"Kafka e a Filosofia Crítica do Século XX", por Rodrigo Suzuki Cintra
sábado, 26 de outubro de 2019
sábado, 10 de agosto de 2019
O Reconhecimento Infinito, 1963 (Magritte) Ou Pai e Filho
I
Pois
também existe aquela história do jovem poeta que teve como guia o velho poeta
pelos caminhos do céu – o segredo era interpretar as nuvens mais caprichosas,
as que não se assemelham a objetos ou coisas concretas, buscando formas que
parecessem com sentimentos.
A saudade era fina, mas era longa em
extensão, e eles demoravam muito tempo para conseguir percorrê-la por completo.
Às vezes, uma saudade era tão longa que eles desistiam no meio do caminho e
tomavam outro rumo para continuar a atividade de sentir as nuvens e compreender
suas peculiaridades.
O ódio não era exatamente branco como
as demais nuvens. Existia algo de cinzento nele. Era um tipo de nuvem que se
podia perceber à distância e que causava uma impressão particular. Destacava-se
entre as demais e era responsável pelas tormentas mais violentas.
A
paixão se assemelhava, curiosamente, ao ódio. Também era responsável por fazer
a terra estremecer, mas tinha algo de momentâneo, não se fixava por muito tempo
no horizonte, e se dissipava com a mesma facilidade e violência com que havia
se formado. Era um tipo de nuvem de um quase-vermelho muito leve, apenas
matizado, e lembrava a face de alguém ligeiramente envergonhado, mas que
conseguia evitar que a maioria das pessoas percebesse seu rubor. Era quase que
apenas a sugestão do vermelho.
Já
a dor era reconhecível por ser de um formato menos uniforme, tinha várias
saliências, pontas, recortes: não era sempre da mesma maneira que se
apresentava aos olhos e a mutabilidade de suas bordas era sua característica
predominante. Não era à toa que podia se disfarçar por outro sentimento, sendo,
por vezes, muito difícil de identificá-la: era preciso olhos treinados para não
se deixar enganar e tomar essa nuvem por outra.
Existia
uma forma de nuvem que raramente aparecia no horizonte. Delgada e curta, ela
também era menos cheia que as demais, de uma brancura que apenas manchava
levemente o céu azul. E mesmo os poetas que caminhavam entre as nuvens e tinham
o costume de identificá-las, às vezes, podiam passar por essa forma sem
reconhecê-la propriamente. Deram o nome de remorso para ela e começaram a
perceber que muitas vezes ela se formava após a dissipação de uma nuvem de
paixão ou de ódio.
Mas,
a mais difícil nuvem de se identificar era aquela que continha o amor. Ela
podia ter qualquer formato. Podia se apresentar de qualquer modo e se formava e
se dissipava sem obedecer a muitas regras. E o mais curioso é que, ao contrário
do que pensam os não-poetas, esse tipo de nuvem aparecia com muita frequência.
A
respeito dessa nuvem, os dois poetas discordavam sobre a melhor maneira de
identificá-la.
O
velho poeta argumentava que para distingui-la era preciso sempre deixar o tempo
passar. Ela não se estruturava apenas no espaço, era uma nuvem de temporalidade
mais vagarosa e se relacionava diretamente com o brilho dos astros. Ela
cobriria o sol e sua mais importante característica seria que quando ela
terminava de passar por esse astro, ele brilharia de uma maneira completamente
diferente: tudo parecia se iluminar, a luz inundava todos os lugares e as
coisas podiam ser vistas de um modo mais verdadeiro. O velho poeta acreditava
que a nuvem do amor era aquela que tornava possível uma explosão de
luminosidade após a sua passagem.
O
jovem poeta, no entanto, achava que conseguia identificar a nuvem do amor
através de um outro recurso. Não era exatamente o formato das bordas, a
coloração, o preenchimento, a potência de chuva, nem mesmo o brilho do sol
depois que ela passava. Nenhuma dessas características tomadas exclusivamente
podia apontar para a nuvem do amor. O amor era um pouco de saudade, um pouco de
ódio, um pouco de paixão, um pouco de dor e um pouco de remorso. Era uma nuvem
contraditória em si mesma. Fina e longa era, ao mesmo tempo, curta e disforme.
Cheia e pronta para a tormenta era apenas uma mancha no céu azul. Levemente
colorida era extremamente branca. Era responsável pela luminosidade mais ampla
e pela sombra mais escura.
Como
isso poderia ser possível, o jovem poeta não sabia obviamente explicar. Talvez
a resposta fosse que todos os formatos de nuvens que representam os sentimentos
tivessem, no fundo, uma mesma origem. Ou que tivessem uma mesma finalidade. O
amor poderia estar no começo ou no fim de todos os sentimentos. O que o jovem
poeta tentava defender era que, de qualquer modo, nenhuma das nuvens tinha um
real significado se não tivesse no fundo, mesmo que só de passagem, um pouco do
amor. Todas as nuvens eram feitas da mesma matéria. Era uma certeza estranha. A
de que todos os sentimentos que possam existir nesse mundo eram, na verdade,
apenas breves momentos de uma nuvem de amor infinita.
