Estratégias de Narrador
em A mulher pequena, de F. Kafka
(O
conto A mulher pequena é de F. Kafka,
a tradução utilizada nas citações é de Modesto Carone, o ensaio, mero exercício
escolar de primeira leitura, é de minha autoria.)
Dedicado aos que decidem,
no pensar solitário, por própria conta e risco, tentar alcançar o tamanho que
querem ter para a própria vida.
Rodrigo Suzuki
Cintra
“Ora,
essa mulherzinha está muito insatisfeita comigo, sempre tem algo a censurar em
mim, diante dela estou sempre errado e irrito-a a cada passo; se fosse possível
dividir a vida em partes mínimas e cada partícula pudesse ser julgada em
separado, certamente qualquer pedacinho da minha vida seria um aborrecimento
para ela.”
A Mulher pequena,
de F. Kafka
A
contrariedade é existencial, “questão de princípio”, e certa profundidade pseudo-obscura,
em ritmo obsessivo de desaprovação, por preencher os sentimentos
incompreensivelmente exagerados de gente pequena levou, ao que parece, o
personagem-narrador do conto kafkiano ao discurso em registro textual. O feito
literário, então, é menos opção por um cálculo qualquer de acerto de contas por
parte desse personagem, como fica claro no escrito todo, uma vez que ele vive
muito bem sem a mulherzinha, e mais provocado pelo caráter desproporcional da
raiva que ele ocasiona na vida dela, o que o inclina, marcadamente, para
aquelas reflexões talvez metódicas, mas, inúteis, de tentativa de compreensão da
racionalidade em jogo quando se trata da construção incansável de um ódio
absolutamente incomum. E é por demais evidente, mesmo no correr de leitura
rápida do conto, que enquanto o papel do personagem-narrador na história é
refletir com seu estilo particular, os prós e contras para uma tomada de
decisão a partir das amarrações que o próprio texto engendra em seu vai e vem
conjectural, à mulher pequena sobra a coadjuvância de um existir que se perfaz
e se exerce somente na medida em que tem ódio de uma outra personagem. Na armação
do conto, o personagem-narrador reflete em voz alta, mas no registro de escrita,
e pode se dizer que sua existência é o próprio estilo peculiar com que organiza
todo o discurso. A mulherzinha, por outro lado, se propõe mais importante que o
narrador, uma vez que desagradá-la já é uma forma de culpa, e no entanto, nessa
arquitetura textual de Kafka, ela é que se posiciona como objeto de análise. A
existência ficcional do narrador se exerce pela reflexão, ao longo das frases
encadeadas, para uma decidibilidade final que resolva o problema – e arremate o
conto –, enquanto a forma de representação da mulher diminuta se encerra nos
sorrisos engasgados que produz enquanto inflama uma raiva incomensurável.
Se
o escrito revela um relacionamento problemático do narrador, descreve até
infortúnios potenciais que, à título de hipótese, uma mulher menor poderia causar;
na economia própria de sua peculiar progressão narrativa, um formato de
quase-ensaio produz a sensação de um homem que pensa alto, e consigo mesmo,
sobre a empulhação que a pessoa pequena lhe proporciona. No conto em que só o
narrador fala, reflete e registra, a pequena obra-prima kafkiana sobre relações
humanas e seus desencontros, o vagar do escrito leva a uma declaração
espontânea de espanto perante aquele sentimento negativo incontrolável
proveniente da mulher pequena, que descrita na sua particular obviedade de
estatura baixa, característica que não se altera nunca apesar de virarmos as
páginas do livro, parece ter dimensões físicas menorzinhas, como também pode
significar aquele modo de ser diminuto que entende o mundo a partir da
moralidade padrão e que faz do mais puro capricho valorativo pessoal uma regra
universal. Pois, ela comparece nos parágrafos apenas para destilar, sem ter voz
própria, por meio daquela montagem distorcida de caras e bocas que o narrador
nos faz ver; insatisfações, censuras, aborrecimentos, negatividades e dores e apesar dele sequer se importar tanto com o modus
operandi de suas lástimas, particularmente própria de criança teimosa, ou
mulher que recebeu um adeus, toda a maledicência própria de mulherzinha
contrariada inunda o escrito com o ecos da negatividade. Página após página
do conto, ouvimos seus gritos abafados, grunhidos quase só simbólicos, contra
ele e tudo que ele implica. Apesar do narrador ter sequestrado no texto as
frases de indignação provenientes do tamanhinho da mulher, todo um gestual
alentado na amargura produz a persona e a cena da desaprovação feita de
desprezo.
