sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

 

Estratégias de Narrador em A mulher pequena, de F. Kafka

(O conto A mulher pequena é de F. Kafka, a tradução utilizada nas citações é de Modesto Carone, o ensaio, mero exercício escolar de primeira leitura, é de minha autoria.)

 

Dedicado aos que decidem, no pensar solitário, por própria conta e risco, tentar alcançar o tamanho que querem ter para a própria vida.

Rodrigo Suzuki Cintra

 

“Ora, essa mulherzinha está muito insatisfeita comigo, sempre tem algo a censurar em mim, diante dela estou sempre errado e irrito-a a cada passo; se fosse possível dividir a vida em partes mínimas e cada partícula pudesse ser julgada em separado, certamente qualquer pedacinho da minha vida seria um aborrecimento para ela.”

A Mulher pequena, de F. Kafka

 

A contrariedade é existencial, “questão de princípio”, e certa profundidade pseudo-obscura, em ritmo obsessivo de desaprovação, por preencher os sentimentos incompreensivelmente exagerados de gente pequena levou, ao que parece, o personagem-narrador do conto kafkiano ao discurso em registro textual. O feito literário, então, é menos opção por um cálculo qualquer de acerto de contas por parte desse personagem, como fica claro no escrito todo, uma vez que ele vive muito bem sem a mulherzinha, e mais provocado pelo caráter desproporcional da raiva que ele ocasiona na vida dela, o que o inclina, marcadamente, para aquelas reflexões talvez metódicas, mas, inúteis, de tentativa de compreensão da racionalidade em jogo quando se trata da construção incansável de um ódio absolutamente incomum. E é por demais evidente, mesmo no correr de leitura rápida do conto, que enquanto o papel do personagem-narrador na história é refletir com seu estilo particular, os prós e contras para uma tomada de decisão a partir das amarrações que o próprio texto engendra em seu vai e vem conjectural, à mulher pequena sobra a coadjuvância de um existir que se perfaz e se exerce somente na medida em que tem ódio de uma outra personagem. Na armação do conto, o personagem-narrador reflete em voz alta, mas no registro de escrita, e pode se dizer que sua existência é o próprio estilo peculiar com que organiza todo o discurso. A mulherzinha, por outro lado, se propõe mais importante que o narrador, uma vez que desagradá-la já é uma forma de culpa, e no entanto, nessa arquitetura textual de Kafka, ela é que se posiciona como objeto de análise. A existência ficcional do narrador se exerce pela reflexão, ao longo das frases encadeadas, para uma decidibilidade final que resolva o problema – e arremate o conto –, enquanto a forma de representação da mulher diminuta se encerra nos sorrisos engasgados que produz enquanto inflama uma raiva incomensurável.

Se o escrito revela um relacionamento problemático do narrador, descreve até infortúnios potenciais que, à título de hipótese, uma mulher menor poderia causar; na economia própria de sua peculiar progressão narrativa, um formato de quase-ensaio produz a sensação de um homem que pensa alto, e consigo mesmo, sobre a empulhação que a pessoa pequena lhe proporciona. No conto em que só o narrador fala, reflete e registra, a pequena obra-prima kafkiana sobre relações humanas e seus desencontros, o vagar do escrito leva a uma declaração espontânea de espanto perante aquele sentimento negativo incontrolável proveniente da mulher pequena, que descrita na sua particular obviedade de estatura baixa, característica que não se altera nunca apesar de virarmos as páginas do livro, parece ter dimensões físicas menorzinhas, como também pode significar aquele modo de ser diminuto que entende o mundo a partir da moralidade padrão e que faz do mais puro capricho valorativo pessoal uma regra universal. Pois, ela comparece nos parágrafos apenas para destilar, sem ter voz própria, por meio daquela montagem distorcida de caras e bocas que o narrador nos faz ver; insatisfações, censuras, aborrecimentos, negatividades e dores e apesar dele sequer se importar tanto com o modus operandi de suas lástimas, particularmente própria de criança teimosa, ou mulher que recebeu um adeus, toda a maledicência própria de mulherzinha contrariada inunda o escrito com o ecos da negatividade. Página após página do conto, ouvimos seus gritos abafados, grunhidos quase só simbólicos, contra ele e tudo que ele implica. Apesar do narrador ter sequestrado no texto as frases de indignação provenientes do tamanhinho da mulher, todo um gestual alentado na amargura produz a persona e a cena da desaprovação feita de desprezo.