II
Não
estando propriamente mortos, os dois homens se encontram em meio aos sonhos. O
cenário é com frequência o mesmo: os céus. E o caminhar é sempre para frente.
Vez ou outra, é preciso desviar das nuvens mais carregadas.
A conversa, no fundo, também é sempre a
mesma.
O homem mais velho, o que usa a bengala
para auxiliar no andar, quer convencer o mais novo, o que fala sempre
gesticulando, que seu lugar natural é ali, no azul do céu e na brancura das
nuvens: um infinito plenamente luminoso e verdadeiro.
O homem mais novo, no entanto, conhece
seus próprios abismos. Sabe que estar ali, andando entre nuvens, não é sua
condição natural. Reconhece que está sempre a um passo de cair em uma escuridão
profunda. Talvez quisesse simplesmente acreditar no homem mais velho, porém,
aprendeu a desconfiar prontamente de si mesmo e admite que anda sempre no
limite, sempre em uma quase queda.
E o pior.
Aprendeu, com o passar do tempo, a
gostar do abismo.
III
Como
explicar esse universo de significados: a sensibilidade em pintar a conversa
mais verdadeira, a adequação em localizar nas nuvens esses homens tão iguais e
tão diferentes, a técnica de deslocar os personagens para justamente
centralizá-los, a capacidade de fazer das ocasiões do branco algo de carinho, a
presença dos chapéus como símbolo do encontro e a musicalidade profunda do azul
como manifestação da futura saudade?
Talvez,
seja porque se trata de uma beleza plena que está para além de qualquer
temporalidade, que sobreviverá ao depois do depois – de algum modo, foi
possível pintar aquilo que os homens mais sensíveis nomeiam de uma forma
abstrata, mas que é precisa: sinceridade.
IV
Na
escolha das cores, nos matizes mais suaves, na leveza dos personagens, no senso
de proporção.
O
contraste entre o azul do céu e o branco das nuvens: infinidade.
O cinza da condição humana, levemente
deslocado do centro da tela: brevidade.
Uma imagem que não é uma representação,
apenas sugere algo entre a infinidade e a brevidade: a pintura mais poética de
todo surrealismo.
Cabide, 1920/21 (Man Ray) Ou Medo de Brinquedo
Uma mulher por trás de uma boneca de
cartolina.
À primeira vista, pode-se pensar que se
trata de uma colagem, mas, o exame mais detido evidencia que é uma fotografia.
É importante perceber, nesse caso, que
se trata de uma fotografia. Pois, inadvertidamente, é uma imagem que causa
impacto por suas ambiguidades, por sua improbabilidade extrema enquanto um
instantâneo do real, por uma estruturação do elemento que se pretende
representar radicalmente misteriosa.
Não há como não sentir algo de
perturbador na imagem.
Sua
incompletude, seu modo de mesclar o corpo humano com a cartolina, um modo de representar
o feminino que se dá estranhamente entre o que se vê e o que se esconde, o que
está na frente e o que está atrás, tudo ali provoca incômodo.
Não é exatamente o fato de existir
potencialmente uma mulher por trás da cartolina o que causa essa sensação
particular. Tampouco é a cartolina à frente da mulher que induz a certa
rejeição. É a fusão desconcertante entre o que é vivo com o que não tem vida o
que nos deixa perplexos. Pois, nossos olhos se alternam, demasiadamente e sem
autorização, entre o corpo nu e a boneca de cartolina. E é nos momentos em que
se percebe esses dois elementos em conjunto que ficamos completamente
estarrecidos por estarem escandalosamente em uma pretensa harmonia na
fotografia. Ali, a tensão entre o orgânico e o inorgânico obriga a buscar
significados e estabelecer conexões de sentido de modo a tornar possível
suportar essa composição absolutamente inusitada.
A
sensação geral, ao olhar para obra, é tão particular que, apesar da modelo por
trás deste singular cabide estar nua, deixando à mostra os seios, o sexo e seus
contornos curvilíneos de mulher, não sentimos qualquer espécie de ímpeto
sexual.
Alguma
coisa na fotografia inviabiliza o desejo.
O recorte da cartolina que acaba por
representar os braços, os ombros, a cabeça com olhos, boca e cabelos de uma
boneca pode parecer, inicialmente, uma representação mais infantil, porém, no
entanto, é perturbador demais para ter sido feito por crianças.
A boca desta boneca é demasiada pequena
e, se somar isso à ausência de nariz e aos cabelos desenhados de um modo singelo,
temos um rosto de boneca quase que esquemático. É claro que os olhos completam
a equação da face particular da boneca de cartolina. Muito abertos, dão a
impressão de olhar diretamente para frente e além. É um olhar por demais
profundo, é bom que se diga, e parece, inclusive, trespassar a estrutura da
fotografia e enxergar o próprio sujeito que está a observá-la.
