domingo, 26 de abril de 2015
Citação do Mês - Abr/2015
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Samuel Beckett
sábado, 25 de abril de 2015
Os Pássaros de Kafka - Parte 2
III – Um voo profundo
Um
abutre estava bicando os meus pés. Já havia despedaçado as minhas botas e as
meias, agora atacava os pés. Bicava-os com ferocidade, circundava-me sem
trégua, e continuava o trabalho.
Franz Kafka, O
Abutre
Não
sabemos nada sobre os motivos que levaram o abutre a bicar violentamente o
narrador. A história já começa com os ataques deste pássaro. Pode ser que o
personagem tenha cometido algum crime contra os deuses, tal qual Prometeu,
condenado por ter roubado o fogo de Zeus e tê-lo entregue aos mortais, a ter o
fígado comido eternamente por uma águia. Porém, em se tratando de Kafka, é bem
possível, talvez quase certo, que o narrador não tenha cometido mal algum. O
abutre simplesmente chegou e começou a bicar, conforme relata o personagem. A
história inteira pode ser resumida em poucas frases. Um abutre que bicava
ferozmente os pés do narrador escuta uma conversa entre esse e um cavalheiro. O
cavalheiro, com a intenção de ajudar o torturado, se propõe a pegar uma
espingarda para matar o abutre. Porém, compreendendo perfeitamente toda a
armação para liquidá-lo, em um último ataque fulminante, o abutre arremessa,
qual lança, o bico pela boca do protagonista.
O
que chama a atenção neste breve conto de Kafka é o ritmo da narrativa, uma
capacidade de contar uma história inteira em poucas linhas e estabelecer uma
quebra com a lógica das imagens surpreendente. Ao longo da narração, somos
levados a imaginar concretamente cenas possíveis, porém, o conto termina com
uma abstração, uma verdadeira negação da imagem e provoca a impressão de que
tudo que podemos fazer é compreender, mas não imaginar.
Podemos
visualizar claramente a figura do abutre a dar voltas pelo céu e investir com
seu bico nos pés do personagem principal. Também a conversa entre o narrador e
o cavalheiro, conversa em que esse promete pegar uma espingarda e liquidar com
o pássaro, pode ser perfeitamente idealizada. Porém a história, em dado
momento, impede a possibilidade de representarmos imageticamente o que nos é
narrado. É possível até imaginar o voo preciso em que o abutre mergulha dentro
da boca do narrador: uma imagem violentíssima. No entanto, as últimas palavras
são decisivas para a avaliação do valor deste texto: Caí para trás, aliviado ao sentir que ele se afogava irreparavelmente
no meu sangue que inundava todos os abismos, cobria todas as praias.
De
maneira surpreendente, o abutre que a princípio parecia que liquidaria o
personagem-narrador, até mesmo porque se arremessa após inclinar-se bem para trás a fim de tomar impulso e
mergulhar como uma lança o bico pela
garganta do personagem, nas últimas linhas do conto, morre afogando-se irreparavelmente. Mas, como imaginar de
maneira efetiva um abutre se afogando sem salvação no sangue dentro de um
homem? Um afogamento em que o sangue deste homem inundava todos os abismos, cobria todas as praias.
Kafka,
ao fim de seu conto, na última sentença, inverte a lógica estabelecida durante
toda a narrativa. Não só porque nos nega brilhantemente a possibilidade de
compreendermos e representarmos o desfecho final por meio de imagens, mas
porque inverte a lógica da violência, estabelecendo no sangue, por dentro do
homem, a possibilidade de destruição daquilo que o atacava. Existe aqui uma
verdadeira fusão da corporalidade. O inimigo externo, o abutre, se infiltra por
dentro do homem após penetrar em voo rápido e certeiro pela boca do narrador.
Torturador e torturado identificam-se, ao fim da história, corporalmente, no
limite do próprio sangue, e, talvez somente assim, possam compartilhar do mesmo
implacável destino.
O
personagem-narrador sente-se, de algum modo, aliviado. Ninguém mais lhe bica os
pés. O abutre se afogou irreparavelmente
dentro de seu sangue. A história, então, pode
terminar abruptamente. Mas é claro que, dentro da estrutura narrativa montada
por Kafka, a morte do abutre não significa a vida do narrador.
