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sábado, 10 de agosto de 2019

O Reconhecimento Infinito, 1963 (Magritte) Ou Pai e Filho




I

         Pois também existe aquela história do jovem poeta que teve como guia o velho poeta pelos caminhos do céu – o segredo era interpretar as nuvens mais caprichosas, as que não se assemelham a objetos ou coisas concretas, buscando formas que parecessem com sentimentos.
         A saudade era fina, mas era longa em extensão, e eles demoravam muito tempo para conseguir percorrê-la por completo. Às vezes, uma saudade era tão longa que eles desistiam no meio do caminho e tomavam outro rumo para continuar a atividade de sentir as nuvens e compreender suas peculiaridades.
         O ódio não era exatamente branco como as demais nuvens. Existia algo de cinzento nele. Era um tipo de nuvem que se podia perceber à distância e que causava uma impressão particular. Destacava-se entre as demais e era responsável pelas tormentas mais violentas.
A paixão se assemelhava, curiosamente, ao ódio. Também era responsável por fazer a terra estremecer, mas tinha algo de momentâneo, não se fixava por muito tempo no horizonte, e se dissipava com a mesma facilidade e violência com que havia se formado. Era um tipo de nuvem de um quase-vermelho muito leve, apenas matizado, e lembrava a face de alguém ligeiramente envergonhado, mas que conseguia evitar que a maioria das pessoas percebesse seu rubor. Era quase que apenas a sugestão do vermelho.
Já a dor era reconhecível por ser de um formato menos uniforme, tinha várias saliências, pontas, recortes: não era sempre da mesma maneira que se apresentava aos olhos e a mutabilidade de suas bordas era sua característica predominante. Não era à toa que podia se disfarçar por outro sentimento, sendo, por vezes, muito difícil de identificá-la: era preciso olhos treinados para não se deixar enganar e tomar essa nuvem por outra.
Existia uma forma de nuvem que raramente aparecia no horizonte. Delgada e curta, ela também era menos cheia que as demais, de uma brancura que apenas manchava levemente o céu azul. E mesmo os poetas que caminhavam entre as nuvens e tinham o costume de identificá-las, às vezes, podiam passar por essa forma sem reconhecê-la propriamente. Deram o nome de remorso para ela e começaram a perceber que muitas vezes ela se formava após a dissipação de uma nuvem de paixão ou de ódio.
Mas, a mais difícil nuvem de se identificar era aquela que continha o amor. Ela podia ter qualquer formato. Podia se apresentar de qualquer modo e se formava e se dissipava sem obedecer a muitas regras. E o mais curioso é que, ao contrário do que pensam os não-poetas, esse tipo de nuvem aparecia com muita frequência.
A respeito dessa nuvem, os dois poetas discordavam sobre a melhor maneira de identificá-la.
O velho poeta argumentava que para distingui-la era preciso sempre deixar o tempo passar. Ela não se estruturava apenas no espaço, era uma nuvem de temporalidade mais vagarosa e se relacionava diretamente com o brilho dos astros. Ela cobriria o sol e sua mais importante característica seria que quando ela terminava de passar por esse astro, ele brilharia de uma maneira completamente diferente: tudo parecia se iluminar, a luz inundava todos os lugares e as coisas podiam ser vistas de um modo mais verdadeiro. O velho poeta acreditava que a nuvem do amor era aquela que tornava possível uma explosão de luminosidade após a sua passagem.
O jovem poeta, no entanto, achava que conseguia identificar a nuvem do amor através de um outro recurso. Não era exatamente o formato das bordas, a coloração, o preenchimento, a potência de chuva, nem mesmo o brilho do sol depois que ela passava. Nenhuma dessas características tomadas exclusivamente podia apontar para a nuvem do amor. O amor era um pouco de saudade, um pouco de ódio, um pouco de paixão, um pouco de dor e um pouco de remorso. Era uma nuvem contraditória em si mesma. Fina e longa era, ao mesmo tempo, curta e disforme. Cheia e pronta para a tormenta era apenas uma mancha no céu azul. Levemente colorida era extremamente branca. Era responsável pela luminosidade mais ampla e pela sombra mais escura.     
Como isso poderia ser possível, o jovem poeta não sabia obviamente explicar. Talvez a resposta fosse que todos os formatos de nuvens que representam os sentimentos tivessem, no fundo, uma mesma origem. Ou que tivessem uma mesma finalidade. O amor poderia estar no começo ou no fim de todos os sentimentos. O que o jovem poeta tentava defender era que, de qualquer modo, nenhuma das nuvens tinha um real significado se não tivesse no fundo, mesmo que só de passagem, um pouco do amor. Todas as nuvens eram feitas da mesma matéria. Era uma certeza estranha. A de que todos os sentimentos que possam existir nesse mundo eram, na verdade, apenas breves momentos de uma nuvem de amor infinita.  