Por
certo, o cabide vertical que sustenta a estrutura de cartolina garante que a
imagem pareça não ter movimento. Além disso, a brancura do corpo e da cartolina
contrasta com o fundo da fotografia que é profundamente negro. Essa escuridão é
um truque de luz e, ao mesmo tempo, é contagiosa. De algum modo, absorve parte
da perna direita da modelo. E ficamos sem saber ao certo se a perna foi apenas
sequestrada pela lógica da escuridão do fundo da imagem, ou se a modelo já não
tinha esse pedaço do corpo desde o princípio.
A
cartolina disposta à frente do rosto e dos ombros da modelo esconde
completamente o semblante da mulher real, funciona como uma máscara, e tem
traços de boneca inerte que contrariam o corpo vivo e em evidência do resto da
composição.
Porém,
sequer é possível dizer, seguramente, para falar a verdade, que a boneca de
cartolina é que encobre a mulher real. Talvez o rosto e os ombros da modelo
também não apareceriam se o caso fosse o de retirar a boneca de cartolina da
sua frente. Tal qual a perna pela metade, nada garante a completude da modelo
acima dos seios. Pode bem ser que se encontrasse escuridão também por trás do
lugar que a boneca ocupa na fotografia.
Esse
é um tipo de pensamento coerente com a lógica interna desta fotografia, não há
dúvida, mas, profundamente improvável para falar a verdade.
Porém,
não são essas possibilidades que causam a sensação mais estranha quando se
trata de observar atentamente a lógica da foto. Existe algo na estruturação dos
elementos internos dessa representação que provoca, inadvertidamente, um pouco
de medo.
Pode
ser que essa sensação se origine em um movimento de nossa imaginação. Se
pudéssemos retirar a boneca feita de cartão da frente da modelo e assim fosse
possível enxergar a mulher por completo, em toda a sua vivacidade, com pernas,
sexo, seios, ombros, pescoço, boca, cabelos, ela seria uma pessoa real, alguém
que efetivamente pertence ao mundo. Ou seja, tiraríamos da fotografia seu
caráter mais inusitado e a reduziríamos a uma mera representação singela de uma
modelo.
E
todo problema, o que nos aflige nos momentos em que deixamos a imaginação
correr solta, consiste no fato de que, mesmo tendo sido retirada a boneca da
frente dela, como a retirar uma máscara, essa mulher por trás da cartolina,
estaria, inevitavelmente, a olhar diretamente para o espectador, ainda com
aqueles olhos inertes de boneca.
E
a dúvida que apareceria, se assim fosse, não seria mais a proposta da foto (o
que há de mulher por trás de uma boneca), mas, inversamente, o que há de boneca
por trás de uma mulher: um pouco de morte.
O Mundo Perfeito, 1962 (Magritte) Ou As Cores do Mistério
I
Um quadro singelamente bicromado: azul e branco, sem dúvida.
Toda a astúcia da tela, que é um jogo de enganar, consiste em posicionar o olhar a partir de uma dessas cores. Sobrepostas, elas dão a impressão de profundidade à lógica de uma estrutura paradoxal. E somos tentados, constantemente, a determinar qual das camadas corresponde à verdadeira imagem de um céu que se desdobra e se reproduz a cada novo lance de olhos que empreendemos para tentar compreender a coisa toda.
Pode ser que realizar um olhar a partir do azul garanta algumas certezas.
A diferença de tonalidade dessa cor nos elementos que compõem a pintura certamente ajuda a identificá-los e, se isso não proporciona a descoberta de alguma verdade radical sobre a tela, pode auxiliar a delimitar os problemas que um intérprete pode encontrar pela frente. Pelo menos os problemas decorrentes do olhar azul, como podemos chamar.
O chão, a parede e a cortina são plenamente identificáveis, possuem tons de azul diferentes, mas um rouba a cena do outro. Pensamos constantemente em que lugar, em qual destes elementos, está o verdadeiro céu. Um céu que pode muito bem ser impossível de se determinar, que é quase que apenas intuído, mas que invariavelmente não cansamos de tentar delimitar.
Bem pode ser, no entanto, que sua função na tela seja outra – impedir profundamente que enxerguemos além. Obstáculos sucessivos a que olhemos diretamente para a imensidão do azul. O curioso, nesse sentido, é que eles são feitos do próprio azul cujo olhar inviabilizam.
É possível, também, uma contemplação que privilegie a cor branca.
Ela opera, nesse caso, de modo muito mais fugidio. Ao contrário do azul, feito de linhas retas, o branco é disforme e, além disso, espalhado pela tela em muitos lugares, mais mancha o azul do que propriamente se afirma como um elemento próprio. As diversas manchas, aliás, podem aparentar unidade em sua disposição aleatória, em seus formatos irredutíveis à geometria, mas, talvez, sejam plenamente singulares em cada uma de suas aparições.
Se o azul é estático, o branco só se propõe nessa tela como movimento. Seus momentos são sempre de leveza. O branco pode estar na pintura de um modo absolutamente perceptível, determinado, de um modo que pensamos poder registrá-lo em nossa mente sem dificuldades. Mas, qualquer distração, qualquer desvio de olhar, tornará impossível enxergá-lo duas vezes do mesmo modo. As ocasiões do branco nos pregam peças e fogem do nosso olhar repetitivo. Cada experiência com essa tonalidade, que é quase que a negação da própria tonalidade, é única e, portanto, exige de nós, não concentração – o que de nada ajuda nesse caso – mas, uma forma de respeito toda particular. O branco pode não preencher o céu em todos os casos, sempre haverá dias sem nuvens, mas certamente é o que dá sentido ao céu que está para além do imenso, que inscreve seu registro para depois da finitude.
