Comecemos pelo sexo.
Sim, pelo sexo.
Existe algo de estranho nos
discursos bem-pensantes sobre o filme “Azul é a cor mais quente” de Abdellatif
Kechiche. O que se diz reforça o que não gostariam que se dissesse. Os críticos
menos entusiastas do filme e boa parte do público ficaram chocados com as cenas
de sexo. Um certo moralismo barato pergunta se as cenas precisavam ser tão
explícitas. Para não parecerem tacanhos, este tipo de moralismo não vai
simplesmente dizer que o filme tem cenas quase-pornográficas e isto é o que
incomoda prontamente. Também não vai dizer que o fato destas cenas serem de
sexo homossexual tenha trazido algum incômodo. Este tipo de crítica, rasa,
gostaria de uma história de amor sem sexo, sem desejo e bem comportada,
adequada aos padrões sexuais dominantes. Por mais que tente esconder, é uma
crítica preconceituosa e conservadora. Mas, isso não é segredo para ninguém.
Ocorre que existe outra corrente
crítica sobre este filme que, mais elaborada, no entanto repete o mesmo
moralismo da crítica rasteira. E pior, sem perceber.
Então temos que escutar a
lenga-lenga de que o filme é, na verdade, a história das descobertas de uma
adolescente perturbada com sua posição existencial no mundo, que retrata um
doce amor homossexual, que denuncia o próprio moralismo da sociedade francesa
ou que simplesmente é um filme que acompanha a vida de uma mulher, Adèle, como
nas histórias de Truffaut. Depois de dizer isso, estes críticos salientam que o
filme tem três horas e que as longas cenas de sexo não são tão longas ou, pior,
que não representam o mais importante da história, seriam apenas cenas normais
de um relacionamento.
O que esta corrente crítica faz, no
fundo, é dizer que o sexo não tem, para o bom expectador, um papel tão
relevante assim, dado que a verdadeira história seria sobre outra coisa. E
ficamos quase que culpados por não termos entendido a coisa toda bem assim, na
medida em que enxergamos sexo por todos os lados dentro do filme.
Esta crítica, que propõe uma leitura
não-sexual do filme, acaba por fazer o jogo dos moralistas mais arraigados. Que
história é essa de uma adolescente e suas dúvidas existenciais sem sexo? De um
doce amor homossexual sem desejo? Do moralismo francês sem o escândalo? Do
itinerário da vida de uma mulher sem a sedução? O filme pode ser interpretado
de todas estas maneiras, mas, alguma coisa se perde ao negar ao olhar uma
tensão de caráter sexual que percorre toda a história.
Por que esta crítica insiste em
subtrair o sexo da própria vida pulsante da protagonista?
Tudo se passa, ao avesso, como se a
vida fosse subtraída de sexo, como nos filmes de comédia romântica que passam
nas sessões da tarde e que são completamente inofensivos na sua falta de
imaginação – digo, desejo –, e nas suas cenas “delicadamente” mais picantes.
É preciso dizer, sim, o filme trata
de sexo e não há nada de errado com isso!
Em uma história narrada quase que
completamente em closes, não é verdade que as únicas cenas sexuais sejam
aquelas em que Adèle e Emma estão deitadas na cama se beijando, se acariciando,
se descobrindo aos poucos, de maneira bela e agitada, ou agitadamente bela.
Existe, é verdade, algo de performático no modo como a câmera encaminha estas
cenas. Explosão de paixão, não resta dúvida que o diretor sabe o que está
fazendo. Não é propriamente um certo voyeurismo o que o diretor exige dos
expectadores, é uma certa cumplicidade. Ao vermos o relacionamento sexual entre
as duas de maneira tão aberta, talvez seja o caso de deixar de lado os
preconceitos, de enxergar o que raramente se vê nos limites estéticos dos
filmes tradicionais, talvez seja o caso de mudar a chave do olhar sobre o sexo
e encontrar, admiravelmente, sob a película do filme a beleza que existe nas
verdadeiras paixões.
Mas, passemos aos lábios.
