ao olharem para as coisas do mundo não buscam os mesmos sentidos na biblioteca do encéfalo. É bom lembrar que mesmo o suicídio do narrador, um fim mais brutal para a história toda, não teria o mesmo significado para cada uma das partes em disputa. Nem a morte parece que os irmanaria em proposta compartilhada de significação.

 E se nas estruturas típicas de montagem de arquitetura de opressão, Kafka sempre se posiciona do lado dos oprimidos, sempre, como o ódio está na cabeça da mulherzinha que cerca de aborrecimentos e tenta enquadrar o personagem principal, a narração também pode se posicionar, no âmbito ensaístico, como uma tentativa de liberdade proposicional. É ele quem fala no conto, mas a exasperação máxima que ela sente, meio violência, meio mal-estar, bandeira de luta, ocasião de berrar é que o oprime como personagem, e de fora do texto, ela parece rondar o escrito, pronta para mostrar que tem razão no caso todo somente porque o narrador irresponsavelmente a deixa fora de si. O que seria até aceitável, por certo, se ela fosse o centro do mundo a quem todos deveriam exercer estilos de vida somente com o propósito de a agradar.

Pois o texto também é um reclame por uma vida livre e o narrador nunca esconde nos argumentos que a mulher pequena o cerca pelas cadeias feitas de grades de aborrecimento, incompreensão, impaciência e preconceito; e toda a desproporção própria ao caso não é maior, talvez, porque ela também não consegue sair da prisão feita de raiva que construiu para outra pessoa. Se a atribuição que ela lhe configura é a de culpado, um bandido de menos violência física está preso nas celas da incompreensão, enquanto do lado de fora pronta para a violência, mesmo aquela feitas de gritos contidos de desaprovação universal, a mulher pequena ronda toda cena com ares de polícia.

Enquanto ela espuma e baba de raiva, e com razão, ele escreve, mas só para tapar com a mão aquela obstinação mais doentia. Certamente, que essa ação bem pode reduzir seu campo de atuação pela cegueira voluntária, o fechar os olhos com uma única mão, pois no todo e em parte, as imagens que ela providencia para o recordar do ódio patológico que ela nutre são múltiplas, se bem que parecem começar com aquele “sorriso amargo” que rapidamente se transforma em “tremor de indignação”.  

Se cada pedacinho da existência do narrador incomoda uma qualquer coisa na mulher pequena, o que não reduz a raiva, mas a posiciona até mesmo nas dimensões infinitesimais, certamente ela ainda elaboraria um reproche por ele narrar (talvez, até pensar...) a coisa toda por via escrita. É claro que ele seria culpado, de antemão, somente por se expressar do único jeito que consegue, pois a insensatez que orienta o ódio universal da pequena mulher sequer permitiria ao narrador, que descreve sua estupefação, deslocar o caso todo para o regime formal que ele bem queira. E se antes de escrever o que o personagem narra e nos confidencia, ele já era culpado por ser quem era, podemos supor que letras bem feitas no corte preciso do estilo, formas do escrever que parecem indicar uma lógica de navalha do narrador, incomodariam a mulherzinha em mais de um plano existencial.

É bem possível que o narrador escreva bem de propósito. Talvez menos para provocar a ira infinita da mulher menor, mas para demonstrar que como contraponto daquela torção física que a leva a grunhir como animal, ainda é possível o pensar ritmado da razão. A exposição direta e por argumentos que o personagem que narra refuta e reposiciona no colo da mulherzinha que virou bicho toda a problemática, bem pode indicar um modo faceiro de sublinhar sua opção voluntária por continuar a ser um homem.

O narrador nos avisa que tudo nele parece contrariar o sentido de beleza, o sentimento de justiça, os hábitos, as tradições, as esperanças daquela mulher feita de ódio. Mas, se não entende os motivos do sofrimento dela, não é por discordar da estética, da ética, da fala, do dia-a-dia e mesmo dos sonhos que ali têm lugar, e o caso todo se potencializa ao nível do sequestro de sentido porque não há nenhuma relação entre os personagens que autorize a mulherzinha a pensar, odiar e sofrer por um homem que a incomoda tanto, mas que da vida dela parece não ter qualquer espécie de participação.