II
A maçã é verde, mas na verdade é azul.
Disposta diretamente no chão, ela é um dos elementos azulados da pintura. Trata-se de uma maçã perfeitamente desenhada. Os matizes de seu azul são pintados ao nível do detalhe. Ocupando o primeiro plano da tela, ela projeta, inclusive, uma sombra que, como não poderia deixar de ser, também é azulada. Um azul quase que meramente sugerido, na medida em que as sombras têm por hábito serem negras.
Ali, no espaço do azul que parece ser imenso, um azul que se aprofunda a cada olhar, a maçã se situa em posição estratégica. É a primeira camada da representação do céu. Ela, de certo modo, o integra e o inicia e sua função é puramente enigmática. Entendê-la é como que desvendar um segredo. O segredo dos céus propriamente dito.
Isso é: uma metáfora.
Todo céu é um mistério.
III
A maçã é verde, mas na verdade é branca.
Uma nuvem branca estranhamente estática, avessa a sua própria natureza, com um formato peculiar de maçã, com cinco folhas esbranquiçadas num galhinho, e que contrasta com o azul do céu que quando olhamos muito fixamente parece curiosamente se mover.
Todo branco lembra nuvens. Mas, quando se trata de nuvens propriamente, nunca podemos saber ao certo. Nuvens são sempre outras possibilidades de si mesmas. E os formatos dessas manchas no universo da composição da tela podem lembrar muito bem uma coisa ou outra. O branco é infinito a seu modo, de uma maneira um tanto caprichosa.
Isso é: uma metáfora.
Toda nuvem é uma metáfora.
IV
A imagem é muito bem desenhada: um círculo perfeito. Está disposta no chão azul, o que pode sugerir, num lance de olhos, a sensação de certa imobilidade. Sua inércia, porém, é algo duvidoso dentro da estrutura da pintura – pois sua sombra, mesmo que vagarosamente, provavelmente se movimentará. Mas, isso não é o que incomoda quando pensamos no assunto de maneira mais detida.
O azul está em todo lugar. Só é interrompido por aquelas manchas brancas – as que podem bem ser nuvens, o que quer que isso signifique efetivamente.
Um exercício interessante, no entanto, seria o de colocar o quadro de ponta-cabeça. Nada se alteraria verdadeiramente, se assim o fizéssemos, a não ser o círculo em primeiro plano. O azul e o branco continuariam com a mesma lógica de sempre e pode até acontecer de observadores desavisados nem perceberem a mudança.
A pintura ainda estaria completa a seu modo – tudo se passa apenas no choque entre as cores.
Mas, se assim fosse, a cor do círculo perfeito – azul ou branca – pediria maiores explicações. Seria o caso de pensar se, de fato, se trata de uma lua ou um sol, essas esferas que reinam nas alturas. E é claro que haverá sempre quem insista, sem maior sucesso, que a lua não é azul e o sol não é branco. O que mostra, no fundo, que muitos não conseguem nem determinar, ao certo, qual é a cor de uma simples maçã.
V
Por trás das nuvens do céu há cortinas que nos impedem de ver mais além. E todo o problema consiste no fato de que mesmo essas nuvens, vez ou outra, também são feitas de cortinas.
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sexta-feira, 7 de junho de 2019
Lançamento de Livro de Poesia - Rodrigo Suzuki Cintra
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domingo, 12 de maio de 2019
domingo, 3 de março de 2019
Tradução: Poema de E. A. Poe
Um sonho dentro de um sonho
Poema: E. A. Poe
Poema: E. A. Poe
Tradução: Rodrigo Suzuki
Receba este
beijo em tua fronte!
Partirei rumo
a um novo horizonte,
Mas confesso:
olhos nos olhos defronte –
Não erra quem
proclama que disponho
Os meus dias
como se fossem um sonho;
Se a esperança
não tem mais serventia,
Seja de noite
ou mesmo de dia,
Uma visão real
ou talvez nenhuma,
Será que tudo
não passa de bruma?
Tudo que vejo, sou ou suponho
É apenas um
sonho dentro de um sonho.
Fico parado
como que perdido
Em uma praia
qualquer sem sentido,
E seguro firme
dentro da mão
Um punhado de
areia que peguei do chão –
Poucos grãos!
Ainda assim, me atormento
Pois pelos
dedos fogem, não tenho alento,
Enquanto
lamento – enquanto lamento!
Oh Deus! Será
que não consigo conter
Nem um único
pedrisco sem sofrer?
Oh Deus! Será
que não consigo salvar
Um ao menos da fúria do mar?
Será que tudo que vejo, sou ou suponho
É apenas um
sonho dentro de um sonho?
A dream within a dream
Edgar
Allan Poe
Take this kiss upon the brow!