Mas, nesse conto de Kafka, se ela é o objeto da reflexão momentânea, e também, participa com facilidade do rol das personagens que nos desagradam logo na leitura das primeiras linhas, é a estruturação das razões textuais no discurso do narrador que pode operar um registro de denúncia de sua inadequação real –, pois, sem ser criminoso de qualquer acusação precisa (só sabemos, ao certo, que ele irrita a moça diminuta), isso bem não significa que o personagem-narrador não seja culpado de outros crimes nos quais a pequenez moral e circunstancial dela apenas influenciem um caminhar existencial também problemático. Se o conto de Kafka é por demais bem escrito, preciso em prudência de refletir, a redução da mulher pequena a seu próprio tamanhinho, por meio das letras, é obviamente uma estratégia de composição singular. O que bem pode comprometer aquele status de pensador coerente, tolerante e racional com que o narrador tenta se apresentar.  

Conto breve em que só o narrador articula o encadeamento das ideias, a temática concreta até pode confundir, se o leitor cair em uma das duas armadilhas de interpretação mais fáceis, que permeiam a superfície das artimanhas dessa estratégia particular de narrar. Esse personagem principal que admite ser vítima de uma raiva incompreensível de uma mulher pequena não está, em hipótese alguma, escrevendo e narrando em regime de confissão. Não existe ali registro de redenção espiritual, social, comunicacional ou civilizatória. Nada aponta que um apelo a entidades superiores ou inferiores, por admissão de uma qualquer culpa de ocasião, possa solucionar o caso. O narrador não recorre a espíritos quaisquer como também não encontra solução em imperativos éticos, descarta a racionalidade comunicacional da mesma maneira que não obedece conselho de amigo, e sua atividade de escritura, então, parece não estar buscando aprovação de ninguém.

Além disso, também nada nos permite buscar um entendimento completo, global, dos motivos e causas para esse relacionamento desastroso descrito; a fala no texto não é partilhada, se bem que intuída em diálogos hipotéticos, pois, nesse conto singular parece ser a vez dele de gastar tempo no assunto. A mulher pequena, nesse conto, também não tem voz porque se trata antes de uma incomunicabilidade unilateral, é ela quem não conseguiria, por excesso de incômodo e repulsa, falar abertamente com o narrador e, portanto, tudo que lemos no texto é relato do modo particular com que um personagem-narrador lida, administra, reflete, esquece e pensa naqueles problemas diminutos de dia-a-dia que a pouca estatura pode proporcionar –, como se escrever lhe trouxesse a lembrança, só por ter que gastar tinta, que pessoas menorzinhas também existem no por aí. Talvez a mulher diminuta não consiga falar diretamente com o narrador por um asco primordial que lhe faria muito mal, mas, a hipótese simples de que pertencem a linguagens diferentes também é possível: não se entenderiam simplesmente porque ao olharem para as coisas do mundo não buscam os mesmos sentidos na biblioteca do encéfalo. É bom lembrar que mesmo o suicídio do narrador, um fim mais brutal para a história toda, não teria o mesmo significado para cada uma das partes em disputa. Nem a morte parece que os irmanaria em proposta compartilhada de significação.

 E se nas estruturas típicas de montagem de arquitetura de opressão, Kafka sempre se posiciona do lado dos oprimidos, sempre, como o ódio está na cabeça da mulherzinha que cerca de aborrecimentos e tenta enquadrar o personagem principal, a narração também pode se posicionar, no âmbito ensaístico, como uma tentativa de liberdade proposicional. É ele quem fala no conto, mas a exasperação máxima que ela sente, meio violência, meio mal-estar, bandeira de luta, ocasião de berrar é que o oprime como personagem, e de fora do texto, ela parece rondar o escrito, pronta para mostrar que tem razão no caso todo somente porque o narrador irresponsavelmente a deixa fora de si. O que seria até aceitável, por certo, se ela fosse o centro do mundo a quem todos deveriam exercer estilos de vida somente com o propósito de a agradar.

