I
Um
dia desses, essa quase interminável chuva de mim mesmo, essa intempérie
inesperada promete acabar e poderei verdadeiramente flutuar de forma livre
ainda que fragmentado em gotas de mim – serei composto de partículas bojudas
que não cairão mais das alturas, mas ficarão suspensas como balões estáticos.
Inertes. Simplesmente pairando em pleno ar.
Nessa ocasião, me tornarei mais próximo
daquela promessa que fiz a mim mesmo – o homem que eu queria ser antes da chuva
começar. Não poderei voar, essa é uma das minhas mais tristes certezas, mas,
pode ser que seja um pouco mais feliz. Pelo menos não precisarei me preocupar
em derramar mais tanto de mim.
II
Somadas as características essenciais,
todas as variações, são poucas as diferenças entre as possibilidades.
Em 71 casos, pode-se ser original. Em
50, a divisibilidade é por 2, 5, 10, 25 e 50 (ser divisível por 2 é um dos
principais defeitos da imagem).
Segundo o cálculo de alguns, é possível
que se caia dos céus 121 vezes. Mas, ascender às alturas somente se dá em 23
casos.
De qualquer modo, o sobretudo e o
chapéu sempre ajudam: é evidente que, mais uma vez, se esquece o guarda-chuva em
casa.
III
Pode
bem ser que a tela capture um momento, apenas um instante, de um movimento
constante. Do céu para o chão, pingam homens vestidos de sobretudo e chapéu
escuros; ou, do chão para o céu, ascendem homens a desafiar a gravidade.
Se assim for, de qualquer modo, nada
nos indica a velocidade do movimento, e fazer o quadro ganhar vida em nossa
imaginação não garante, necessariamente, uma compreensão maior sobre sua
estrutura.
Ao olhar a imagem de longe, os inúmeros
homens que compõem a tela parecem ser apenas borrões. Gotas negras a manchar o
céu e os pequenos prédios de apartamentos: ocasiões do negro em um céu azul sem
nuvens, em um telhado avermelhado sem telhas e em paredes de prédios
cinza-claros sem portas visíveis.
O escuro se repete, inclusive, como
mancha do próprio borrão, pois, se observarmos atentamente, os homens vestidos
de negro provocam sombras nos prédios que denunciam a presença do sol.
De fato, é curioso que ninguém se
atreva a abrir as janelas e que mesmo as cortinas fiquem quase completamente
cerradas. Não há, aparentemente, um lado de dentro dos prédios que possa ser
verificável. A lógica da imagem é completamente externa aos prédios, com os
enigmáticos homens a borrar os outros elementos.
Meramente suspensos, caindo dos céus,
ou ascendendo às alturas, os homens parecem ser repetições de um mesmo
personagem. Multiplicado infinitamente – tudo nos leva a crer que é impossível
contar quantas variações do mesmo homem aparecem no quadro – o personagem
parece não passar por nenhuma transformação em nenhuma de suas aparições, se
bem que, dependendo da ocasião, apareça sob ângulos diferentes.
Apesar de não ter, aparentemente, nada
em comum com a maioria dos observadores da imagem, ele provoca identificação.
Há algo nele que nos remete a nós mesmos. Não é o chapéu, nem mesmo o
sobretudo, o que leva a essa sensação. É a repetição infinita que nos induz a
essa tendência. Apesar de ser uma afirmação arriscada, que quase não se propõe,
há algo de espelho nessa infinidade de figuras absolutamente idênticas. Mas,
isso não quer dizer que esse personagem provoque os mesmos significados para
cada um dos observadores da imagem.
Os homens mais imaginativos pensam que
esse homem está suspenso no ar, flutuando como uma bolha de sabão, e que bem
que gostariam de experimentar essa sensação de leveza absoluta.
Os religiosos imaginam que estão
subindo da terra aos céus. Veem nessa possibilidade alguma espécie de revelação
mística e ficam contentes com a imagem toda, convencidos de que encontrarão a
salvação.
Os homens que têm demônios internos
mais frequentes somente conseguem imaginar a si mesmo caindo das alturas e se
sentem incomodados com a ideia de que se espatifarão completamente pelos chãos.
E existe também aqueles observadores
que ao olhar para a imagem não conseguem enxergar outra coisa a não ser a
possibilidade de voar. São os homens de imaginação mais solta, que encontram na
arte sempre alguma possibilidade de libertação.
No que me diz respeito, só uma coisa me
incomoda de verdade. Nessa infinita multiplicação de mim mesmo, em todos os
casos, eu continuo sendo eu mesmo.
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