And, in parting from you now,
Thus much let me avow –
You are not wrong, who deem
That my days have been a
dream;
Yet if hope has flown away
In a night, or in a day,
In a vision, or in none,
Is it therefore the less gone?
All
that we see or seem
Is but a dream within a dream.
I stand amid the roar
Of a surf-tormented shore,
And I hold within my hand
Grains of the golden sand –
How few! yet how they creep
Through my fingers to the
deep,
While I weep – while I weep!
O God! can I not grasp
Them with a tighter clasp?
O God! can I not save
One
from the pitiless wave?
Is all that we see or seem
But a dream within a dream?
quinta-feira, 30 de agosto de 2018
domingo, 4 de fevereiro de 2018
O sujeito e o agir: entre a virtude e o dever / The subject and the act: between virtue and duty
Link para meu artigo na Revista Brasileira de Direito (QUALIS A1):
O sujeito e o agir: entre a virtude e o dever / The subject and the act: between virtue and duty
sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018
Vivendo em um fio de navalha: Kafka, (anti) filósofo do direito
Vivendo em um fio de
navalha: Kafka, (anti) filósofo do direito
Rodrigo
Suzuki Cintra
(A narrativa objeto desse ensaio,
pelo qual o texto inicia, está completa e foi escrita por Franz Kafka. A
tradução, intitulada “Sobre a questão das leis”, é de autoria de Modesto
Carone. Os comentários posteriores aos três parágrafos que seguem são meus e
projetam um esboço de interpretação.)
Nossas leis não são
universalmente conhecidas, são segredo do pequeno grupo de nobres que nos
domina. Estamos convencidos de que essas velhas leis são observadas com
exatidão, mas é extremamente penoso ser governado segundo leis que não se
conhecem. Não penso neste caso nas diferentes possibilidades de interpretá-las
nem nas desvantagens que há quando apenas indivíduos e não o povo inteiro podem
participar da sua interpretação. Talvez essas desvantagens não sejam tão
grandes assim. As leis são de fato muito antigas, séculos trabalharam na sua
exegese, certamente até essa interpretação já se tornou lei, na verdade continuam
a existir as liberdades possíveis no ato de interpretar, mas elas são muito
limitadas. Além do mais é evidente que a nobreza não têm motivo algum, na
interpretação, para se deixar influenciar pelo interesse pessoal em detrimento
do nosso, pois as leis foram desde o início assentadas para os nobres, a
nobreza está fora da lei e precisamente por isso a lei parece ter sido posta
com exclusividade nas mãos da nobreza. Naturalmente existe sabedoria nisso –
quem duvida da sabedoria das velhas leis? –, mas é também um tormento para nós,
provavelmente algo inevitável.
Aliás
essas leis aparentes podem na realidade ser apenas presumidas. É uma tradição
que elas existam e sejam confiadas à nobreza com um segredo, mas não se trata
nem pode tratar-se de mais que uma tradição antiga e, por sua antiguidade,
digna de fé, pois o caráter dessas leis exige também que se mantenha o segredo
da sua existência. Mas se nós do povo acompanhamos com atenção desde os tempos
mais remotos as ações da nobreza, possuímos a respeito delas registros dos
nossos antepassados, demos a esses registros um prosseguimento consciencioso e
acreditamos reconhecer nos inúmeros fatos certas normas que permitem concluir
esta ou aquela determinação histórica, e se procuramos nos orientar um pouco
por essas conclusões filtradas e ordenadas da forma mais cuidadosa em relação
ao presente e ao futuro – então tudo isso é incerto e quem sabe somente um jogo
mental, uma vez que essas leis, que aqui tentamos adivinhar, talvez não existam
de maneira alguma. Há um pequeno partido que realmente pensa assim e busca
provar que, se existe uma lei, ela só pode rezar o seguinte: o que a nobreza
faz é a lei. Esse partido vê apenas atos de arbítrio dos nobres e rejeita a
tradição popular que, na sua opinião, só traz proveitos diminutos e casuais e
na maior parte das vezes, pelo contrário, grave prejuízo, já que ela dá ao povo
uma segurança falsa, enganosa, que leva à leviandade diante dos acontecimentos vindouros.
Esse prejuízo não deve ser negado, mas a esmagadora maioria do nosso povo vê a
causa disso no fato de a tradição ainda não ser nem de longe suficiente,
havendo portanto necessidade de que muito mais nela seja pesquisado; de
qualquer maneira, por mais gigantesco que pareça, seu material ainda é muito
pequeno e séculos terão de passar antes que a tradição acumulada baste. O
sombrio dessa perspectiva para o presente só é iluminado pela crença de que
virá um tempo no qual – de certo modo com um suspiro – a tradição e o seu
estudo chegarão ao ponto final, que tudo terá ficado claro, que a lei
pertencerá ao povo e que a nobreza desaparecerá. Isso não é dito, porventura,
com ódio da nobreza – em absoluto e por ninguém. Odiamos antes a nós mesmos
porque ainda não podemos ser julgados dignos da lei. E na verdade foi por essa
razão que aquele partido – muito sedutor em certo sentido –, que não acredita
em nenhuma lei propriamente, permaneceu tão pequeno: porque também ele
reconhece plenamente a nobreza e o seu direito à existência.