Pois o texto também é um reclame por uma vida livre e o narrador nunca esconde nos argumentos que a mulher pequena o cerca pelas cadeias feitas de grades de aborrecimento, incompreensão, impaciência e preconceito; e toda a desproporção própria ao caso não é maior, talvez, porque ela também não consegue sair da prisão feita de raiva que construiu para outra pessoa. Se a atribuição que ela lhe configura é a de culpado, um bandido de menos violência física está preso nas celas da incompreensão, enquanto do lado de fora pronta para a violência, mesmo aquela feitas de gritos contidos de desaprovação universal, a mulher pequena ronda toda cena com ares de polícia.

Enquanto ela espuma e baba de raiva, e com razão, ele escreve, mas só para tapar com a mão aquela obstinação mais doentia. Certamente, que essa ação bem pode reduzir seu campo de atuação pela cegueira voluntária, o fechar os olhos com uma única mão, pois no todo e em parte, as imagens que ela providencia para o recordar do ódio patológico que ela nutre são múltiplas, se bem que parecem começar com aquele “sorriso amargo” que rapidamente se transforma em “tremor de indignação”.  

Se cada pedacinho da existência do narrador incomoda uma qualquer coisa na mulher pequena, o que não reduz a raiva, mas a posiciona até mesmo nas dimensões infinitesimais, certamente ela ainda elaboraria um reproche por ele narrar (talvez, até pensar...) a coisa toda por via escrita. É claro que ele seria culpado, de antemão, somente por se expressar do único jeito que consegue, pois a insensatez que orienta o ódio universal da pequena mulher sequer permitiria ao narrador, que descreve sua estupefação, deslocar o caso todo para o regime formal que ele bem queira. E se antes de escrever o que o personagem narra e nos confidencia, ele já era culpado por ser quem era, podemos supor que letras bem feitas no corte preciso do estilo, formas do escrever que parecem indicar uma lógica de navalha do narrador, incomodariam a mulherzinha em mais de um plano existencial.

É bem possível que o narrador escreva bem de propósito. Talvez menos para provocar a ira infinita da mulher menor, mas para demonstrar que como contraponto daquela torção física que a leva a grunhir como animal, ainda é possível o pensar ritmado da razão. A exposição direta e por argumentos que o personagem que narra refuta e reposiciona no colo da mulherzinha que virou bicho toda a problemática, bem pode indicar um modo faceiro de sublinhar sua opção voluntária por continuar a ser um homem.

O narrador nos avisa que tudo nele parece contrariar o sentido de beleza, o sentimento de justiça, os hábitos, as tradições, as esperanças daquela mulher feita de ódio. Mas, se não entende os motivos do sofrimento dela, não é por discordar da estética, da ética, da fala, do dia-a-dia e mesmo dos sonhos que ali têm lugar, e o caso todo se potencializa ao nível do sequestro de sentido porque não há nenhuma relação entre os personagens que autorize a mulherzinha a pensar, odiar e sofrer por um homem que a incomoda tanto, mas que da vida dela parece não ter qualquer espécie de participação.

A tática de Kafka aqui é precisa. Sem um passado juntos, porque o narrador desconhece os motivos que originaram aborrecimentos, sem um futuro brilhante em que uma solução de compromisso encerre a causa, o presente, aquele espaço comprimido entre aporrinhação do olhar que reprova e a surpresa pela existência efetiva de personagens menores, perde significação temporal. Sem passado, não há construção de uma história; sem esperança, não haverá um futuro: Kafka circunscreve o tempo da mulher pequena na vida do narrador como as ocasiões próprias de um mero instante feito de continuidade perpétua.  