Mas,
nesse conto de Kafka, se ela é o objeto da reflexão momentânea, e também,
participa com facilidade do rol das personagens que nos desagradam logo na
leitura das primeiras linhas, é a estruturação das razões textuais no discurso
do narrador que pode operar um registro de denúncia de sua inadequação real –,
pois, sem ser criminoso de qualquer acusação precisa (só sabemos, ao certo, que
ele irrita a moça diminuta), isso bem não significa que o personagem-narrador
não seja culpado de outros crimes nos quais a pequenez moral e circunstancial dela
apenas influenciem um caminhar existencial também problemático. Se o conto de
Kafka é por demais bem escrito, preciso em prudência de refletir, a redução da
mulher pequena a seu próprio tamanhinho, por meio das letras, é obviamente uma
estratégia de composição singular. O que bem pode comprometer aquele status de pensador coerente, tolerante e
racional com que o narrador tenta se apresentar.
Conto
breve em que só o narrador articula o encadeamento das ideias, a temática
concreta até pode confundir, se o leitor cair em uma das duas armadilhas de
interpretação mais fáceis, que permeiam a superfície das artimanhas dessa
estratégia particular de narrar. Esse personagem principal que admite ser
vítima de uma raiva incompreensível de uma mulher pequena não está, em hipótese
alguma, escrevendo e narrando em regime de confissão. Não existe ali registro
de redenção espiritual, social, comunicacional ou civilizatória. Nada aponta
que um apelo a entidades superiores ou inferiores, por admissão de uma qualquer
culpa de ocasião, possa solucionar o caso. O narrador não recorre a espíritos
quaisquer como também não encontra solução em imperativos éticos, descarta a
racionalidade comunicacional da mesma maneira que não obedece conselho de
amigo, e sua atividade de escritura, então, parece não estar buscando aprovação
de ninguém.
Além
disso, também nada nos permite buscar um entendimento completo, global, dos
motivos e causas para esse relacionamento desastroso descrito; a fala no texto
não é partilhada, se bem que intuída em diálogos hipotéticos, pois, nesse conto
singular parece ser a vez dele de gastar
tempo no assunto. A mulher pequena, nesse conto, também não tem voz porque
se trata antes de uma incomunicabilidade unilateral, é ela quem não
conseguiria, por excesso de incômodo e repulsa, falar abertamente com o
narrador e, portanto, tudo que lemos no texto é relato do modo particular com
que um personagem-narrador lida, administra, reflete, esquece e pensa naqueles
problemas diminutos de dia-a-dia que a pouca estatura pode proporcionar –, como
se escrever lhe trouxesse a lembrança, só por ter que gastar tinta, que pessoas
menorzinhas também existem no por aí. Talvez a mulher diminuta não consiga
falar diretamente com o narrador por um asco primordial que lhe faria muito
mal, mas, a hipótese simples de que pertencem a linguagens diferentes também é
possível: não se entenderiam simplesmente porque ao olharem para as coisas do
mundo não buscam os mesmos sentidos na biblioteca do encéfalo. É bom lembrar
que mesmo o suicídio do narrador, um fim mais brutal para a história toda, não
teria o mesmo significado para cada uma das partes em disputa. Nem a morte
parece que os irmanaria em proposta compartilhada de significação.
E se nas estruturas típicas de montagem de
arquitetura de opressão, Kafka sempre se posiciona do lado dos oprimidos,
sempre, como o ódio está na cabeça da mulherzinha que cerca de aborrecimentos e
tenta enquadrar o personagem principal, a narração também pode se posicionar,
no âmbito ensaístico, como uma tentativa de liberdade proposicional. É ele quem fala no conto, mas a exasperação
máxima que ela sente, meio violência, meio mal-estar, bandeira de luta, ocasião
de berrar é que o oprime como personagem, e de fora do texto, ela parece
rondar o escrito, pronta para mostrar que tem razão no caso todo somente porque
o narrador irresponsavelmente a deixa fora de si. O que seria até aceitável,
por certo, se ela fosse o centro do mundo a quem todos deveriam exercer estilos
de vida somente com o propósito de a agradar.