A
rigor só é possível exprimi-lo numa espécie de contradição: um partido que
rejeitasse, junto com a crença nas leis, também a nobreza, teria imediatamente
o povo inteiro ao seu lado, mas um partido como esse não pode nascer porque ninguém
ousa rejeitar a nobreza. É nesse fio da navalha que nós vivemos. Certa vez um
escritor resumiu isso da seguinte maneira: a única lei visível e
indubitavelmente imposta a nós é a nobreza – e será que queremos
espontaneamente nos privar dela?
*
Escrito
inclassificável, “Sobre a questão das leis” opera nos limites fronteiriços entre
dissertação-argumentativa, ensaio filosófico e prosa narrativa, seu ritmo bem
arquitetado se resolve em meros três parágrafos, mas, apesar da economia do
texto, sua potência formal e seu conteúdo desconcertante desconstroem as
estruturas do poder por dentro. O texto se refere à uma comunidade específica (seu
povo, sua nobreza e suas leis); mas é preciso não estar entendendo nada se o
caso é o de não perceber que as reflexões do narrador, apesar de serem
particularíssimas, bem podem servir para interpretar todas as comunidades em
geral.
A
técnica de narrar é certeira e se utiliza de um duplo recurso. Ao mesmo tempo
em que tudo parece ser um mero desabafo casual de um membro do povo, certas
afirmações são por demais rigorosas para serem ditas sem caso pensado. No vai e
vem que estrutura o texto, uma forma dialética de se orquestrar o escrito, o
narrador nunca foge do tema principal, aquele que dá título à narrativa (“Sobre
a questão das leis”), se bem que constata com uma percuciência notável que a questão das leis é derivada de uma outra
questão.
A
reflexão do narrador sobre às leis pode parecer, a princípio, um conjunto de
ideias absolutamente corriqueiras sobre as características das leis de sua
comunidade, mas, com a acuidade de analista, o narrador enxerga na lei a
verdade sobre sua estrutura, função e sentido: a nobreza.
Nesse
caso específico, Kafka não brinca de esconder por trás da lei um significado
oculto ou misterioso, um inacessível do sentido; está tudo lá: o problema da
lei, no fundo, é o problema da nobreza.
Pode-se
dizer, assim, que o narrador é especialmente perspicaz: ele é aquele que sabe. Percebe
que as leis não foram feitas para o povo, percebe que são instrumentos de
dominação de classe, relaciona o conteúdo das leis ao capricho dos nobres,
pondera se as leis não são os próprios nobres em si (uma daquelas identificações
bizarras próprias ao sistema do capital), e, por fim, reflete sobre a ideia de
revolução, uma vez que acabar com a lei é acabar com a própria nobreza.
O
raciocínio que estrutura o percurso pelos parágrafos do texto é especialmente
bem construído e pode bem ser que denuncie a progressiva tomada de consciência do
narrador sobre o fundamental por trás da questão
das leis. A frase inicial (Nossas
leis não são universalmente conhecidas, são segredo do pequeno grupo de nobres
que nos domina), impregnada de luta de classes, enuncia a dominação e, não
é preciso muito, para perceber que as leis cumprem um papel importante para a
estruturação do poder na comunidade específica a que o narrador pertence.
Apesar de não serem conhecidas, as leis funcionam com perfeição para a classe
específica dos nobres. Porém, gradativamente, ao longo dos três parágrafos que
compõem a totalidade da narrativa, por meio do cálculo preciso do narrador, o
problema das leis começa a se mostrar como o problema da nobreza.
O
primeiro parágrafo do texto descreve as dez características das leis da
comunidade do narrador, são elas:
1) Secretas:
não são universalmente conhecidas, são
segredo do pequeno grupo de nobres;
2) Antigas:
essas velhas leis, As leis são de fato muito antigas, séculos trabalharam na sua exegese;
3) Efetivas:
são observadas com exatidão;
4) Interpretáveis:
diferentes possibilidades de
interpretá-las;
5) Tendenciosas:
as leis foram desde o início assentadas
para os nobres;
6) Particularistas:
a nobreza está fora da lei;
7) Parciais:
[a lei] posta com exclusividade nas mãos da nobreza;
8) Sábias:
naturalmente existe sabedoria nisso, Quem
duvida da sabedoria das velhas leis?;
9) Incômodas:
mas é também um tormento para nós;
10) Inevitáveis:
provavelmente algo inevitável;
O
curioso por trás dessas dez características que compõem a descrição do narrador
sobre as leis de sua comunidade é que nenhum desses elementos corresponde ao
discurso liberal tradicional sobre às leis. Certamente que as leis para o liberalismo
devem ser: (1) Públicas; (2) Novas (adaptadas ao progresso contínuo); (3)
Precisas (é necessário saber qual a sua função exata); (4) Interpretáveis (não
apenas pelos indivíduos da nobreza, mas passíveis de serem interpretadas por
todos); (5) Neutras; (6) Universais; (7) Imparciais; (8) Sábias (mas, de uma
sapiência que fuja ao discurso de classe); (9) Adequadas; (10) Evitáveis (o
sujeito deve ter a capacidade de se portar em acordo ou desacordo com a lei,
conforme sua livre escolha).