E tudo fica ainda pior, se o regime é o de ódio, quando o personagem quase que admite, inclusive, que escreve e pensa na coisa toda só para gastar o tempo, um nada para fazer, porque a solução do caso é dada logo no segundo parágrafo: é preciso que ela esqueça da existência dele. Tal esquecimento talvez colocasse o relacionamento estranho em equilibrio porque enquanto de um lado, o da pequenez, o funcionamento é a operação do desgosto em diversos níveis, o outro lado, o do personagem principal, sequer se interessa mais em compreender as motivações, os atos, as falas que irritaram a diminuta mulher ao ponto dela levar a vida em regime de revanche.

A desproporção é notória. O narrador pensa pouco na mulher pequena, e, após construir o texto, tomou decisão típica de indiferentes; ela, por outro lado, parece que só consegue garantir notoriedade existencial ao demonstrar como ele é culpado de crimes gravíssimos, cuja maior característica é a de simplesmente serem feitos de ações que ela desaprova prontamente.  

Sem procurar os signos que apontam para uma explicação da conduta da mulherzinha, o que resta é apenas incomodá-la menos, depositando seus desvarios no baú dos mistérios que ela inventou para provar que o narrador é um culpado do crime maior: na sua existência livre, ele simplesmente a atormenta demais.

E quando o personagem principal admite que nem o silêncio, nem um agrado, que nada, no fundo, demoverá a mulher de expressar a dor que ele não provocou certamente por amor, percebe, no entanto, a sua responsabilidade parcial no assunto em pauta porque entende e posiciona as preocupações máximas da mulher pequena no estatuto próprio do que lhe é completamente irrelevante. Tudo leva a crer que ele não guarda no bolso um rancor porque sequer sabe onde encontraria tal sentimento por ela e, pelo contrário, chega a admitir que receberia essa mulher, talvez na sua própria casa, muito bem.

Porém, ao privilégio de uma indiferença existencial que o personagem principal se vangloria perante a mulherzinha, corresponde, inversamente, o olhar de desaprovação, repleto de reprovação moral de quem enxerga o outro como um ser errado, fustigando-o de raios de culpa –, uma troca de olhares feita de estranheza.

Pois se ao olhar para a pequenez  ele não vê coisa alguma, nem um quase dentro do possível, e mesmo quando pisca nada acontece, porque aprendeu a piscar bem por piscar de propósito, o olhar que ela lhe atribui quase irradia “chispas brancas” e comprometem uma existência inteira porque o colocam sob a lógica daquelas categorias básicas de julgamento próprio de gente menor, a moralidade de sempre das pessoas que adoram apontar alguém com o dedo, a ética que funciona unilateralmente, o senso de justiça que não se permite ver com os olhos do outro, ou seja, todas as fórmulas pré-fabricadas de operação da mediocridade moralista que o narrador certamente não compartilharia por decisão espontânea.

Permitindo-se um princípio de bondade que lhe é próprio, o personagem principal até parece se compadecer das lágrimas de cólera, das alterações corporais, dos sofrimentos gigantescos que ele parece provocar nela. E tudo fica até mais estranho porque ao meio de sua indiferença profunda perante a mulherzinha – a relação entre eles existe apenas do lado dela –, apesar dela parecer se ocupar exclusivamente da vingança de tormentos que a existência dele proporciona, o narrador até se pergunta se não poderia fazer nada para ajudar a mulher que não o suporta. O problema que ele enfrenta tem tamanho, e é feito de baixeza, mas, ela parece precisar de alguma forma maior de amparo. E já não sabemos, ao certo, se o que a irrita no ritmo da demasia não é um infeliz modo dele ser que não pode evitar, por ter nascido com ele, e que consiste em “sussurrar uma mansa exortação a quem está fora de juízo”, ou se esse tormento todo, com a adição da possibilidade por ele sugerida de que a receberia bem, não seja mais uma daquelas circunstâncias que a enlouquecem mais ainda de raiva, porque esse narrador parece atuar sempre do mesmo jeito com sua eterna incorrigibilidade.