A tática de Kafka aqui é precisa. Sem um passado juntos, porque o narrador desconhece os motivos que originaram aborrecimentos, sem um futuro brilhante em que uma solução de compromisso encerre a causa, o presente, aquele espaço comprimido entre aporrinhação do olhar que reprova e a surpresa pela existência efetiva de personagens menores, perde significação temporal. Sem passado, não há construção de uma história; sem esperança, não haverá um futuro: Kafka circunscreve o tempo da mulher pequena na vida do narrador como as ocasiões próprias de um mero instante feito de continuidade perpétua.  

E tudo fica ainda pior, se o regime é o de ódio, quando o personagem quase que admite, inclusive, que escreve e pensa na coisa toda só para gastar o tempo, um nada para fazer, porque a solução do caso é dada logo no segundo parágrafo: é preciso que ela esqueça da existência dele. Tal esquecimento talvez colocasse o relacionamento estranho em equilibrio porque enquanto de um lado, o da pequenez, o funcionamento é a operação do desgosto em diversos níveis, o outro lado, o do personagem principal, sequer se interessa mais em compreender as motivações, os atos, as falas que irritaram a diminuta mulher ao ponto dela levar a vida em regime de revanche.

A desproporção é notória. O narrador pensa pouco na mulher pequena, e, após construir o texto, tomou decisão típica de indiferentes; ela, por outro lado, parece que só consegue garantir notoriedade existencial ao demonstrar como ele é culpado de crimes gravíssimos, cuja maior característica é a de simplesmente serem feitos de ações que ela desaprova prontamente.  

Sem procurar os signos que apontam para uma explicação da conduta da mulherzinha, o que resta é apenas incomodá-la menos, depositando seus desvarios no baú dos mistérios que ela inventou para provar que o narrador é um culpado do crime maior: na sua existência livre, ele simplesmente a atormenta demais.

E quando o personagem principal admite que nem o silêncio, nem um agrado, que nada, no fundo, demoverá a mulher de expressar a dor que ele não provocou certamente por amor, percebe, no entanto, a sua responsabilidade parcial no assunto em pauta porque entende e posiciona as preocupações máximas da mulher pequena no estatuto próprio do que lhe é completamente irrelevante. Tudo leva a crer que ele não guarda no bolso um rancor porque sequer sabe onde encontraria tal sentimento por ela e, pelo contrário, chega a admitir que receberia essa mulher, talvez na sua própria casa, muito bem.

Porém, ao privilégio de uma indiferença existencial que o personagem principal se vangloria perante a mulherzinha, corresponde, inversamente, o olhar de desaprovação, repleto de reprovação moral de quem enxerga o outro como um ser errado, fustigando-o de raios de culpa –, uma troca de olhares feita de estranheza.

Pois se ao olhar para a pequenez  ele não vê coisa alguma, nem um quase dentro do possível, e mesmo quando pisca nada acontece, porque aprendeu a piscar bem por piscar de propósito, o olhar que ela lhe atribui quase irradia “chispas brancas” e comprometem uma existência inteira porque o colocam sob a lógica daquelas categorias básicas de julgamento próprio de gente menor, a moralidade de sempre das pessoas que adoram apontar alguém com o dedo, a ética que funciona unilateralmente, o senso de justiça que não se permite ver com os olhos do outro, ou seja, todas as fórmulas pré-fabricadas de operação da mediocridade moralista que o narrador certamente não compartilharia por decisão espontânea.

Permitindo-se um princípio de bondade que lhe é próprio, o personagem principal até parece se compadecer das lágrimas de cólera, das alterações corporais, dos sofrimentos gigantescos que ele parece provocar nela. E tudo fica até mais estranho porque ao meio de sua indiferença profunda perante a mulherzinha – a relação entre eles existe apenas do lado dela –, apesar dela parecer se ocupar exclusivamente da vingança de tormentos que a existência dele proporciona, o narrador até se pergunta se não poderia fazer nada para ajudar a mulher que não o suporta. O problema que ele enfrenta tem tamanho, e é feito de baixeza, mas, ela parece precisar de alguma forma maior de amparo. E já não sabemos, ao certo, se o que a irrita no ritmo da demasia não é um infeliz modo dele ser que não pode evitar, por ter nascido com ele, e que consiste em “sussurrar uma mansa exortação a quem está fora de juízo”, ou se esse tormento todo, com a adição da possibilidade por ele sugerida de que a receberia bem, não seja mais uma daquelas circunstâncias que a enlouquecem mais ainda de raiva, porque esse narrador parece atuar sempre do mesmo jeito com sua eterna incorrigibilidade.