A
questão sexual em “Azul” está para além das cenas mais explícitas, é bom que se
diga, e não é preciso ter muita imaginação para perceber isso. A câmera, a todo
momento, captura a boca das personagens, principalmente, de Adèle. Então, temos
que ver o modo como ela mastiga os alimentos e se emporcalha com a comida. O
modo como bebe, o modo como passa a língua sobre seus lábios. O modo como o
macarrão bolonhesa suja estes lábios. O modo como fuma deliciosamente sem
culpa. Os beijos maravilhosamente bem filmados, em que os lábios-língua-dentes
entram em ação. Os lábios de Adèle são, ao mesmo tempo, titubeantes quando
necessários e perigosamente impulsivos quando óbvios. Até mesmo na maneira como
seus cabelos revoltosos pregam peças e ficam na sua frente eles escancaram o
desejo de uma forma aberta.
Talvez duas cenas traduzam de
maneira geral a atmosfera sexualizada deste “Azul”. Pode-se dizer, inclusive,
que são as duas cenas limites: o começo e o fim do filme. Um filme não começa
com a abertura do primeiro plano e nem termina com o cair dos créditos. Neste
caso, nos parece que o filme começa mesmo é na noite de Adèle na boate gay, e
termina no café, em um dos últimos encontros entre Adèle e Emma, apesar de sobrarem
mais algumas cenas completamente dispensáveis até os créditos.
Neste começo do filme, Adèle está
confusa. Muita coisa tem acontecido em sua vidinha normal. Sem saber muito bem
como e nem por que, ela vai parar em uma boate gay. Ali, é abordada por Emma, a
mulher dos cabelos azuis que já tinha visto na rua e que, quase como em uma
história de amor à primeira vista, já tinha habitado seus sonhos. Emma e Adèle
simplesmente conversam. Conversa banal. Mas, ao contrário das conversas
retratadas anteriormente entre Adèle e Thomas, conversas triviais, o bate-papo
entre as duas, quase que imbecil em seu conteúdo, é de uma tensão ímpar. Adèle
está realmente empolgada e Emma, na sua experiência de mulher feita,
visivelmente interessada. Ali, para os menos avisados, aqueles que não leram a
sinopse do filme, não resta dúvida – elas vão ter um caso. A cena transborda
desejo por todos os lados e diz respeito aqueles momentos de conquista e
descoberta anteriores ao sexo propriamente dito que, talvez, sejam mais eróticas
que o próprio sexo pois detém em si a sua lógica primeira: a sedução.
Já no café, anos depois deste
primeiro encontro, depois de todo um relacionamento juntas, elas se reúnem para
conversar. Já estão separadas faz algum tempo, mas Adèle continua perdidamente
apaixonada por Emma. Ela sabe que é sua última oportunidade de conquistar Emma.
Aqui, os papeis se invertem. Se no encontro na boate era Adèle que era o objeto
do desejo, no café, é Emma quem precisa ser conquistada. Mas a conversa vai
mal. Emma não ama mais Adèle. Pelo menos, é o que diz. Então, a protagonista,
incapaz de seduzir e estourando de desejo, apela para o sexo propriamente dito,
o terreno em que suas relações eram incandescentes. Ela pega a mão de Emma e a
beija, lambe, morde, engole. Pega a mão de Emma e coloca entre suas coxas. Mas,
se Emma se perturba com toda aquela investida, ela não aceitará voltar atrás.
Estão
separadas para sempre, pensamos. E ficamos tristes.
***
Mas,
terminemos pelo azul
Sim,
pelo azul.
Azul
é a cor mais triste. Mas, neste filme, a cor do desejo. É a cor dos cabelos de
Emma, a mulher que vai virar a cabeça de Adèle. A cor vai aparecer em diversos
momentos do filme e vai acompanhar, por assim dizer, toda a vida da personagem
principal.