No meio das manias que parecem determinar a ação dos dois, o apelo ao tribunal público seria uma solução se, na verdade, ambos não se desgastassem mutuamente perante o imaginário popular. E quando ele admite que pode ter um desconto de culpabilidade por sua posição social também percebe que a acusação é frouxa porque implica mais a mulher pequena do que ele mesmo: é ela quem odeia e que tem crises, vez ou outra, de não dominar o corpo que estremece por espasmos físicos advindos de impulsos de raiva.

Assim é que a publicidade total é bem um transtorno, a acusação total de culpa do narrador reflete na existência da mulherzinha reclamona que não gosta de ser contrariada, e a trajetória da ameaça constante que ela sinaliza em avisar o mundo de que o narrador a aborrece, tanto a implica quanto a explica – e o vexame de ser pessoinha pequena talvez transbordasse o copo cheio. Nem todos observam o mundo com porrete de polícia na mão.

A armadilha criada para pegar de jeito o narrador também pode comprometer o próprio estatuto do aborrecimento dela. Pois mesmo no caso limite em que ele se suicide, tal opção de caminho não será, nem assim ainda, uma solução para a questão toda. Pois é com percuciência que o narrador sugere que, em um caso como esse, ela também teria ataques de fúria sem limites, pois, nada que possa vir dele pode garantir alguma espécie de felicidade. Espumas de fúria substituem sorrisos mesmo em mortes desejadas se o regime de morrer se negar a pedir autorização.

Uma vez que a vida do personagem principal é, só por existência, motivo de atribuição de culpabilidade, desgosto profundo, nojo corporal, também sua morte é um evento insuportável, no mínimo, pela originalidade de um modo de ser livre que ela não pode controlar.

*

O texto que começa por caracterizar a mulher pequena e que terminará por uma decisão pela inércia do narrador com relação aos ataques de reproche que ela lhe envia pode ser um pouco mais espinhoso do que o narrador aparentemente finge no seu divagar.

É preciso que o leitor esteja atento para um certo modo de pensar feito de coerência e prudência, um narrar por argumentos e hipóteses, que disposto em texto não é, talvez, menos violento que as reprovações e transformações corporais com que o narrador descreve a mulherzinha.

O narrador é por demais astuto na descrição das alterações corporais que a sua mera visão proporcionam na mulher pequena. Assim: o “rosto azedo”, “os lábios franzidos rabugentamente”, “o olhar inquisidor de quem já conhece o resultado antes do exame”, o “sorriso amargo”, o “olhar de lástima que eleva ao céu”, um “empalidecimento”, e um “tremor de indignação” vão compondo, em corpo e vontade, a estruturação de mulher menor.

O narrador descreve a pequena rapidamente, é hábil nisso. E uma mera contraposição de duas formas de representar o desajuste, talvez explicasse mais do que toda ordem de argumentos: enquanto a mulher diminuta posiciona as “mãos que se plantam nos quadris para adquirir firmeza”, o narrador pensa-escreve em voz alta, “...pois a questão para mim é pequena vista de fora – a um nível um pouco inferior à verdade.”

Curiosa maneira de aliciar o leitor.

Enquanto a mulher pequena coloca as mãos no quadril por não gostar de ser contrariada e sentir uma indignação imensa contra o mundo só porque o narrador existe, o narrador pensa a questão “a um nível um pouco inferior à verdade”. Enquanto ela faz pose de caprichosa no instantâneo das letras, o narrador pondera sobre os níveis de verdade do imbróglio todo. Tudo se passa como se ao narrador fosse dada a ação pela razão, e à mulher menor, a ação pela vontade.

Uma questão, então, começa a se esboçar sobre o próprio estatuto de verossimilhança do texto. Pode ser que o escrito, em sua progressão racional, frase após frase, tenha inclinado o narrador à decisão pela inércia: portanto, se assim for o caso, deve ser jogado no lixo porque já cumpriu seu papel. Ou, pode ser que o o narrador tenha escrito o texto após a resolução de tapar os olhos para as maledicências da mulher pequena. Nesse caso, talvez, possamos compreender os modos como o narrador irrita tanto a existência da pequenez, pois tendo decidido não fazer nada e viver calmamente à título de inércia, ele ainda produz textos, a partir do método de se fingir de morto.