No meio das manias que parecem determinar a ação dos dois, o apelo ao tribunal público seria uma solução se, na verdade, ambos não se desgastassem mutuamente perante o imaginário popular. E quando ele admite que pode ter um desconto de culpabilidade por sua posição social também percebe que a acusação é frouxa porque implica mais a mulher pequena do que ele mesmo: é ela quem odeia e que tem crises, vez ou outra, de não dominar o corpo que estremece por espasmos físicos advindos de impulsos de raiva.

Assim é que a publicidade total é bem um transtorno, a acusação total de culpa do narrador reflete na existência da mulherzinha reclamona que não gosta de ser contrariada, e a trajetória da ameaça constante que ela sinaliza em avisar o mundo de que o narrador a aborrece, tanto a implica quanto a explica – e o vexame de ser pessoinha pequena talvez transbordasse o copo cheio. Nem todos observam o mundo com porrete de polícia na mão.

A armadilha criada para pegar de jeito o narrador também pode comprometer o próprio estatuto do aborrecimento dela. Pois mesmo no caso limite em que ele se suicide, tal opção de caminho não será, nem assim ainda, uma solução para a questão toda. Pois é com percuciência que o narrador sugere que, em um caso como esse, ela também teria ataques de fúria sem limites, pois, nada que possa vir dele pode garantir alguma espécie de felicidade. Espumas de fúria substituem sorrisos mesmo em mortes desejadas se o regime de morrer se negar a pedir autorização.

Uma vez que a vida do personagem principal é, só por existência, motivo de atribuição de culpabilidade, desgosto profundo, nojo corporal, também sua morte é um evento insuportável, no mínimo, pela originalidade de um modo de ser livre que ela não pode controlar.

*

O texto que começa por caracterizar a mulher pequena e que terminará por uma decisão pela inércia do narrador com relação aos ataques de reproche que ela lhe envia pode ser um pouco mais espinhoso do que o narrador aparentemente finge no seu divagar.

É preciso que o leitor esteja atento para um certo modo de pensar feito de coerência e prudência, um narrar por argumentos e hipóteses, que disposto em texto não é, talvez, menos violento que as reprovações e transformações corporais com que o narrador descreve a mulherzinha.

O narrador é por demais astuto na descrição das alterações corporais que a sua mera visão proporcionam na mulher pequena. Assim: o “rosto azedo”, “os lábios franzidos rabugentamente”, “o olhar inquisidor de quem já conhece o resultado antes do exame”, o “sorriso amargo”, o “olhar de lástima que eleva ao céu”, um “empalidecimento”, e um “tremor de indignação” vão compondo, em corpo e vontade, a estruturação de mulher menor.

O narrador descreve a pequena rapidamente, é hábil nisso. E uma mera contraposição de duas formas de representar o desajuste, talvez explicasse mais do que toda ordem de argumentos: enquanto a mulher diminuta posiciona as “mãos que se plantam nos quadris para adquirir firmeza”, o narrador pensa-escreve em voz alta, “...pois a questão para mim é pequena vista de fora – a um nível um pouco inferior à verdade.”

Curiosa maneira de aliciar o leitor.

Enquanto a mulher pequena coloca as mãos no quadril por não gostar de ser contrariada e sentir uma indignação imensa contra o mundo só porque o narrador existe, o narrador pensa a questão “a um nível um pouco inferior à verdade”. Enquanto ela faz pose de caprichosa no instantâneo das letras, o narrador pondera sobre os níveis de verdade do imbróglio todo. Tudo se passa como se ao narrador fosse dada a ação pela razão, e à mulher menor, a ação pela vontade.

Uma questão, então, começa a se esboçar sobre o próprio estatuto de verossimilhança do texto. Pode ser que o escrito, em sua progressão racional, frase após frase, tenha inclinado o narrador à decisão pela inércia: portanto, se assim for o caso, deve ser jogado no lixo porque já cumpriu seu papel. Ou, pode ser que o o narrador tenha escrito o texto após a resolução de tapar os olhos para as maledicências da mulher pequena. Nesse caso, talvez, possamos compreender os modos como o narrador irrita tanto a existência da pequenez, pois tendo decidido não fazer nada e viver calmamente à título de inércia, ele ainda produz textos, a partir do método de se fingir de morto.

Apesar de não haver outra designação para a mulher, ela é simplesmente pequena e nada mais, sobrariam, não obstante, duas opções para enquadramos esse narrador: ou ele desistiu de confrontar a baixeza e o texto foi para o lixo, ou ele assumiu um cinismo pós mortem e está perdendo, aos poucos, estatura.   

