Rodrigo Suzuki Cintra
“A sua dama causou-me tamanha
impressão que, apenas a conheci, quis trair minha mulher, sofrer, brigar etc.”
Górki em carta para Tchekhov em 1900.
Uma
história de adultério, na literatura e na vida, virada do avesso, pode ser
também uma história de amor.
Em
poucas obras essa transição entre a simples traição e um verdadeiro amor
aparece de maneira tão instigante quanto no conto A Dama do Cachorrinho de Anton Tchekhov. Há quem divida esse conto
em partes (o próprio autor o fez) e demonstre na estrutura narrativa como uma
paixão de ocasião se transforma no amor de uma vida. É como se Gurov e Ana, os
personagens principais, ficassem desculpados por traírem seus respectivos
cônjuges, pois, no fim das contas, percebem que se amam de verdade. O leitor,
então, também se sente desculpado por torcer pelo sucesso dos encontros
furtivos dos dois: “está tudo certo, afinal, eles se amam!”
De
minha parte, não posso dizer o mesmo. Curto cada etapa do texto: o seu tempo
próprio. Desde o começo do relacionamento, ainda um momento em que a vontade
titubeia, até a certeza de um amor pleno que a vontade não pode negar. E, pior:
aprecio os parágrafos apaixonadamente, e com malícia.
Gosto da maneira como Tchekhov traça em poucas
linhas, em uma ou duas páginas no começo do conto, toda a armação que
sustentará o adultério. E quando sinto prazer em ler essa passagem, não estou
me importando nem um pouco se o caso extraconjugal será legítimo do ponto de
vista amoroso. A questão não se propõe nesses termos para mim. A verdade é que
o autor sabe perfeitamente conduzir o tempo interno da narrativa. E o melhor a
fazer é nos deixar conduzir pelo ritmo do namoro. Tchekhov traça o perfil de
Gurov com tamanha nitidez, com perfeita precisão em breves frases, que torna
fácil para nós compreendermos os motivos que levam o personagem a trair
reiteradas vezes sua esposa.
E quando Tchekhov descreve as
caminhadas a sós, os beijos roubados, os abraços às escondidas e coloca tudo
aquilo em uma cidade que não é a moradia regular dos amantes, enfim, quando
situa tudo com um sabor de férias, é impossível não recordarmos de nosso
próprio passado, de nossas paixões de estação. E ao percebermos a intensidade e
a sinceridade dos encontros secretos dos personagens, lemos tudo aquilo com um
sorriso no canto da boca. Pelo menos eu assim o faço. Tchekhov simplesmente nos
toca, muitas vezes, porque faz lembrar, através de uma literatura sem rodeios e
de estrutura simples, de sentimentos e momentos que nós, leitores, muito bem
podemos reconhecer.
E a
narrativa vai crescendo em emoção de uma maneira nesse conto que é difícil
traduzir. Quanto mais Gurov percebe que está perdidamente apaixonado por Ana, o
que ele não desconfiava que pudesse acontecer dada a sua vasta experiência nos
casos de amor proibido, mais o leitor se comove e participa dos sentimentos do
personagem. Invariavelmente, começamos a torcer por aquele amor que não deveria
efetivamente acontecer. Somos levados, por meio de uma escrita que não só diz
respeito à paixão mas que em si mesma seduz, a desconsiderar os deveres
tradicionais de fidelidade vigentes na estrutura moral da vida social. E então,
absolutamente sinceros, queremos ler naquelas linhas bem traçadas que o amor
pode vencer as convenções.
Talvez
seja justamente quando alcançamos esse ponto, quando estamos já embriagados por
aquela escrita, que uma consideração inevitável, situada mais ou menos no meio
do conto, de consequências devastadoras, sempre que a lemos causa algo de
incomodo. Por que, muitas vezes, o que há de mais importante para nós, o que
existe de mais verdadeiro, o que pode nos traduzir completamente, o que
realmente importa de verdade, tem que ser ocultado em nossas vidas? Por que
escondemos nossos desejos mais sinceros? A vida pulsante que encobrimos
propositalmente é milhares de vezes mais franca, importante e essencial que
nossa existência social regrada, sustentada por aparências e etiquetas dos bons
costumes feitas de pura dissimulação. Isso é uma verdade que qualquer um pode
perceber. Mas, o que fazemos? Persistimos na vidinha sem sobressaltos, na
lógica do fingimento cotidiano, na morte de nossos desejos mais profundos, e
tentamos sustentar, a todo custo, aquilo que os outros esperam de pessoas
sensatas como nós.
Somos apenas coadjuvantes na peça
de teatro de nossas próprias vidas.
Muitos leitores questionam os
desfechos dos contos de Tchekhov. Há algo de anticlímax. Um não-desfecho. É que
depois de ter alcançado às alturas nas breves considerações sobre a natureza
humana, ao relatar os sentimentos do personagem principal de maneira tão
pungente, ficamos a esperar um desfecho igualmente estratosférico. Mas, não é
isso que o autor requer de nós. Seus desfechos são um verdadeiro balde de água
fria. Meio que não sabemos para onde ir. Não sabemos, ao certo, se gostamos ou
não. Mas isso ocorre, é claro, porque o conto não poderia caminhar no mesmo
ritmo até o fim. Uma história desse nível, contada dessa maneira, uma imensa
afronta a nossa tendência de fingir para todos, se continuasse na mesma
cadência até a última frase, certamente nos destruiria. Uma história que nos lembra,
a todo momento, que fingimos para nós mesmos, que não aguentamos levar às
últimas consequências as próprias paixões, sejam elas quais forem. Uma história
que, a bem da verdade, acaba por nos denunciar: já não podemos mais, mas bem
queríamos ter um amor como aquele.
E, no entanto, Tchekhov precisava
terminar de algum modo e sabia muito bem o que estava fazendo. O desfecho do
conto é desconcertante. Menos porque não aponta para uma solução para que o
casal fique junto - Gurov fica se perguntando “como?, como?, como?” -, mas
porque nos lembra, invariavelmente, de nossos amores passados, daqueles casos
que não sabemos ao certo o que foi que realmente aconteceu. As histórias de
amor acabam. Na literatura e na vida. E nem sempre acabam bem resolvidas.
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