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sexta-feira, 24 de abril de 2015
Em sala de aula - Breves impressões e notas de um aluno de Tercio Sampaio Ferraz Junior
Rodrigo Suzuki Cintra
“Perguntei a um homem o
que era o Direito. Elle me respondeu que era a garantia do exercício da
possibilidade. Esse homem chamava-se Galli Mathias. Comi-o”
Oswald de Andrade
A epígrafe deste ensaio pode ser
encontrada na Teoria da Norma Jurídica
de Tercio Sampaio Ferraz Junior. Seu conteúdo, um tanto jocoso, já denuncia,
logo de saída, os discursos jurídicos herméticos, o palavrório legal, as
definições jurídicas confusas[1].
O que a antropofagia de Oswald faz é quase uma impostura: quando os tecnocratas
do direito pensam estar falando sério, mas, de fato, apenas produzem um
discurso ininteligível, o melhor a se fazer é fazer graça.
E ao mesmo tempo, esta citação está
em um dos livros mais importantes produzidos por um dos nossos mais
fundamentais juristas.
A
questão, nos parece, está para além do bom-humor. A pergunta inicial de Oswald
na citação em pauta está longe de ser ingênua. Afinal, o que é o direito?
Um professor de Introdução ao Estudo
do Direito tradicional não vacilaria, nem por um instante, em encher,
protocolarmente, os estudantes de definições do que seria o fenômeno jurídico.
Pois, o objetivo deste breve ensaio é mostrar um pouco da atividade de Tercio
Sampaio Ferraz Jr. como professor de direito[2]
e autor de textos de análise jurídica. O que significará, sem sombra de dúvida,
mostrar o que singulariza este pensador e o torna professor inesquecível e
autor incontornável. Para isso, faremos um certo desvio das amarras de um
artigo objetivo e buscaremos em nossa experiência pessoal de contato com o professor
Tercio, como aluno, espectador de sala de aula, e como leitor de sua obra,
alguns elementos que possam, de alguma maneira, caracterizar o efeito
impressionante que sua figura causa a um interlocutor eventual. Falaremos, em
um exercício de rememoração, portanto, inicialmente, da excelência de suas aulas.
Ao contrário de um professor
tradicional, Tercio Sampaio Ferraz Junior, talvez até por sua sólida formação
filosófica[3],
não era dado, nas aulas na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, a
definir antes de questionar. Cada aula sobre um tema específico era uma análise
dos pressupostos e dos limites do jurídico. O professor Tercio, em suas aulas,
encorajava os alunos a refletir zeteticamente – tema, aliás, caro ao professor
– sobre conceitos da dogmática jurídica. O resultado era uma forma de se fazer Introdução
ao Estudo do Direito que era extremamente crítica, ao mesmo tempo em que deixava
claro os institutos jurídicos que o jurista lida no dia-a-dia.
O objetivo era evidente. O professor
Tercio se preocupava não apenas com a formação de profissionais do direito, mas
com a formação de juristas. Figuras que estariam imbuídas de cultura geral e
jurídica e que pensariam o direito para além da interpretação fria e formal dos
textos jurídicos.
As aulas do professor Tercio eram
marcadas por um estilo todo próprio, inconfundível. Tratava-se de apresentar um
tema que, subitamente, devido a uma
série de questionamentos, se transformava em um problema. Este problema era, por assim dizer, contornado na própria
aula e, através de exemplos retirados da prática do direito, mostravam a íntima
ligação entre o direito como teoria e o direito como práxis. Este problema, no
entanto, levava a formação de um outro problema, invariavelmente, de difícil
resolução. Nesse momento da aula, o professor Tercio, mais zetético do que
nunca, apontava para as diversas dificuldades e armadilhas que esse problema
dado suscitava. Terminava sua aula, na imensa maioria das vezes, com a frase:
“Mas, isso nós vamos ver na próxima aula...”