*

            O conto que é quase ensaio, ou um pensar em voz alta, uma progressão do processo de tomada de decisão, parece ser feito de menos movimento. Quase nada acontece de fato entre as primeiras linhas e o final previsível que emolduram o relato. O recheio do texto opera pela dialética formal entre os espasmos da personagem que odeia, mas não tem voz, e a esquiva de quem não está nem aí, mas se propôs a escrever. Algo entre a baba que escorre nas espumas da indignação e a letra pretensiosa de quem pensa para se entender. Mas se tudo começa no registro do conto com “É uma mulher pequena...”, outro dado logo ali na primeira frase pode denunciar também a repetitiva e reiterada obstinação com que a mulherzinha prossegue em regime obsessivo de pensar na vida de outra pessoa: “...vejo-a sempre com o mesmo vestido...”.

            A imagem, truque da escrita precisa de Kafka, é boa demais para ser desperdiçada.

Pois engole os símbolos do ódio no tédio da repetição do formato de sempre, a mesma proposição a se mostrar toda hora na orquestração dos índices do tormento. Se as vestes são as mesmas que recobrem o corpo, uma aposta na fantasmagoria inerente à repetição bem poderia atrapalhar pensamentos mais débeis, mas, de maneira mais simples, a pequenez dela pode ser tão pronunciada que a falta de imaginação a obriga às rotinas de sempre, o eterno fazer do mesmo o mesmo. O vestido ainda garante, no entanto, que não aparecerá nua quando for o caso de tentar desagradar o personagem-narrador. Sem roupas de cobertura da nudez, dimensões mais frágeis se pronunciam, e as regras do jogo podem mudar inadvertidamente.

Em regime de pele à mostra, ninguém é ingênuo porque todo mundo tem alguma culpa que sugere vergonha.

            Mas, pode ser que ela não troque de roupa por preguiça. Ou, que use a indumentária para deixar claro ao narrador quem é ela, a todo momento. Ou, talvez a vestimenta repetitiva faça parte da esperança de que ele se lembre dela, em todas as ocasiões, do mesmo jeitinho – e o vestido de sempre, o modo de se apresentar, o caimento do tecido no corpo possam denunciar, às avessas, que a mulher que é pequena tem ilusões mais soltas e inconfessáveis do que se permite admitir.

*

Se o narrador apenas recobre com uma das mãos o problema todo, como decide no último parágrafo do conto, isso não garante que ele ainda não o enxergue parcialmente por entre os dedos, e tudo indica, no regime de armação do conto, que ele se finja meio de morto, uma quase inércia, porque teme se diminuir ao tamanho dela. A mediocridade pode paralisar, sim, quem tem outras propostas de invenção de si mesmo. Uma conclusão e tanto. Uma vez que todo esforço de escrever o seu relato opera em regime de displicência, mas de mínimo de elegância e ordenação racional, sua análise do incômodo a partir da subtração da incomodada (que não tem voz), perderia muito em estilo se o personagem também pudesse, formalmente, ser acusado de pequenez. Assim, o narrador parece, em leitura atenta, quase admitir que por dentro da tessitura do escrito, na operação clássica que o singulariza e que verteu brevemente para a letra do texto, desejou, mesmo que momentaneamente, no tempo de um piscar de olhos, um bem-estar autêntico para a garota que se diminuiu por pensar nele demais.


sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

Vivendo em um fio de navalha: Kafka, (anti) filósofo do direito


Vivendo em um fio de navalha: Kafka, (anti) filósofo do direito
Rodrigo Suzuki Cintra

(A narrativa objeto desse ensaio, pelo qual o texto inicia, está completa e foi escrita por Franz Kafka. A tradução, intitulada “Sobre a questão das leis”, é de autoria de Modesto Carone. Os comentários posteriores aos três parágrafos que seguem são meus e projetam um esboço de interpretação.)

