segunda-feira, 6 de novembro de 2017

Tradução - Poema de W. B. Yeats

When you are old
W. B. Yeats

When you are old and grey and full of sleep,
And nodding by the fire, take down this book,
And slowly read, and dream of the soft look
Your eyes had once, and of their shadows deep;

How many loved your moments of glad grace,
And loved your beauty with love false or true,
But one man loved the pilgrim soul in you,
And loved the sorrows of your changing face;

And bending down beside the glowing bars,
Murmur, a little sadly, how Love fled
And paced upon the mountains overhead
And hid his face amid a crowd of stars.



Quando velha
Tradução: Rodrigo Suzuki Cintra

Quando velha e grisalha e cheia de sono,
E cochilando ao fogo, resolver esse livro pegar,
Lendo-o lentamente, sonhando com o doce olhar
Que costumavas ter, com suas sombras de abandono;

Quantos amaram teus momentos de imensa graça,
E amaram, de verdade ou não, tua beleza,
Mas apenas um homem amou tua tristeza,
E amou os sofrimentos de tua face em mudança;

E ao dobrar-te sobre as brasas para vê-las,
Murmurar, quase infeliz, como voou o amor radiante,
Passou por cima das montanhas logo adiante,
E escondeu sua face ao meio de um milhão de estrelas.


domingo, 30 de julho de 2017

Roda de Bicicleta, 1913 (Duchamp) Ou À Sombra da Arte de Obra





I

              A arte é tudo que for o caso.
         Esta roda de bicicleta disposta sobre um banquinho branco é perfeitamente inútil. Este banquinho branco sob uma roda de bicicleta é perfeitamente inútil.
      Talvez tivessem utilidade prática como objetos de indústria se estivessem separados, mas daí não fariam uma sombra, dependendo do ângulo da luz, absolutamente improvável.
         Se os bancos servem para se sentar e as rodas de bicicleta para se mover, existe algo nesta construção que não leva a nenhuma dessas possibilidades. Esta montagem é contraditória: há algo nela de potência de movimento, mas está profundamente inerte.
         Não é bem uma escultura o que se propõe, apesar de situar-se no espaço. É um evento singular. Um evento do novo. Na física, os eventos são quadridimensionais. Somam à altura, à profundidade e à largura, o tempo. Os eventos situam hora e local. Esta Roda de Bicicleta é um evento malcriado. Situa-se no espaço, mas nega a inércia e também o movimento. Seu tempo é sempre o do instante. Mas, bem pode ter sido ontem e, sem dúvida, persistirá para amanhã e depois.
         Sem ser escultura, a montagem, que não tem assinatura aparente, causa impacto por ser, em sua materialidade dos usos cotidianos, apenas uma justaposição vertical. Trata-se de um deslocamento, este de ser outra forma de arte, que devolve a ela a sua dimensão mais importante: um certo ar de escândalo. Sua força artística está em uma rejeição: se nega a ser objeto de consumo ou de indústria, apesar de ser composta por elementos de consumo e indústria.
         É só uma ideia.
         A luz do ambiente, com o passar do dia, provoca transformações na sombra desta peça. É curioso olhar para arte por meio de sua sombra. Há algo de original nisso também. A luz, dependendo do horário, incide sobre a montagem com ângulos e intensidades diferentes. O que provoca as mais variadas formas de distorção em sua sombra. E pode se ter a nítida impressão que a obra tem vida; pois sua sombra se movimenta, aumenta de tamanho, diminui, fica mais evidente ou se apresenta quase como uma mera sugestão de sombra.
         Olhar para essa justaposição inaugural de um novo modo de fazer arte, por meio de sua sombra, é como que investigar os rastros que formalizaram a estrutura como ela é. Escura, mutável, irresponsavelmente avessa à ideia de representação dos elementos da composição, a sombra, misteriosa, sempre nos prega peças se o caso é tentar entender a obra a partir dela.
         A sombra é estar ali e aqui.   
         A sombra é um antes e um depois.
         Um banquinho e uma roda de bicicleta são o que são e ainda assim.

II
Uma roda de bicicleta preta é uma roda de bicicleta preta.
Um banquinho branco é um banquinho branco.
Uma roda de bicicleta preta em cima de um banquinho branco não é uma roda de bicicleta preta em cima de um banquinho branco.