Deliciosa suspensão esta do próximo
capítulo de seu curso em que um novo tema seria introduzido e posteriormente
questionado e assim por diante. Com uma precisão de cronômetro, as aulas do
professor terminavam pontualmente no momento devido e sempre com uma
expectativa a ser satisfeita no próximo encontro.
O
que os alunos tinham o privilégio de presenciar não era apenas a lógica de um
pensamento que se constrói em frente aos nossos olhos em forma de puro
argumento, mas era também, o constante exercício de uma retórica absolutamente
envolvente que levava o interlocutor, espectador de sala de aula, a se seduzir
pelo discurso de um filósofo do direito que é um verdadeiro professor. Forma e
conteúdo, nas aulas do professor Tercio, começavam a se delinear como elementos
do mesmo, como momentos indissociáveis da atividade de se pensar.
Assim, como não identificar, nas
aulas do professor Tercio, as finalidades tradicionais da retórica?
As funções da retórica são,
tradicionalmente, as seguintes: 1. Docere;
2. Movere; 3. Delectare. Docere é o ato
de ensinar, de transmitir conhecimento, informar o interlocutor. Movere é a atividade de mover
(co-mover), movimentar o espírito de quem ouve. E, por fim, Delectare é encantar, seduzir pela
beleza do discurso. Todos, atributos facilmente percebidos nas aulas do professor
Tercio que, pode se dizer, é mestre na arte da oratória. Ou seja, com o
professor Tercio, os alunos não apenas aprendem, mas também têm a tendência a
se encantar pela arte do bem-falar, pela beleza do argumento bem colocado. O
que no caso do professor significa, ao mesmo tempo, invariavelmente, um rigor
conceitual assombroso.
Nietzsche costumava afirmar que a retórica era republicana. Ela só poderia
ter lugar e, de fato, só teve lugar historicamente, entre sujeitos de uma
cidadania. Para esse filósofo, ser cidadão é poder persuadir e ser persuadido. As
aulas do professor Tercio, nesse sentido, eram verdadeiros convites à
cidadania. Não apenas porque materialmente nos ensinavam os institutos e
categorias do direito, mas porque em sua forma, permitiam a inter-relação
professor/aluno de uma maneira em que as perguntas dos alunos eram muitas vezes
reincorporadas ao argumento principal do professor. Em outras palavras, era
comum o professor Tercio recuperar na pergunta do aluno algum elemento que pudesse
dar o gancho para um novo tema de discussão. Se é verdade que nenhuma pergunta
passava sem o crivo da crítica, o professor, por outro lado, pacientemente,
sempre sabia aproveitar as indagações dos alunos de modo a dar seguimento a uma
nova forma de aproximação do problema jurídico em questão.
Aliando a análise do direito à
formação filosófica, as aulas do professor Tercio conseguiam conciliar a
teorização da filosofia com a prática do direito. Nesse sentido, não é possível
se enganar. O professor Tercio não é mero leitor de sistemas filosóficos, nem
advogado inconsciente dos meandros das doutrinas que ele mesmo sustenta. O
professor Tercio é um autor. Autor no sentido mais profundo do termo, que é o
daquele que inova e constrói uma obra.
Não vamos dizer que seus livros
sejam acessíveis ao público em geral, se bem que não são, em hipótese alguma,
obscuros. Trata-se, em todo caso, de uma escrita que se permite ser
extremamente clara. Às vezes, de uma clareza tal que até mesmo ofusca os
leitores acostumados com o vocabulário jurídico abstruso. Isso porque a escrita
acompanha o que a aula do professor tem de melhor: o rigor.
O livro de Introdução ao Estudo do
Direito do professor Tercio, assim, é completamente diferente dos livros que
podem ser encontrados sobre o assunto. Ali, o que está em jogo não é apenas uma
exposição ordenada dos institutos jurídicos básicos. O que temos em mãos, e o
que ouvimos na sala de aula, é a construção de toda uma teoria sobre o direito.
Uma teoria que não esconde seu diálogo com autores das mais variadas tradições,
e que importa em uma concepção particular do fenômeno jurídico.