Pois
o texto também é um reclame por uma vida livre e o narrador nunca esconde nos
argumentos que a mulher pequena o cerca pelas cadeias feitas de grades de
aborrecimento, incompreensão, impaciência e preconceito; e toda a desproporção
própria ao caso não é maior, talvez, porque ela também não consegue sair da
prisão feita de raiva que construiu para outra pessoa. Se a atribuição que ela
lhe configura é a de culpado, um bandido de menos violência física está preso
nas celas da incompreensão, enquanto do lado de fora pronta para a violência,
mesmo aquela feitas de gritos contidos de desaprovação universal, a mulher pequena ronda toda cena com ares de
polícia.
Enquanto
ela espuma e baba de raiva, e com razão, ele escreve, mas só para tapar com a
mão aquela obstinação mais doentia. Certamente, que essa ação bem pode reduzir
seu campo de atuação pela cegueira voluntária, o fechar os olhos com uma única
mão, pois no todo e em parte, as imagens que ela providencia para o recordar do
ódio patológico que ela nutre são múltiplas, se bem que parecem começar com
aquele “sorriso amargo” que rapidamente se transforma em “tremor de indignação”.
Se
cada pedacinho da existência do narrador incomoda uma qualquer coisa na mulher
pequena, o que não reduz a raiva, mas a posiciona até mesmo nas dimensões
infinitesimais, certamente ela ainda elaboraria um reproche por ele narrar
(talvez, até pensar...) a coisa toda por via escrita. É claro que ele seria
culpado, de antemão, somente por se expressar do único jeito que consegue, pois a insensatez que orienta o ódio
universal da pequena mulher sequer permitiria ao narrador, que descreve sua
estupefação, deslocar o caso todo para o regime formal que ele bem queira.
E se antes de escrever o que o personagem narra e nos confidencia, ele já era
culpado por ser quem era, podemos supor que letras bem feitas no corte preciso
do estilo, formas do escrever que parecem indicar uma lógica de navalha do
narrador, incomodariam a mulherzinha em mais de um plano existencial.
É
bem possível que o narrador escreva bem de propósito. Talvez menos para
provocar a ira infinita da mulher menor, mas para demonstrar que como
contraponto daquela torção física que a leva a grunhir como animal, ainda é
possível o pensar ritmado da razão. A exposição direta e por argumentos que o
personagem que narra refuta e reposiciona no colo da mulherzinha que virou
bicho toda a problemática, bem pode indicar um
modo faceiro de sublinhar sua opção voluntária por continuar a ser um homem.
O
narrador nos avisa que tudo nele parece contrariar o sentido de beleza, o
sentimento de justiça, os hábitos, as tradições, as esperanças daquela mulher
feita de ódio. Mas, se não entende os motivos do sofrimento dela, não é por
discordar da estética, da ética, da fala, do dia-a-dia e mesmo dos sonhos que
ali têm lugar, e o caso todo se
potencializa ao nível do sequestro de sentido porque não há nenhuma relação
entre os personagens que autorize a mulherzinha a pensar, odiar e sofrer por um
homem que a incomoda tanto, mas que da vida dela parece não ter qualquer
espécie de participação.
A
tática de Kafka aqui é precisa. Sem um passado juntos, porque o narrador
desconhece os motivos que originaram aborrecimentos, sem um futuro brilhante em
que uma solução de compromisso encerre a causa, o presente, aquele espaço
comprimido entre aporrinhação do olhar que reprova e a surpresa pela existência
efetiva de personagens menores, perde significação temporal. Sem passado, não
há construção de uma história; sem esperança, não haverá um futuro: Kafka circunscreve o tempo da mulher pequena
na vida do narrador como as ocasiões próprias de um mero instante feito de
continuidade perpétua.