III

         Não podemos sentar nesta roda de bicicleta ou pedalar de banquinho. Juntos, estes dois elementos são, em verdade, um novo elemento.
         Quem sabe alguém que passe andando por esta estrutura se negue a perder tempo para entendê-la. Quem sabe a peça não desestabilize mais as formas prontas dos críticos mais respeitados. Talvez as crianças desejem brincar com a coisa toda e os adultos, secretamente, pensem serem capazes de criar coisas do gênero. 
         Dizem que é perfeitamente possível repetir esta montagem infinitamente. Um diâmetro de roda de aproximadamente 64 cm. Um banquinho de aproximadamente 60 cm. E basta colocá-los na posição indicada. O seu truque escapa à lógica da arte tradicional que evita a imitação. Pois, trata-se, em todo caso, sobretudo, de um conceito.         
         É claro que ocorre de imitadores fazerem justaposições variadas de outros objetos de indústria, às vezes, até mesmo elaboradas, porém, dificilmente conseguem o mesmo efeito.
     Escritores excêntricos tentam, sem sucesso, descrevê-la da melhor maneira possível. Há sempre uma perda. Obviamente, como não poderia ser de outro modo, algo escapa às palavras e tudo que se pode fazer é contemplá-la.  
Mas, um pensamento radical é deixar a Roda de Bicicleta como está. Perdida em um dos salões de galeria. Apenas mais uma peça entre peças. Deixá-la, ali, esquecida em sua improbabilidade.
Deixar que a luz do ambiente modele sua sombra. Aguardar que a luz solar projete no chão e na parede uma imagem como em um relógio de sol.
E, inevitavelmente, perceberíamos em sua sombra o movimento lento do objeto estático. Criando caso, certamente, pois, em verdade, sua sombra é, sempre, um momento do agora.

IV

A sombra da roda de bicicleta preta não é a roda de bicicleta preta.
A sombra do banquinho branco não é o banquinho branco.
A sombra de uma roda de bicicleta preta em cima de um banquinho branco é uma roda de bicicleta preta em cima de um banquinho branco.

V

Já pensei, algumas vezes, em tentar derrubar a famosa justaposição. Duvido que a roda de bicicleta esteja solta sobre o banquinho. Civilizado, quando a vi pela primeira vez, tentei soprar o mais forte que conseguia, um sopro de plenos pulmões, para ver se a estrutura se movia de algum modo.
Mas, a roda simplesmente não se movimentava.
Depois, acabei por perceber que, mesmo que conseguisse destruir a lógica da estrutura, sua sombra provavelmente não se alteraria. Ficaria ali, enigmaticamente, colada ao chão.
Trata-se de uma obra que não proporciona qualquer concessão. O sucesso na destruição em nada modificaria a sua força e o seu alcance. Sua sombra já estava impressa na minha mente e na história da arte.
Curiosa maneira de perceber que a arte é uma forma absoluta de dizer “não”.
         

sábado, 1 de julho de 2017

Citação do mês - Jul/2017

"É preciso ter uma ideia do que se irá fazer. Mas deve ser uma vaga ideia"

Picasso

réquiem para um poeta vivo


Decidi escrever sobre o filme “Ferroada” (2016) de Adriana Barbosa e Bruno Mello Castanho. Não pensei em escrever sobre o filme após ter assistido. Era enquanto assistia, no meio da platéia do cinema, que minha imaginação se movimentava. O filme é sobre um poeta, um coveiro: um homem. Comecei por tentar escrever uma crítica formal, bem cortada, elogiosa. Desisti. Resolvi escrever uma crítica ao filme via poesia. Achei que era uma forma de respeito, de certa maneira, ao próprio personagem principal. Também, é claro, aos cortes da montagem dos diretores. Pode acontecer, às vezes, de uma forma de arte impulsionar outra. Se o filme sobre o Tico saiu de sua literatura indo parar nas telas, agora, devolvo imagens em letras. Mas, faço isso a meu modo: com cortes que emendam as imagens… no mundo da vida.  
réquiem para um poeta vivo