Nas aulas, podiamos assistir o
professor passear de maneira erudita e tranquila por autores como Kelsen,
Viehweg, Hannah Arendt, Luhmann, Habermas, Jhering, Hart, Ross, Bobbio, Hobbes
e mais uma série de outros autores[4].
E o que é melhor nisso tudo: discutia cada autor com profundidade de
especialista sem se esquecer de traçar ideias por sua própria conta e
risco.
***
Não são poucos os alunos que sofriam
de uma estranha recapitulação intelectual: mesmo depois de formados, ou nos últimos
anos da faculdade, resolviam voltar a assistir as primeiras aulas que tiveram
na Faculdade de Direito com o professor Tercio.
Pedindo permissão para frequentar as
aulas – pedido que sempre era autorizado, por sinal –, os ex-alunos voltavam em
peso para frequentar as aulas daquele professor que, de alguma forma, os
marcou. Na maioria das vezes, admitiam que seu interesse consistia em uma
constatação simples: sempre se aprende com o professor, não importa quanto já
se pretenda saber sobre o direito.
[1] Tudo que o pensamento de Tercio
Sampaio Ferraz Junior não é.
[2] Tercio Sampaio Ferraz Junior foi
professor titular da Faculdade de Direito da USP, instituição em que lecionava
a disciplina Introdução ao Estudo do Direito.
[3] Vale aqui lembrar que o professor
Tercio Sampaio Ferraz Junior, além de ser doutor formado em Direito pela
Faculdade de Direito do Largo de São Francisco - USP, também é formado em
Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tendo
se doutorado em Filosofia pela Johannes Gutemberg Universitat de Mainz.
[4] Anos depois de nossas primeiras
aulas com o professor Tercio, no primeiro ano da graduação em direito, pudemos
constatar, durante nossos estudos de pós-graduação, que o universo de
referências do professor era ainda muito mais extenso do que poderíamos
supor...
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Ordem e desordem na crítica brasileira: sobre um ensaio de Antonio Candido
Rodrigo Suzuki Cintra
“No âmbito do marxismo, a
ligação entre literatura e sociedade não é uma audácia, é uma obrigação.”
Roberto Schwarz
Quando Antonio Candido escreveu seu ensaio sobre as Memórias de um
sargento de milícias acabou fazendo mais que reavaliar a tradição crítica
sobre este romance. De fato, como constata Roberto Schwarz, o crítico realizou
a proeza de escrever em 1970 nosso primeiro estudo propriamente dialético.
Tratava-se, na ocasião, de um ensaio literário que, por sondar a
experiência social brasileira, ativava o programa materialista.
Em sua Dialética da malandragem, nosso Autor escrevia de forma
clara e precisa, sem alardear vocabulário carregado de terminologias, e
explicava, com a paciência de professor, os motivos pelos quais as Memórias
de um sargento de milícias devem ser compreendidas como uma obra singular
em nossa tradição literária.
Fugindo da caracterização europeia logo de saída, ao sustentar que o
romance de Manoel Antônio de Almeida não era picaresco nem documentário, nosso
Autor estava de maneira indireta assumindo a posição de que a literatura
brasileira não é mera repetição de formas estrangeiras, mas sim algo novo.
É nesse sentido que o herói de Memórias
não deve ser entendido como uma figura pícara, como na experiência
literária espanhola: ele é malandro. A determinação de suas
características faz mais que mostrar especificamente quem é Leonardo Filho, mas
o insere em uma tradição. Uma tradição brasileira que segue desde a Colônia,
manifestada pela figura de Pedro Malasartes, e percorre a história literária
brasileira até o modernismo no século XX, com Macunaíma e Serafim
Ponte-Grande - a malandragem. O
malandro é o aventureiro astucioso, gosta do “jogo em si”, está sempre no
limite entre o lícito e o ilícito e será a figura chave para a compreensão do
ensaio de Antonio Candido. Isso porque o malandro é figura que existe
efetivamente tanto no campo da ficção quanto no da realidade.
As Memórias, como aponta
Antonio Candido, são únicas no panorama de nossa ficção oitocentista porque não
expressam a visão de nossa classe dominante. O autor das Memórias
suprime os escravos e as classes dirigentes, sobrando-lhe um setor intermediário
e anômico da sociedade, cujas características, entretanto, serão decisivas para
a medida das relações ideológicas entre as classes sociais.