Nossas leis não são universalmente conhecidas, são segredo do pequeno grupo de nobres que nos domina. Estamos convencidos de que essas velhas leis são observadas com exatidão, mas é extremamente penoso ser governado segundo leis que não se conhecem. Não penso neste caso nas diferentes possibilidades de interpretá-las nem nas desvantagens que há quando apenas indivíduos e não o povo inteiro podem participar da sua interpretação. Talvez essas desvantagens não sejam tão grandes assim. As leis são de fato muito antigas, séculos trabalharam na sua exegese, certamente até essa interpretação já se tornou lei, na verdade continuam a existir as liberdades possíveis no ato de interpretar, mas elas são muito limitadas. Além do mais é evidente que a nobreza não têm motivo algum, na interpretação, para se deixar influenciar pelo interesse pessoal em detrimento do nosso, pois as leis foram desde o início assentadas para os nobres, a nobreza está fora da lei e precisamente por isso a lei parece ter sido posta com exclusividade nas mãos da nobreza. Naturalmente existe sabedoria nisso – quem duvida da sabedoria das velhas leis? –, mas é também um tormento para nós, provavelmente algo inevitável.
            Aliás essas leis aparentes podem na realidade ser apenas presumidas. É uma tradição que elas existam e sejam confiadas à nobreza com um segredo, mas não se trata nem pode tratar-se de mais que uma tradição antiga e, por sua antiguidade, digna de fé, pois o caráter dessas leis exige também que se mantenha o segredo da sua existência. Mas se nós do povo acompanhamos com atenção desde os tempos mais remotos as ações da nobreza, possuímos a respeito delas registros dos nossos antepassados, demos a esses registros um prosseguimento consciencioso e acreditamos reconhecer nos inúmeros fatos certas normas que permitem concluir esta ou aquela determinação histórica, e se procuramos nos orientar um pouco por essas conclusões filtradas e ordenadas da forma mais cuidadosa em relação ao presente e ao futuro – então tudo isso é incerto e quem sabe somente um jogo mental, uma vez que essas leis, que aqui tentamos adivinhar, talvez não existam de maneira alguma. Há um pequeno partido que realmente pensa assim e busca provar que, se existe uma lei, ela só pode rezar o seguinte: o que a nobreza faz é a lei. Esse partido vê apenas atos de arbítrio dos nobres e rejeita a tradição popular que, na sua opinião, só traz proveitos diminutos e casuais e na maior parte das vezes, pelo contrário, grave prejuízo, já que ela dá ao povo uma segurança falsa, enganosa, que leva à leviandade diante dos acontecimentos vindouros. Esse prejuízo não deve ser negado, mas a esmagadora maioria do nosso povo vê a causa disso no fato de a tradição ainda não ser nem de longe suficiente, havendo portanto necessidade de que muito mais nela seja pesquisado; de qualquer maneira, por mais gigantesco que pareça, seu material ainda é muito pequeno e séculos terão de passar antes que a tradição acumulada baste. O sombrio dessa perspectiva para o presente só é iluminado pela crença de que virá um tempo no qual – de certo modo com um suspiro – a tradição e o seu estudo chegarão ao ponto final, que tudo terá ficado claro, que a lei pertencerá ao povo e que a nobreza desaparecerá. Isso não é dito, porventura, com ódio da nobreza – em absoluto e por ninguém. Odiamos antes a nós mesmos porque ainda não podemos ser julgados dignos da lei. E na verdade foi por essa razão que aquele partido – muito sedutor em certo sentido –, que não acredita em nenhuma lei propriamente, permaneceu tão pequeno: porque também ele reconhece plenamente a nobreza e o seu direito à existência.
            A rigor só é possível exprimi-lo numa espécie de contradição: um partido que rejeitasse, junto com a crença nas leis, também a nobreza, teria imediatamente o povo inteiro ao seu lado, mas um partido como esse não pode nascer porque ninguém ousa rejeitar a nobreza. É nesse fio da navalha que nós vivemos. Certa vez um escritor resumiu isso da seguinte maneira: a única lei visível e indubitavelmente imposta a nós é a nobreza – e será que queremos espontaneamente nos privar dela?