E
tudo fica ainda pior, se o regime é o de ódio, quando o personagem quase que
admite, inclusive, que escreve e pensa na coisa toda só para gastar o tempo, um
nada para fazer, porque a solução do caso é dada logo no segundo parágrafo: é preciso que ela esqueça da existência dele.
Tal esquecimento talvez colocasse o relacionamento estranho em equilibrio
porque enquanto de um lado, o da pequenez, o funcionamento é a operação do
desgosto em diversos níveis, o outro lado, o do personagem principal, sequer se
interessa mais em compreender as motivações, os atos, as falas que irritaram a
diminuta mulher ao ponto dela levar a
vida em regime de revanche.
A
desproporção é notória. O narrador pensa pouco na mulher pequena, e, após
construir o texto, tomou decisão típica de indiferentes; ela, por outro lado,
parece que só consegue garantir notoriedade existencial ao demonstrar como ele
é culpado de crimes gravíssimos, cuja maior característica é a de simplesmente
serem feitos de ações que ela desaprova prontamente.
Sem procurar os signos
que apontam para uma explicação da conduta da mulherzinha, o que resta é apenas
incomodá-la menos, depositando seus desvarios no baú dos mistérios que ela
inventou para provar que o narrador é um culpado do crime maior: na sua existência
livre, ele simplesmente a atormenta demais.
E
quando o personagem principal admite que nem o silêncio, nem um agrado, que
nada, no fundo, demoverá a mulher de expressar a dor que ele não provocou
certamente por amor, percebe, no entanto, a sua responsabilidade parcial no
assunto em pauta porque entende e posiciona as preocupações máximas da mulher
pequena no estatuto próprio do que lhe é completamente irrelevante. Tudo leva a
crer que ele não guarda no bolso um rancor porque sequer sabe onde encontraria
tal sentimento por ela e, pelo contrário, chega a admitir que receberia essa
mulher, talvez na sua própria casa, muito bem.
Porém,
ao privilégio de uma indiferença existencial que o personagem principal se
vangloria perante a mulherzinha, corresponde, inversamente, o olhar de
desaprovação, repleto de reprovação moral de quem enxerga o outro como um ser
errado, fustigando-o de raios de culpa –, uma troca de olhares feita de
estranheza.
Pois
se ao olhar para a pequenez ele não vê
coisa alguma, nem um quase dentro do possível, e mesmo quando pisca nada
acontece, porque aprendeu a piscar bem
por piscar de propósito, o olhar que ela lhe atribui quase irradia “chispas
brancas” e comprometem uma existência inteira porque o colocam sob a lógica
daquelas categorias básicas de julgamento próprio de gente menor, a moralidade
de sempre das pessoas que adoram apontar alguém com o dedo, a ética que funciona
unilateralmente, o senso de justiça que não se permite ver com os olhos do
outro, ou seja, todas as fórmulas pré-fabricadas de operação da mediocridade
moralista que o narrador certamente não compartilharia por decisão espontânea.
Permitindo-se
um princípio de bondade que lhe é próprio, o personagem principal até parece se
compadecer das lágrimas de cólera, das alterações corporais, dos sofrimentos
gigantescos que ele parece provocar nela. E tudo fica até mais estranho porque ao
meio de sua indiferença profunda perante a mulherzinha – a relação entre eles existe apenas do lado dela –, apesar dela
parecer se ocupar exclusivamente da vingança de tormentos que a existência dele
proporciona, o narrador até se pergunta se não poderia fazer nada para ajudar a
mulher que não o suporta. O problema que ele enfrenta tem tamanho, e é feito de
baixeza, mas, ela parece precisar de alguma forma maior de amparo. E já não
sabemos, ao certo, se o que a irrita no ritmo da demasia não é um infeliz modo
dele ser que não pode evitar, por ter nascido com ele, e que consiste em “sussurrar
uma mansa exortação a quem está fora de juízo”, ou se esse tormento todo, com a
adição da possibilidade por ele sugerida de que a receberia bem, não seja mais
uma daquelas circunstâncias que a enlouquecem mais ainda de raiva, porque esse narrador parece atuar sempre do mesmo
jeito com sua eterna incorrigibilidade.