Tratava-se de caracterizar os homens
livres e sua lei. Estes homens viviam num espaço social intermediário e
anômico, em que não integravam a ordem, mas também não podiam dela prescindir.
Talvez o maior achado de Antonio
Candido tenha sido o de perceber que as Memórias operam através da
lógica da dialética entre ordem e desordem. Ordem e desordem seriam a própria
forma do romance, a “lei de sua intriga”, seriam o princípio que organizaria a
realidade e a ficção.
A figura do malandro é a mais
adequada a este tipo de organização de mundo em que forças da ordem, como a
polícia, por exemplo, concorrem com as forças da desordem. Ele é o tipo que
transita entre os dois mundos. Está sempre atuando no limiar, no cinzento,
entre o que se pode e o que não se deve fazer. A alternativa lícito/ilícito é
perfeitamente relativizada pelo malandro. O malandro encarna a esperteza
popular, sabedoria genérica da sobrevivência em um mundo repleto de obstáculos
e iniquidades.
Antonio
Candido consegue, inclusive, sintetizar a questão da dialética da ordem e da
desordem em uma imagem que capta do livro: o chefe-de-polícia, major Vidigal,
vestido com a casaca do uniforme, mas com as calças domésticas e exibindo, sem
querer, seus tamancos. A imagem, boa demais para ser descartada, mas que
somente a leitura do crítico faz perceber, aponta para os dois “hemisférios”
nos quais orbitam a vida dos personagens e as relações sociais descritas no
romance. Nem mesmo o pólo mais evidente da ordem, o da polícia de Vidigal,
passa livre da desordem que caracteriza a vida dos personagens que o próprio
Vidigal persegue.
Tudo se passa como se os personagens
descrevessem uma verdadeira dança entre lícito e ilícito, sem que possamos
dizer, satisfatoriamente, o que é um e o que é outro.
Tomemos o roteiro das relações
amorosas que pululam aos montes no romance. São “vinte mancebias a cada
casamento e mil uniões fortuitas a cada mancebia”. Em outras palavras, os
homens e mulheres livres e pobres se arranjavam da maneira que a vida parecia
mandar, em uma oposição clara entre os casamentos devidamente realizados de
acordo com a ordem moral, e as relações de convivência efetivas, mas não
oficiais.
Fazendo uma crítica materialista
toda a seu jeito, Antonio Candido, esbanjando originalidade, impregna de
dialética seu ensaio porque vislumbra a dialética na composição do próprio
romance de Manoel Antônio. De caso pensado ou não, o fato é que as Memórias
serviriam de registro da sociedade oitocentista – afinal, “Era no tempo do
rei”...
O valor do ensaio de Antonio Candido
não está na mera ligação entre sociedade e literatura. Está muito mais no fato
de nosso Autor buscar a sociedade através da forma literária e não o contrário.
O elemento estético está em primeiro lugar.
Em outras palavras, antes de intuída e objetivada pelo romancista, a
forma que o crítico estudou foi produzida pelo processo social, porém apesar da
obra relatar seu próprio tempo e sociedade, a dinâmica das Memórias tem
um valor estético todo próprio.
Como explica Roberto Schwarz:
“Assim, o ensaio retoma o esforço de interpretação da experiência brasileira,
que havia sumido da crítica exigente, e talvez se possa dizer que inaugura a
sondagem do mundo contemporâneo através de nossa literatura.”
Redução da forma social a uma forma
estética, a verdade é que nosso Autor, como aponta Paulo Arantes, percebeu que
na circulação dos personagens das Memórias pelas esferas sociais da
ordem (Brasil burguês) e da desordem (pólo negativo do Brasil burguês),
estrutura central do romance, existia a fórmula que estilizava um ritmo geral
da sociedade brasileira na primeira metade do século XIX.
A Dialética da Malandragem, balanceio caprichoso entre ordem e
desordem, define não apenas a estrutura da obra que se critica, mas explica a
fisionomia do país que a produziu.
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