*

Escrito inclassificável, “Sobre a questão das leis” opera nos limites fronteiriços entre dissertação-argumentativa, ensaio filosófico e prosa narrativa, seu ritmo bem arquitetado se resolve em meros três parágrafos, mas, apesar da economia do texto, sua potência formal e seu conteúdo desconcertante desconstroem as estruturas do poder por dentro. O texto se refere à uma comunidade específica (seu povo, sua nobreza e suas leis); mas é preciso não estar entendendo nada se o caso é o de não perceber que as reflexões do narrador, apesar de serem particularíssimas, bem podem servir para interpretar todas as comunidades em geral.      
A técnica de narrar é certeira e se utiliza de um duplo recurso. Ao mesmo tempo em que tudo parece ser um mero desabafo casual de um membro do povo, certas afirmações são por demais rigorosas para serem ditas sem caso pensado. No vai e vem que estrutura o texto, uma forma dialética de se orquestrar o escrito, o narrador nunca foge do tema principal, aquele que dá título à narrativa (“Sobre a questão das leis”), se bem que constata com uma percuciência notável que a questão das leis é derivada de uma outra questão.  
A reflexão do narrador sobre às leis pode parecer, a princípio, um conjunto de ideias absolutamente corriqueiras sobre as características das leis de sua comunidade, mas, com a acuidade de analista, o narrador enxerga na lei a verdade sobre sua estrutura, função e sentido: a nobreza.
Nesse caso específico, Kafka não brinca de esconder por trás da lei um significado oculto ou misterioso, um inacessível do sentido; está tudo lá: o problema da lei, no fundo, é o problema da nobreza.
Pode-se dizer, assim, que o narrador é especialmente perspicaz: ele é aquele que sabe. Percebe que as leis não foram feitas para o povo, percebe que são instrumentos de dominação de classe, relaciona o conteúdo das leis ao capricho dos nobres, pondera se as leis não são os próprios nobres em si (uma daquelas identificações bizarras próprias ao sistema do capital), e, por fim, reflete sobre a ideia de revolução, uma vez que acabar com a lei é acabar com a própria nobreza.
O raciocínio que estrutura o percurso pelos parágrafos do texto é especialmente bem construído e pode bem ser que denuncie a progressiva tomada de consciência do narrador sobre o fundamental por trás da questão das leis. A frase inicial (Nossas leis não são universalmente conhecidas, são segredo do pequeno grupo de nobres que nos domina), impregnada de luta de classes, enuncia a dominação e, não é preciso muito, para perceber que as leis cumprem um papel importante para a estruturação do poder na comunidade específica a que o narrador pertence. Apesar de não serem conhecidas, as leis funcionam com perfeição para a classe específica dos nobres. Porém, gradativamente, ao longo dos três parágrafos que compõem a totalidade da narrativa, por meio do cálculo preciso do narrador, o problema das leis começa a se mostrar como o problema da nobreza.
O primeiro parágrafo do texto descreve as dez características das leis da comunidade do narrador, são elas:
1)      Secretas: não são universalmente conhecidas, são segredo do pequeno grupo de nobres;
2)      Antigas: essas velhas leis, As leis são de fato muito antigas, séculos trabalharam na sua exegese;
3)      Efetivas: são observadas com exatidão;
4)      Interpretáveis: diferentes possibilidades de interpretá-las;
5)      Tendenciosas: as leis foram desde o início assentadas para os nobres;
6)      Particularistas: a nobreza está fora da lei;
7)      Parciais: [a lei] posta com exclusividade nas mãos da nobreza;
8)      Sábias: naturalmente existe sabedoria nisso, Quem duvida da sabedoria das velhas leis?;
9)      Incômodas: mas é também um tormento para nós;
10)  Inevitáveis: provavelmente algo inevitável;
O curioso por trás dessas dez características que compõem a descrição do narrador sobre as leis de sua comunidade é que nenhum desses elementos corresponde ao discurso liberal tradicional sobre às leis. Certamente que as leis para o liberalismo devem ser: (1) Públicas; (2) Novas (adaptadas ao progresso contínuo); (3) Precisas (é necessário saber qual a sua função exata); (4) Interpretáveis (não apenas pelos indivíduos da nobreza, mas passíveis de serem interpretadas por todos); (5) Neutras; (6) Universais; (7) Imparciais; (8) Sábias (mas, de uma sapiência que fuja ao discurso de classe); (9) Adequadas; (10) Evitáveis (o sujeito deve ter a capacidade de se portar em acordo ou desacordo com a lei, conforme sua livre escolha).  
Logo no primeiro parágrafo, Kafka já deixa claro que não reproduzirá o conteúdo dos manuais protocolares de direito que dizem que a lei deve ser pública, neutra, universal... O leitor, nas primeiras linhas, já entra de cabeça no universo desigual da legislação daquela comunidade a qual o narrador pertence.
Nas idas e vindas argumentativas da narrativa, podemos dizer que o narrador faz uma abstração cada vez maior sobre a questão das leis, mas isso não leva a um deslocamento etéreo, descolado do real. Ao contrário, com uma consciência de classe cada vez mais aguçada, o narrador, membro do povo, vai inserindo as leis na concretude própria das relações de poder que imperam no real. Desde a primeira frase do texto, a nobreza não se esconde propriamente por trás das leis, isso não é sequer necessário. A denúncia e a reflexão do narrador não vão passar exatamente por esse argumento: são mais elaboradas.
Esquematicamente, na lógica do primeiro parágrafo, tudo se passa como se as leis por serem exclusividade da nobreza, servissem à dominação de classe. A lei, nesse caso, é instrumento para a dominação do povo pelos nobres, uma vez que fica claro que a nobreza é executora da lei. A lei, aqui, ao contrário do que ocorre com o discurso liberal sobre a legalidade, não se apresenta como ferramenta que permite acobertar a luta de classes inerente a um mundo em que existe o povo e a nobreza. A nobreza, nesse caso, não se utiliza de um aparato legal pretensamente igualitário para operar a dominação. A igualdade não é pressuposta em nenhum momento do texto.