Logo
no primeiro parágrafo, Kafka já deixa claro que não reproduzirá o conteúdo dos
manuais protocolares de direito que dizem que a lei deve ser pública, neutra,
universal... O leitor, nas primeiras linhas, já entra de cabeça no universo
desigual da legislação daquela comunidade a qual o narrador pertence.
Nas
idas e vindas argumentativas da narrativa, podemos dizer que o narrador faz uma
abstração cada vez maior sobre a questão das leis, mas isso não leva a um
deslocamento etéreo, descolado do real. Ao contrário, com uma consciência de classe
cada vez mais aguçada, o narrador, membro do povo, vai inserindo as leis na
concretude própria das relações de poder que imperam no real. Desde a primeira
frase do texto, a nobreza não se esconde propriamente por trás das leis, isso
não é sequer necessário. A denúncia e a reflexão do narrador não vão passar
exatamente por esse argumento: são mais elaboradas.
Esquematicamente,
na lógica do primeiro parágrafo, tudo se passa como se as leis por serem
exclusividade da nobreza, servissem à dominação de classe. A lei, nesse caso, é
instrumento para a dominação do povo pelos nobres, uma vez que fica claro que a
nobreza é executora da lei. A lei, aqui, ao contrário do que ocorre com o
discurso liberal sobre a legalidade, não se apresenta como ferramenta que
permite acobertar a luta de classes inerente a um mundo em que existe o povo e
a nobreza. A nobreza, nesse caso, não se utiliza de um aparato legal
pretensamente igualitário para operar a dominação. A igualdade não é pressuposta
em nenhum momento do texto.
No
parágrafo seguinte, após algumas reflexões sobre a existência ou não das leis,
que nos enganam um pouco, mas que depois retomam o fio da meada, uma outra
ideia se apresenta. A lei não é um dispositivo que separa as classes sociais, é
o próprio capricho e interesse da nobreza. Não se trata apenas, então, de um
mecanismo de dominação. Como o que a
nobreza faz é a lei, as ações de uma classe social específica se
universalizam como se fossem ações de todos. Fica a impressão de que o capricho
dos nobres se transforma, em termos de dominação, na própria lei. A lei não
apenas separa povo/nobreza; ela, aqui, se mostra o modo como os interesses da
nobreza colonizam a conduta do povo, afinal, a nobreza está de fora da lei,
enquanto o povo deve segui-la à risca. Isso é ideológico: os caprichos são
elevados à altura de lei.
O
terceiro parágrafo arremata a coisa toda: a
única lei visível e indubitavelmente imposta ao povo é a nobreza. Agora,
não é apenas uma lei que serve à dominação de classe (1º parágrafo), os
interesses de classe elevados à potência de lei (2º parágrafo), mas sim que a
classe dos nobres é a própria lei. Em outras palavras, a única lei que impera
naquela comunidade, como em todas as outras por sinal, é a de que a desigualdade
existe e deve ser perpetuada. Dizer que a nobreza é a lei não é apenas dar
autoridade a essa classe social; é dizer que da efetividade de sua dominação
decorre a estrutura legal que torna possível sua dominação. Tudo se passa como
se pelo fato de ela mandar na comunidade toda no campo do real, automaticamente
ela manda também no campo do legal. Uma obviedade, na prática, na medida em que
a verdade da comunidade em questão é a de que existe nobreza e existe povo, ou
seja, a desigualdade é a característica principal da coisa toda.
Mas,
o narrador, membro do povo, leva ao limite sua percepção da problemática das
leis. Se ele enuncia, no primeiro parágrafo, que existem desvantagens quando
apenas indivíduos e não o povo inteiro podem participar na
interpretação das leis, situando a noção de individualidade como atributo
exclusivo da nobreza, e não do povo – uma análise bem acertada –, no segundo
parágrafo, em um lampejo de esperança, diz que haverá um tempo em que a lei pertencerá ao povo e a nobreza
desaparecerá. Isso pode parecer, inicialmente, quase que revolucionário:
leis que imperam para todos e ausência da nobreza. Porém, se levarmos às
últimas consequências a própria lógica que o narrador nos permite traçar quando
lemos essa narrativa inusitada, permeada de uma forma argumentativa que não nos
dá opção que não seja raciocinar dialeticamente, a verdadeira revolução traria,
junto com a desaparição da nobreza, a extinção de toda forma de lei.
A
tomada de consciência do narrador, sua percepção de classe, sua análise
profunda sobre a questão das leis,
não se completa, no entanto, até que ele formule uma outra estratégia. Apesar
de ser um membro qualquer do povo – um sem-nome –, é um verdadeiro analista do
poder, sabe muitas coisas e pondera sobre
a questão das leis de um modo especialmente aguçado. Suas observações são especialmente
afiadas e questionam a ordem de uma cultura inteira.