É
verdade que a personagem Adèle começa o filme com uma garota curiosa, em dúvida
sobre sua própria sexualidade, e termina o filme como uma mulher que tem um
passado e, portanto, sabe o que é a perda. Acompanhamos este desenvolvimento,
este itinerário, de uma posição privilegiada que somente podemos ter por
estarmos sentados na plateia do cinema. Kechiche seleciona perfeitamente bem o
que filmar. O resultado é que talvez conheçamos melhor Adèle do que ela mesma
possa fazer por si. Conseguimos entender seus desejos, suas dúvidas, suas
frustrações e seus vacilos. Adèle, no entanto, fica o tempo inteiro sem saber
direito o que realmente está acontecendo consigo mesma.
Adèle
é um enigma para si. Nos momentos iniciais do filme, tudo se passa como se ela
o tempo inteiro se perguntasse: “Mas, o que está acontecendo comigo?” O que não
melhora até o final do filme quando podemos dizer que ela se pergunta: “Mas,
por que eu fui fazer isso?” Da plateia, podemos entender o outro, fazemos as
conexões entre as cenas e percebemos a lógica por trás das ações da personagem.
Podemos entender de onde brota seu desejo, como se articula o seu ciúme, o
porquê de sua traição. Ela mesma, porém, não terá o mesmo privilégio. Então,
ela simplesmente vive. Vive intensamente. Kechiche é brilhante nestes termos
porque ao construir sua personagem, de maneira instigante, acaba não apenas por
sensibilizar o expectador, mas a humaniza-lo. Vivenciamos a angústia, o desejo,
a perda, a saudade.
Duas
cenas estão interligadas. Em um determinado momento, após ter recebido seu
primeiro beijo homossexual de uma garota da escola, Adèle não se contém de
exaltação e felicidade. Espera o dia seguinte em que acaba por abordar a mesma
garota sozinha no banheiro da escola. Ali, ela se aproxima e começa a beijar a
garota, sem maiores avisos. Não é correspondida. A garota explica que o beijo
anterior foi fruto de momento e que não significava muita coisa. Adèle fica
extremamente confusa, embaraçada, envergonhada. Solta um choro contido, umas
lágrimas tão autênticas que doem. Na cena do café, já ao final do filme, ela
também beija e não é correspondida. Agora, é o amor da vida dela que diz não a
amar mais. O choro já não é mais contido, é longo, ranhento, explosivo. Será
que ela errou o tom mais uma vez? Não percebeu em que pé estava a relação com
Emma? O que mudou entre estas duas frustrações? Uma no começo de sua vida
amorosa e outra ao final da grande história de amor de sua vida. O que liga as
pontas destas duas cenas essenciais?
Talvez
seja a vida. A vida de Adèle como retratada no filme. A vida que se vive sem
muitas explicações. A vida que pulsa, que quer, que perde e que ganha. A vida
exuberantemente filmada e que neste filme tem cor.
Amei.
ResponderExcluirValeu, Aline. Cinéfila!
ResponderExcluirParabéns pelo seu post, professor. Sempre que procuro filmes que instiguem a mente, que saiam desse padrão final feliz, visito seu blog e vou à lista de filmes. Excelente filme "Azul é a cor mais quente" e excelente comentário sobre as críticas e cenas.
ResponderExcluirValeu, Rodrigo. Eu também gostei muito deste filme (como dá para perceber...). Minha lista de filmes foi feita sem maiores pretensões, mas é o que me ajudou a formar um certo olhar sobre o cinema. Grande abraço!
ResponderExcluirA sua crítica em relação às críticas “engomadinhas”, de que as cenas de sexo se tornam secundárias no contexto do filme, foi muito bem colocada. Quando assisti ao filme e, em casa, procurei ler algumas análises sobre ele, me senti algo como uma burra tarada, pois as cenas de sexo “reverberavam” na minha cabeça. Me sinto aliviada agora. A cena no restaurante, em que Adele beija, lambe, morde as mãos de Emma, traduz muito bem o desejo e a angústia dos apaixonados. Aquela vontade de “engolir” o ser que desejamos.
ResponderExcluirParabéns pelas linhas!
Olá!
ExcluirObrigado pelo elogio ao meu breve texto sobre este filme. Gostei da metáfora: "aquela vontade de engolir o ser que desejamos". Acho que este é, realmente, o clima do filme.
Abraço!