No
meio das manias que parecem determinar a ação dos dois, o apelo ao tribunal
público seria uma solução se, na verdade, ambos não se desgastassem mutuamente
perante o imaginário popular. E quando ele admite que pode ter um desconto de
culpabilidade por sua posição social também percebe que a acusação é frouxa
porque implica mais a mulher pequena do que ele mesmo: é ela quem odeia e que
tem crises, vez ou outra, de não dominar o corpo que estremece por espasmos
físicos advindos de impulsos de raiva.
Assim
é que a publicidade total é bem um transtorno, a acusação total de culpa do narrador
reflete na existência da mulherzinha reclamona que não gosta de ser contrariada,
e a trajetória da ameaça constante que ela sinaliza em avisar o mundo de que o
narrador a aborrece, tanto a implica
quanto a explica – e o vexame de ser pessoinha pequena talvez transbordasse
o copo cheio. Nem todos observam o mundo com porrete de polícia na mão.
A
armadilha criada para pegar de jeito o narrador também pode comprometer o
próprio estatuto do aborrecimento dela. Pois mesmo no caso limite em que ele se
suicide, tal opção de caminho não será, nem assim ainda, uma solução para a
questão toda. Pois é com percuciência que o narrador sugere que, em um caso
como esse, ela também teria ataques de fúria sem limites, pois, nada que possa
vir dele pode garantir alguma espécie de felicidade. Espumas de fúria
substituem sorrisos mesmo em mortes desejadas se o regime de morrer se negar a
pedir autorização.
Uma
vez que a vida do personagem principal é, só por existência, motivo de
atribuição de culpabilidade, desgosto profundo, nojo corporal, também sua morte é um evento insuportável,
no mínimo, pela originalidade de um modo de ser livre que ela não pode
controlar.
*
O
texto que começa por caracterizar a mulher pequena e que terminará por uma
decisão pela inércia do narrador com relação aos ataques de reproche que ela
lhe envia pode ser um pouco mais espinhoso do que o narrador aparentemente
finge no seu divagar.
É
preciso que o leitor esteja atento para um certo modo de pensar feito de
coerência e prudência, um narrar por argumentos e hipóteses, que disposto em
texto não é, talvez, menos violento que as reprovações e transformações
corporais com que o narrador descreve a mulherzinha.
O
narrador é por demais astuto na descrição das alterações corporais que a sua
mera visão proporcionam na mulher pequena. Assim: o “rosto azedo”, “os lábios
franzidos rabugentamente”, “o olhar inquisidor de quem já conhece o resultado
antes do exame”, o “sorriso amargo”, o “olhar de lástima que eleva ao céu”, um
“empalidecimento”, e um “tremor de indignação” vão compondo, em corpo e vontade,
a estruturação de mulher menor.
O
narrador descreve a pequena rapidamente, é hábil nisso. E uma mera
contraposição de duas formas de representar o desajuste, talvez explicasse mais
do que toda ordem de argumentos: enquanto a mulher diminuta posiciona as “mãos
que se plantam nos quadris para adquirir firmeza”, o narrador pensa-escreve em
voz alta, “...pois a questão para mim é pequena vista de fora – a um nível um
pouco inferior à verdade.”
Curiosa
maneira de aliciar o leitor.
Enquanto
a mulher pequena coloca as mãos no quadril por não gostar de ser contrariada e
sentir uma indignação imensa contra o mundo só porque o narrador existe, o
narrador pensa a questão “a um nível um pouco inferior à verdade”. Enquanto ela
faz pose de caprichosa no instantâneo das letras, o narrador pondera sobre os
níveis de verdade do imbróglio todo. Tudo se passa como se ao narrador fosse
dada a ação pela razão, e à mulher menor, a ação pela vontade.