II

         Não estando propriamente mortos, os dois homens se encontram em meio aos sonhos. O cenário é com frequência o mesmo: os céus. E o caminhar é sempre para frente. Vez ou outra, é preciso desviar das nuvens mais carregadas.
         A conversa, no fundo, também é sempre a mesma.
         O homem mais velho, o que usa a bengala para auxiliar no andar, quer convencer o mais novo, o que fala sempre gesticulando, que seu lugar natural é ali, no azul do céu e na brancura das nuvens: um infinito plenamente luminoso e verdadeiro.
         O homem mais novo, no entanto, conhece seus próprios abismos. Sabe que estar ali, andando entre nuvens, não é sua condição natural. Reconhece que está sempre a um passo de cair em uma escuridão profunda. Talvez quisesse simplesmente acreditar no homem mais velho, porém, aprendeu a desconfiar prontamente de si mesmo e admite que anda sempre no limite, sempre em uma quase queda.
         E o pior.
         Aprendeu, com o passar do tempo, a gostar do abismo.

III

Como explicar esse universo de significados: a sensibilidade em pintar a conversa mais verdadeira, a adequação em localizar nas nuvens esses homens tão iguais e tão diferentes, a técnica de deslocar os personagens para justamente centralizá-los, a capacidade de fazer das ocasiões do branco algo de carinho, a presença dos chapéus como símbolo do encontro e a musicalidade profunda do azul como manifestação da futura saudade?   
Talvez, seja porque se trata de uma beleza plena que está para além de qualquer temporalidade, que sobreviverá ao depois do depois – de algum modo, foi possível pintar aquilo que os homens mais sensíveis nomeiam de uma forma abstrata, mas que é precisa: sinceridade.  

IV

         Na escolha das cores, nos matizes mais suaves, na leveza dos personagens, no senso de proporção.  
O contraste entre o azul do céu e o branco das nuvens: infinidade.
         O cinza da condição humana, levemente deslocado do centro da tela: brevidade.
         Uma imagem que não é uma representação, apenas sugere algo entre a infinidade e a brevidade: a pintura mais poética de todo surrealismo.