No parágrafo seguinte, após algumas reflexões sobre a existência ou não das leis, que nos enganam um pouco, mas que depois retomam o fio da meada, uma outra ideia se apresenta. A lei não é um dispositivo que separa as classes sociais, é o próprio capricho e interesse da nobreza. Não se trata apenas, então, de um mecanismo de dominação. Como o que a nobreza faz é a lei, as ações de uma classe social específica se universalizam como se fossem ações de todos. Fica a impressão de que o capricho dos nobres se transforma, em termos de dominação, na própria lei. A lei não apenas separa povo/nobreza; ela, aqui, se mostra o modo como os interesses da nobreza colonizam a conduta do povo, afinal, a nobreza está de fora da lei, enquanto o povo deve segui-la à risca. Isso é ideológico: os caprichos são elevados à altura de lei.
O terceiro parágrafo arremata a coisa toda: a única lei visível e indubitavelmente imposta ao povo é a nobreza. Agora, não é apenas uma lei que serve à dominação de classe (1º parágrafo), os interesses de classe elevados à potência de lei (2º parágrafo), mas sim que a classe dos nobres é a própria lei. Em outras palavras, a única lei que impera naquela comunidade, como em todas as outras por sinal, é a de que a desigualdade existe e deve ser perpetuada. Dizer que a nobreza é a lei não é apenas dar autoridade a essa classe social; é dizer que da efetividade de sua dominação decorre a estrutura legal que torna possível sua dominação. Tudo se passa como se pelo fato de ela mandar na comunidade toda no campo do real, automaticamente ela manda também no campo do legal. Uma obviedade, na prática, na medida em que a verdade da comunidade em questão é a de que existe nobreza e existe povo, ou seja, a desigualdade é a característica principal da coisa toda.
Mas, o narrador, membro do povo, leva ao limite sua percepção da problemática das leis. Se ele enuncia, no primeiro parágrafo, que existem desvantagens quando apenas indivíduos e não o povo inteiro podem participar na interpretação das leis, situando a noção de individualidade como atributo exclusivo da nobreza, e não do povo – uma análise bem acertada –, no segundo parágrafo, em um lampejo de esperança, diz que haverá um tempo em que a lei pertencerá ao povo e a nobreza desaparecerá. Isso pode parecer, inicialmente, quase que revolucionário: leis que imperam para todos e ausência da nobreza. Porém, se levarmos às últimas consequências a própria lógica que o narrador nos permite traçar quando lemos essa narrativa inusitada, permeada de uma forma argumentativa que não nos dá opção que não seja raciocinar dialeticamente, a verdadeira revolução traria, junto com a desaparição da nobreza, a extinção de toda forma de lei.
A tomada de consciência do narrador, sua percepção de classe, sua análise profunda sobre a questão das leis, não se completa, no entanto, até que ele formule uma outra estratégia. Apesar de ser um membro qualquer do povo – um sem-nome –, é um verdadeiro analista do poder, sabe muitas coisas e pondera sobre a questão das leis de um modo especialmente aguçado. Suas observações são especialmente afiadas e questionam a ordem de uma cultura inteira.
Quando enuncia o fio de navalha  em que vive o povo, quase nas linhas finais do texto, a coisa toda ganha um novo peso. A questão se coloca de uma maneira clara, mas, ele faz questão de sublinhar que o argumento só pode ser expresso numa espécie de contradição. Se surgisse um partido que rejeitasse as leis e a nobreza ao mesmo tempo, tal partido teria todo povo a seu lado. Porém, esse partido não pode nascer porque ninguém rejeita a nobreza. Tudo nos levaria a crer, portanto, que nada vai mudar nessa comunidade específica.
            A verdade é que somente quando esse fio de navalha for ultrapassado é que, talvez, o narrador se liberte não só da nobreza e da dominação, mas também, de toda e qualquer estrutura legal, que é sempre um dispositivo de classe para organizar a servidão. O caminho da tomada de consciência completa só pode se dar ao meio da revolução. É lutando contra a nobreza que, efetivamente, o narrador e sua comunidade poderiam se libertar da ideologia e ter uma consciência de classe mais plena. Aqui, algo fica evidente. No processo revolucionário, não se tem duas etapas distintas: 1. Tomada de consciência de classe; 2. Luta contra a nobreza e dominação. A verdade é que a revolução é mais simples do que isso. É no próprio processo de luta que se percebe com maior clareza contra o que se luta.
Talvez isso apontasse para um momento pré-revolucionário ainda, em que o narrador não estivesse de todo seguro sobre o que se deve efetivamente fazer.
           Mas, o corte da navalha, de repente, ganha gume.
           Pois não é que na última frase do texto ele introduz um novo elemento? Um escritor que, certa vez¸ teria resumido tudo de uma maneira precisa. A técnica é estranha, no mínimo, porque estamos acostumados a encontrar escritores a formular histórias, certas vezes, nos começos de textos, e não ali, na última frase.
            E qual é a formulação do escritor de certa vez?
            Ela começa exatamente com os mesmos argumentos que ele dialeticamente foi construindo ao longo do texto: a única lei visível e indubitavelmente imposta a nós é a nobreza. Não há nada de novo até aqui. O tal escritor de certa vez aparentemente não fez mais que escrever o que nosso narrador já havia escrito. Redobro?
       A sentença final, não obstante, revigora o escrito pois adiciona um dado a mais. Será que queremos espontaneamente nos privar dela [nobreza]? Uma palavra apenas está fora do lugar. Tem mais peso que as demais porque é escrita com a vontade: espontaneamente. A questão das leis, então, que tinha se mostrado ao longo de todo o texto um problema que se referia à nobreza muda de lado. Espontaneamente aponta, sem dúvida, para a vontade própria. Agora, a questão das leis é questão do povo. De um texto que, inicialmente, somente constatava a ligação lei-nobreza, um texto meio que ultra-reflexivo, passamos a um novo convite.
           Pela própria conta e risco do povo, será que não está na hora de agir?
       Talvez esse seja o fio de navalha mais contundente da reflexão do narrador. O limite entre nobreza e povo é o limite da revolta. Então, continuar por mais um parágrafo ou mais uma linha não é apenas desnecessário, é a derrota, pois seria, de certa forma, admitir que nada poderá mudar.