Quando
enuncia o fio de navalha em que vive o povo, quase nas linhas
finais do texto, a coisa toda ganha um novo peso. A questão se coloca de uma
maneira clara, mas, ele faz questão de sublinhar que o argumento só pode ser
expresso numa espécie de contradição.
Se surgisse um partido que rejeitasse as leis e a nobreza ao mesmo tempo, tal
partido teria todo povo a seu lado. Porém, esse partido não pode nascer porque
ninguém rejeita a nobreza. Tudo nos levaria a crer, portanto, que nada vai
mudar nessa comunidade específica.
A verdade é que somente quando esse fio de navalha for ultrapassado é que,
talvez, o narrador se liberte não só da nobreza e da dominação, mas também, de
toda e qualquer estrutura legal, que é sempre um dispositivo de classe para
organizar a servidão. O caminho da tomada de consciência completa só pode se
dar ao meio da revolução. É lutando contra a nobreza que, efetivamente, o
narrador e sua comunidade poderiam se libertar da ideologia e ter uma
consciência de classe mais plena. Aqui, algo fica evidente. No processo
revolucionário, não se tem duas etapas distintas: 1. Tomada de consciência de
classe; 2. Luta contra a nobreza e dominação. A verdade é que a revolução é
mais simples do que isso. É no próprio processo de luta que se percebe com
maior clareza contra o que se luta.
Talvez
isso apontasse para um momento pré-revolucionário ainda, em que o narrador não
estivesse de todo seguro sobre o que se deve efetivamente fazer.
Mas, o corte da navalha, de repente,
ganha gume.
Pois não é que na última frase do
texto ele introduz um novo elemento? Um escritor que, certa vez¸ teria resumido tudo de uma maneira precisa. A técnica é
estranha, no mínimo, porque estamos acostumados a encontrar escritores a
formular histórias, certas vezes, nos
começos de textos, e não ali, na última frase.
E qual é a formulação do escritor de
certa vez?
Ela começa exatamente com os mesmos
argumentos que ele dialeticamente foi construindo ao longo do texto: a única lei visível e indubitavelmente imposta
a nós é a nobreza. Não há nada de novo até aqui. O tal escritor de certa vez aparentemente não fez mais que
escrever o que nosso narrador já havia escrito. Redobro?
A sentença final, não obstante,
revigora o escrito pois adiciona um dado a mais. Será que queremos espontaneamente nos privar dela [nobreza]? Uma
palavra apenas está fora do lugar. Tem mais peso que as demais porque é escrita
com a vontade: espontaneamente. A
questão das leis, então, que tinha se mostrado ao longo de todo o texto um problema
que se referia à nobreza muda de lado. Espontaneamente
aponta, sem dúvida, para a vontade própria. Agora, a questão das leis é
questão do povo. De um texto que, inicialmente, somente constatava a ligação
lei-nobreza, um texto meio que ultra-reflexivo, passamos a um novo convite.
Pela própria conta e risco do povo,
será que não está na hora de agir?
Talvez esse seja o fio de navalha mais contundente da
reflexão do narrador. O limite entre nobreza e povo é o limite da revolta.
Então, continuar por mais um parágrafo ou mais uma linha não é apenas
desnecessário, é a derrota, pois seria, de certa forma, admitir que nada poderá
mudar.
***
1. O
narrador termina com um corte que não é apenas preciso, é esperançoso até. Sua
última dúvida aponta para um lugar absolutamente relevante para a estruturação
do escrito, pois, o inverte. Agora, pela primeira vez, ele está falando do
povo. Se ele continuar a refletir, nada mudará, é evidente. Então, ele pára!
Mais uma palavra e tudo estaria perdido. Sua ponderação final é o verdadeiro
fio de navalha: uma vez que todo povo sabe
que a verdade da dominação é a nobreza, por que não subtraí-la definitivamente da comunidade em questão?
***
2. Kafka,
mais uma vez, sugere o cálculo imponderável: uma forma do saber que é menos
poder. “Sobre a questão das leis”, o escrito, é afiado no melhor de uma
dialética literária. Existe espaço de sobra para uma utopia que, obviamente,
opera sempre meio que às avessas em seu funcionamento, ou simplesmente tarde
demais. Em Kafka, até o sentido da utopia passa por uma utopia do sem-sentido.
Pode não parecer, porém, há algo de esperança mesmo nisso. E o desfecho dessa
história nos parece desconcertante não tanto porque não a compreendemos, não
sabemos, mas, porque já não podemos. Isso é quase nada, e no entanto, apenas na
frase final, repetição do pressentido, surge o momento do agir – estranho modo
de contar uma história da liberdade. Tudo começa pelo final, e ainda assim, a
tragédia é que lá no começo, do texto e das leis, deveríamos ter negado o
próprio escrito, aproveitando o instante para cortar com navalha afiada a
garganta dos canalhas.
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Esse texto foi apresentado no XXVIII Congresso Mundial de Filosofia do Direito e Filosofia Social (IVR), em Lisboa, julho de 2017 e foi publicado na Revista Sibila - revista de poesia e crítica literária - em 01/02/2018.
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