O Mundo Perfeito, 1962 (Magritte) Ou As Cores do Mistério






I
  Um quadro singelamente bicromado: azul e branco, sem dúvida. Toda a astúcia da tela, que é um jogo de enganar, consiste em posicionar o olhar a partir de uma dessas cores. Sobrepostas, elas dão a impressão de profundidade à lógica de uma estrutura paradoxal. E somos tentados, constantemente, a determinar qual das camadas corresponde à verdadeira imagem de um céu que se desdobra e se reproduz a cada novo lance de olhos que empreendemos para tentar compreender a coisa toda. Pode ser que realizar um olhar a partir do azul garanta algumas certezas. A diferença de tonalidade dessa cor nos elementos que compõem a pintura certamente ajuda a identificá-los e, se isso não proporciona a descoberta de alguma verdade radical sobre a tela, pode auxiliar a delimitar os problemas que um intérprete pode encontrar pela frente. Pelo menos os problemas decorrentes do olhar azul, como podemos chamar. O chão, a parede e a cortina são plenamente identificáveis, possuem tons de azul diferentes, mas um rouba a cena do outro. Pensamos constantemente em que lugar, em qual destes elementos, está o verdadeiro céu. Um céu que pode muito bem ser impossível de se determinar, que é quase que apenas intuído, mas que invariavelmente não cansamos de tentar delimitar. Bem pode ser, no entanto, que sua função na tela seja outra – impedir profundamente que enxerguemos além. Obstáculos sucessivos a que olhemos diretamente para a imensidão do azul. O curioso, nesse sentido, é que eles são feitos do próprio azul cujo olhar inviabilizam. É possível, também, uma contemplação que privilegie a cor branca. Ela opera, nesse caso, de modo muito mais fugidio. Ao contrário do azul, feito de linhas retas, o branco é disforme e, além disso, espalhado pela tela em muitos lugares, mais mancha o azul do que propriamente se afirma como um elemento próprio. As diversas manchas, aliás, podem aparentar unidade em sua disposição aleatória, em seus formatos irredutíveis à geometria, mas, talvez, sejam plenamente singulares em cada uma de suas aparições. Se o azul é estático, o branco só se propõe nessa tela como movimento. Seus momentos são sempre de leveza. O branco pode estar na pintura de um modo absolutamente perceptível, determinado, de um modo que pensamos poder registrá-lo em nossa mente sem dificuldades. Mas, qualquer distração, qualquer desvio de olhar, tornará impossível enxergá-lo duas vezes do mesmo modo. As ocasiões do branco nos pregam peças e fogem do nosso olhar repetitivo. Cada experiência com essa tonalidade, que é quase que a negação da própria tonalidade, é única e, portanto, exige de nós, não concentração – o que de nada ajuda nesse caso – mas, uma forma de respeito toda particular. O branco pode não preencher o céu em todos os casos, sempre haverá dias sem nuvens, mas certamente é o que dá sentido ao céu que está para além do imenso, que inscreve seu registro para depois da finitude.  
II
  A maçã é verde, mas na verdade é azul. Disposta diretamente no chão, ela é um dos elementos azulados da pintura. Trata-se de uma maçã perfeitamente desenhada. Os matizes de seu azul são pintados ao nível do detalhe. Ocupando o primeiro plano da tela, ela projeta, inclusive, uma sombra que, como não poderia deixar de ser, também é azulada. Um azul quase que meramente sugerido, na medida em que as sombras têm por hábito serem negras. Ali, no espaço do azul que parece ser imenso, um azul que se aprofunda a cada olhar, a maçã se situa em posição estratégica. É a primeira camada da representação do céu. Ela, de certo modo, o integra e o inicia e sua função é puramente enigmática. Entendê-la é como que desvendar um segredo. O segredo dos céus propriamente dito. Isso é: uma metáfora. Todo céu é um mistério.  
III
  A maçã é verde, mas na verdade é branca. Uma nuvem branca estranhamente estática, avessa a sua própria natureza, com um formato peculiar de maçã, com cinco folhas esbranquiçadas num galhinho, e que contrasta com o azul do céu que quando olhamos muito fixamente parece curiosamente se mover. Todo branco lembra nuvens. Mas, quando se trata de nuvens propriamente, nunca podemos saber ao certo. Nuvens são sempre outras possibilidades de si mesmas. E os formatos dessas manchas no universo da composição da tela podem lembrar muito bem uma coisa ou outra. O branco é infinito a seu modo, de uma maneira um tanto caprichosa. Isso é: uma metáfora. Toda nuvem é uma metáfora.  
IV
  A imagem é muito bem desenhada: um círculo perfeito. Está disposta no chão azul, o que pode sugerir, num lance de olhos, a sensação de certa imobilidade. Sua inércia, porém, é algo duvidoso dentro da estrutura da pintura – pois sua sombra, mesmo que vagarosamente, provavelmente se movimentará. Mas, isso não é o que incomoda quando pensamos no assunto de maneira mais detida. O azul está em todo lugar. Só é interrompido por aquelas manchas brancas – as que podem bem ser nuvens, o que quer que isso signifique efetivamente. Um exercício interessante, no entanto, seria o de colocar o quadro de ponta-cabeça. Nada se alteraria verdadeiramente, se assim o fizéssemos, a não ser o círculo em primeiro plano. O azul e o branco continuariam com a mesma lógica de sempre e pode até acontecer de observadores desavisados nem perceberem a mudança. A pintura ainda estaria completa a seu modo – tudo se passa apenas no choque entre as cores. Mas, se assim fosse, a cor do círculo perfeito – azul ou branca – pediria maiores explicações. Seria o caso de pensar se, de fato, se trata de uma lua ou um sol, essas esferas que reinam nas alturas. E é claro que haverá sempre quem insista, sem maior sucesso, que a lua não é azul e o sol não é branco. O que mostra, no fundo, que muitos não conseguem nem determinar, ao certo, qual é a cor de uma simples maçã.  
V
  Por trás das nuvens do céu há cortinas que nos impedem de ver mais além. E todo o problema consiste no fato de que mesmo essas nuvens, vez ou outra, também são feitas de cortinas.

segunda-feira, 29 de maio de 2017

Golconda, 1953 (Magritte) ou Chuva de Mim Mesmo




I

         Um dia desses, essa quase interminável chuva de mim mesmo, essa intempérie inesperada promete acabar e poderei verdadeiramente flutuar de forma livre ainda que fragmentado em gotas de mim – serei composto de partículas bojudas que não cairão mais das alturas, mas ficarão suspensas como balões estáticos. Inertes. Simplesmente pairando em pleno ar.
         Nessa ocasião, me tornarei mais próximo daquela promessa que fiz a mim mesmo – o homem que eu queria ser antes da chuva começar. Não poderei voar, essa é uma das minhas mais tristes certezas, mas, pode ser que seja um pouco mais feliz. Pelo menos não precisarei me preocupar em derramar mais tanto de mim.