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1.    O narrador termina com um corte que não é apenas preciso, é esperançoso até. Sua última dúvida aponta para um lugar absolutamente relevante para a estruturação do escrito, pois, o inverte. Agora, pela primeira vez, ele está falando do povo. Se ele continuar a refletir, nada mudará, é evidente. Então, ele pára! Mais uma palavra e tudo estaria perdido. Sua ponderação final é o verdadeiro fio de navalha: uma vez que todo povo sabe que a verdade da dominação é a nobreza, por que não subtraí-la definitivamente da comunidade em questão?

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2.      Kafka, mais uma vez, sugere o cálculo imponderável: uma forma do saber que é menos poder. “Sobre a questão das leis”, o escrito, é afiado no melhor de uma dialética literária. Existe espaço de sobra para uma utopia que, obviamente, opera sempre meio que às avessas em seu funcionamento, ou simplesmente tarde demais. Em Kafka, até o sentido da utopia passa por uma utopia do sem-sentido. Pode não parecer, porém, há algo de esperança mesmo nisso. E o desfecho dessa história nos parece desconcertante não tanto porque não a compreendemos, não sabemos, mas, porque já não podemos. Isso é quase nada, e no entanto, apenas na frase final, repetição do pressentido, surge o momento do agir – estranho modo de contar uma história da liberdade. Tudo começa pelo final, e ainda assim, a tragédia é que lá no começo, do texto e das leis, deveríamos ter negado o próprio escrito, aproveitando o instante para cortar com navalha afiada a garganta dos canalhas.


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Esse texto foi apresentado no XXVIII Congresso Mundial de Filosofia do Direito e Filosofia Social (IVR), em Lisboa, julho de 2017 e foi publicado na Revista Sibila - revista de poesia e crítica literária - em 01/02/2018.