Uma
questão, então, começa a se esboçar sobre o próprio estatuto de verossimilhança
do texto. Pode ser que o escrito, em sua progressão racional, frase após frase,
tenha inclinado o narrador à decisão pela inércia: portanto, se assim for o
caso, deve ser jogado no lixo porque já cumpriu seu papel. Ou, pode ser que o o
narrador tenha escrito o texto após a resolução de tapar os olhos para as
maledicências da mulher pequena. Nesse caso, talvez, possamos compreender os
modos como o narrador irrita tanto a existência da pequenez, pois tendo
decidido não fazer nada e viver calmamente à título de inércia, ele ainda
produz textos, a partir do método de se fingir de morto.
Apesar
de não haver outra designação para a mulher, ela é simplesmente pequena e nada
mais, sobrariam, não obstante, duas opções para enquadramos esse narrador: ou
ele desistiu de confrontar a baixeza e o texto foi para o lixo, ou ele assumiu
um cinismo pós mortem e está perdendo,
aos poucos, estatura.
*
O conto que é quase ensaio, ou um
pensar em voz alta, uma progressão do processo de tomada de decisão, parece ser
feito de menos movimento. Quase nada acontece de fato entre as primeiras linhas
e o final previsível que emolduram o relato. O recheio do texto opera pela dialética
formal entre os espasmos da personagem que odeia, mas não tem voz, e a esquiva
de quem não está nem aí, mas se propôs a escrever. Algo entre a baba que
escorre nas espumas da indignação e a letra pretensiosa de quem pensa para se
entender. Mas se tudo começa no registro do conto com “É uma mulher pequena...”,
outro dado logo ali na primeira frase pode denunciar também a repetitiva e
reiterada obstinação com que a mulherzinha prossegue em regime obsessivo de
pensar na vida de outra pessoa: “...vejo-a sempre com o mesmo vestido...”.
A imagem, truque da escrita precisa
de Kafka, é boa demais para ser desperdiçada.
Pois
engole os símbolos do ódio no tédio da repetição do formato de sempre, a mesma
proposição a se mostrar toda hora na orquestração dos índices do tormento. Se
as vestes são as mesmas que recobrem o corpo, uma aposta na fantasmagoria
inerente à repetição bem poderia atrapalhar pensamentos mais débeis, mas, de
maneira mais simples, a pequenez dela pode ser tão pronunciada que a falta de
imaginação a obriga às rotinas de sempre, o
eterno fazer do mesmo o mesmo. O vestido ainda garante, no entanto, que não
aparecerá nua quando for o caso de tentar desagradar o personagem-narrador. Sem
roupas de cobertura da nudez, dimensões mais frágeis se pronunciam, e as regras
do jogo podem mudar inadvertidamente.
Em regime de pele à mostra,
ninguém é ingênuo porque todo mundo tem alguma culpa que sugere vergonha.
Mas, pode ser que ela não troque de
roupa por preguiça. Ou, que use a indumentária para deixar claro ao narrador
quem é ela, a todo momento. Ou, talvez a vestimenta repetitiva faça parte da
esperança de que ele se lembre dela, em todas as ocasiões, do mesmo jeitinho –
e o vestido de sempre, o modo de se apresentar, o caimento do tecido no corpo
possam denunciar, às avessas, que a mulher que é pequena tem ilusões mais
soltas e inconfessáveis do que se permite admitir.
*
Se
o narrador apenas recobre com uma das mãos o problema todo, como decide no
último parágrafo do conto, isso não garante que ele ainda não o enxergue
parcialmente por entre os dedos, e tudo indica, no regime de armação do conto,
que ele se finja meio de morto, uma quase inércia, porque teme se diminuir ao
tamanho dela. A mediocridade pode
paralisar, sim, quem tem outras propostas de invenção de si mesmo. Uma
conclusão e tanto. Uma vez que todo esforço de escrever o seu relato opera em
regime de displicência, mas de mínimo de elegância e ordenação racional, sua
análise do incômodo a partir da subtração da incomodada (que não tem voz),
perderia muito em estilo se o personagem também pudesse, formalmente, ser
acusado de pequenez. Assim, o narrador parece, em leitura atenta, quase admitir
que por dentro da tessitura do escrito, na operação clássica que o singulariza
e que verteu brevemente para a letra do texto, desejou, mesmo que
momentaneamente, no tempo de um piscar de olhos, um bem-estar autêntico para a
garota que se diminuiu por pensar nele demais.
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