II

         Somadas as características essenciais, todas as variações, são poucas as diferenças entre as possibilidades.
         Em 71 casos, pode-se ser original. Em 50, a divisibilidade é por 2, 5, 10, 25 e 50 (ser divisível por 2 é um dos principais defeitos da imagem).
         Segundo o cálculo de alguns, é possível que se caia dos céus 121 vezes. Mas, ascender às alturas somente se dá em 23 casos.
         De qualquer modo, o sobretudo e o chapéu sempre ajudam: é evidente que, mais uma vez, se esquece o guarda-chuva em casa.

III

         Pode bem ser que a tela capture um momento, apenas um instante, de um movimento constante. Do céu para o chão, pingam homens vestidos de sobretudo e chapéu escuros; ou, do chão para o céu, ascendem homens a desafiar a gravidade.
         Se assim for, de qualquer modo, nada nos indica a velocidade do movimento, e fazer o quadro ganhar vida em nossa imaginação não garante, necessariamente, uma compreensão maior sobre sua estrutura.
         Ao olhar a imagem de longe, os inúmeros homens que compõem a tela parecem ser apenas borrões. Gotas negras a manchar o céu e os pequenos prédios de apartamentos: ocasiões do negro em um céu azul sem nuvens, em um telhado avermelhado sem telhas e em paredes de prédios cinza-claros sem portas visíveis.
         O escuro se repete, inclusive, como mancha do próprio borrão, pois, se observarmos atentamente, os homens vestidos de negro provocam sombras nos prédios que denunciam a presença do sol.
         De fato, é curioso que ninguém se atreva a abrir as janelas e que mesmo as cortinas fiquem quase completamente cerradas. Não há, aparentemente, um lado de dentro dos prédios que possa ser verificável. A lógica da imagem é completamente externa aos prédios, com os enigmáticos homens a borrar os outros elementos.
         Meramente suspensos, caindo dos céus, ou ascendendo às alturas, os homens parecem ser repetições de um mesmo personagem. Multiplicado infinitamente – tudo nos leva a crer que é impossível contar quantas variações do mesmo homem aparecem no quadro – o personagem parece não passar por nenhuma transformação em nenhuma de suas aparições, se bem que, dependendo da ocasião, apareça sob ângulos diferentes.
         Apesar de não ter, aparentemente, nada em comum com a maioria dos observadores da imagem, ele provoca identificação. Há algo nele que nos remete a nós mesmos. Não é o chapéu, nem mesmo o sobretudo, o que leva a essa sensação. É a repetição infinita que nos induz a essa tendência. Apesar de ser uma afirmação arriscada, que quase não se propõe, há algo de espelho nessa infinidade de figuras absolutamente idênticas. Mas, isso não quer dizer que esse personagem provoque os mesmos significados para cada um dos observadores da imagem.
         Os homens mais imaginativos pensam que esse homem está suspenso no ar, flutuando como uma bolha de sabão, e que bem que gostariam de experimentar essa sensação de leveza absoluta.
         Os religiosos imaginam que estão subindo da terra aos céus. Veem nessa possibilidade alguma espécie de revelação mística e ficam contentes com a imagem toda, convencidos de que encontrarão a salvação.
         Os homens que têm demônios internos mais frequentes somente conseguem imaginar a si mesmo caindo das alturas e se sentem incomodados com a ideia de que se espatifarão completamente pelos chãos.
         E existe também aqueles observadores que ao olhar para a imagem não conseguem enxergar outra coisa a não ser a possibilidade de voar. São os homens de imaginação mais solta, que encontram na arte sempre alguma possibilidade de libertação.

         No que me diz respeito, só uma coisa me incomoda de verdade. Nessa infinita multiplicação de mim mesmo, em todos os casos, eu continuo sendo eu mesmo. 

terça-feira, 13 de dezembro de 2016

O Mês das Vindimas, 1959 (Magritte) ou Do Lado de Fora de Mim Mesmo






          Existem dois homens iguais ao meio de cinco homens iguais. Eles se vestem de preto.
          Existem cinco homens iguais ao meio de sete homens iguais. Eles usam chapéus.
          Existem sete homens iguais ao meio de onze homens iguais. Eles usam gravatas.
         Existem onze homens iguais ao meio de vinte e três homens iguais. Eles estão em pé.

          Existem vinte e três homens iguais ao meio de vinte e três homens iguais. Eles estão do lado de fora da minha janela. Mas só um me incomoda.