Apesar de não haver outra designação para a mulher, ela é simplesmente pequena e nada mais, sobrariam, não obstante, duas opções para enquadramos esse narrador: ou ele desistiu de confrontar a baixeza e o texto foi para o lixo, ou ele assumiu um cinismo pós mortem e está perdendo, aos poucos, estatura.   

*

            O conto que é quase ensaio, ou um pensar em voz alta, uma progressão do processo de tomada de decisão, parece ser feito de menos movimento. Quase nada acontece de fato entre as primeiras linhas e o final previsível que emolduram o relato. O recheio do texto opera pela dialética formal entre os espasmos da personagem que odeia, mas não tem voz, e a esquiva de quem não está nem aí, mas se propôs a escrever. Algo entre a baba que escorre nas espumas da indignação e a letra pretensiosa de quem pensa para se entender. Mas se tudo começa no registro do conto com “É uma mulher pequena...”, outro dado logo ali na primeira frase pode denunciar também a repetitiva e reiterada obstinação com que a mulherzinha prossegue em regime obsessivo de pensar na vida de outra pessoa: “...vejo-a sempre com o mesmo vestido...”.

            A imagem, truque da escrita precisa de Kafka, é boa demais para ser desperdiçada.

Pois engole os símbolos do ódio no tédio da repetição do formato de sempre, a mesma proposição a se mostrar toda hora na orquestração dos índices do tormento. Se as vestes são as mesmas que recobrem o corpo, uma aposta na fantasmagoria inerente à repetição bem poderia atrapalhar pensamentos mais débeis, mas, de maneira mais simples, a pequenez dela pode ser tão pronunciada que a falta de imaginação a obriga às rotinas de sempre, o eterno fazer do mesmo o mesmo. O vestido ainda garante, no entanto, que não aparecerá nua quando for o caso de tentar desagradar o personagem-narrador. Sem roupas de cobertura da nudez, dimensões mais frágeis se pronunciam, e as regras do jogo podem mudar inadvertidamente.

Em regime de pele à mostra, ninguém é ingênuo porque todo mundo tem alguma culpa que sugere vergonha.

            Mas, pode ser que ela não troque de roupa por preguiça. Ou, que use a indumentária para deixar claro ao narrador quem é ela, a todo momento. Ou, talvez a vestimenta repetitiva faça parte da esperança de que ele se lembre dela, em todas as ocasiões, do mesmo jeitinho – e o vestido de sempre, o modo de se apresentar, o caimento do tecido no corpo possam denunciar, às avessas, que a mulher que é pequena tem ilusões mais soltas e inconfessáveis do que se permite admitir.

*

Se o narrador apenas recobre com uma das mãos o problema todo, como decide no último parágrafo do conto, isso não garante que ele ainda não o enxergue parcialmente por entre os dedos, e tudo indica, no regime de armação do conto, que ele se finja meio de morto, uma quase inércia, porque teme se diminuir ao tamanho dela. A mediocridade pode paralisar, sim, quem tem outras propostas de invenção de si mesmo. Uma conclusão e tanto. Uma vez que todo esforço de escrever o seu relato opera em regime de displicência, mas de mínimo de elegância e ordenação racional, sua análise do incômodo a partir da subtração da incomodada (que não tem voz), perderia muito em estilo se o personagem também pudesse, formalmente, ser acusado de pequenez. Assim, o narrador parece, em leitura atenta, quase admitir que por dentro da tessitura do escrito, na operação clássica que o singulariza e que verteu brevemente para a letra do texto, desejou, mesmo que momentaneamente, no tempo de um piscar de olhos, um bem-estar autêntico para a garota que se diminuiu por pensar nele demais.


Nenhum comentário:

Postar um comentário