para Tico


embora palavras

não passem

de nuvens

ainda que

formatos indeterminados

do imaginário

discordem tolos

teimando contornos

meramente sugestivos

fugidios da

primeira arquitetura

*

dos símbolos


também agulhas

 podem ser

 pois picam

alfinetam juízo

coçam por

dentro a

tragédia infinita

anunciado assassinato

no texto

difícil do

golpe arriscado

*

da escrita


talvez lápides

obras invisíveis

mas sempre

vermelhas como

virgulas suicidas

do mergulho

do ferrão

certa loucura

mistura nariz

de palhaço

no veneno

*

de escorpião


pudera conceitos

dessem conta

enquanto letras

que enterram

a música

interna do

sentimento quando

silêncio um

grito pressentido

acorde final

ferroada poética

*

de marimbondo


naqueles signos

construções narrativas

onde veículos

fatais se

movem sempre

ou nunca

via contramão

o caso

daquele homem

argumento de

si mesmo

*

do não


nas imagens

sempre algo

de morte

estrutura a

nebulosa arte

do sonho

ressignifica mundo

num blefe

o último

da forma

dialética

*

de vagabundo




Esse poema foi publicado na Revista Zagaia, em junho de 2017.

terça-feira, 20 de junho de 2017

A urbe poética de Régis Bonvicino – notas sobre "Beyond the wall"


é um artista se entregando para a polícia
“Arte” de Régis Bonvicino

Quem se dispõe a percorrer a nova coletânea de poemas de Régis Bonvicino, Beyond the wall (Além do muro) recém publicada pela editora Green Integer nos EUA, deve estar preparado para enfrentar uma complexa trama em que o estatuto da arte, a vida na cidade e a política em ponto de bala se entrelaçam de uma maneira absolutamente inextricável, de modo que é praticamente impossível uma dissociação dos elementos dessa poética – existe algo de irredutível na obra que impede os esquemas mais tradicionais de interpretação de livros de poesias. Não é o caso, então, de tentar localizar quais são os poemas de uma ordem metalinguística mais evidente ou os que apresentam imagens da cidade ou mesmo os que discutem relações de poder. As poesias de Beyond the wall operam nas bordas, nos limites em que um tema já se transforma em outro, mas ainda não deixa de ser o que era.

Existe uma verdadeira topografia poética, um modo pelo qual os poemas foram estrategicamente colocados em sua sequência, que causa a perfeita percepção de que o livro tem um espaço próprio de acontecimento: a cidade.

O terreno em que as poesias são colocadas é o espaço urbano. Só que a cidade de Régis Bonvicino não é composta de prédios, janelas, casas e lojas. O lugar de que fala e de onde fala o poeta é feito de mendigos, ratos, garrafas, urina e cigarros. Não é uma cidade específica, tampouco. Pode ser Le monde, Bank of China, Chascona, Passeig de Gràcia, New York ou Bom Retiro. De qualquer modo: é uma poética urbana.  

Se as metrópoles são o espaço da desigualdade evidente, Régis constrói suas imagens-sons de uma maneira particular. Uma técnica de construção de linguagem por contradição, talvez mesmo, por atrito. Não há nada de um lirismo coerente, de uma poesia sem arestas. De vez em quando, falta uma rima, outras vezes, um paralelismo é subtraído, uma ideia não se completa, uma imagem é sequestrada. De caso pensado, Régis Bonvicino faz poesia com ângulos, dobras, conflitos, inversões e paradoxos.

O poeta escreve com cálculo: está tudo resolvido no espaço da página. Porém, algo sempre sobra e parece escapar da prisão do texto e golpear os sentidos do leitor. A “urina” realmente fede, o “mendigo” implacavelmente incomoda e, quase imperceptivelmente olhamos para os cantos da sala a procura dos “ratos”. Um modo de fazer poesia que contamina as palavras e é contaminado por elas. O cálculo poético parece nos surpreender vez ou outra e somos pegos a levantar a cabeça, deixar o texto, e parar para pensar o que está acontecendo. Nessas vezes, invariavelmente, quando voltamos ao texto, relemos alguma passagem anterior, folheamos o livro e retornamos a alguma poesia que, de repente, merece melhor apreciação. Não se trata de um livro de poemas para ler do começo ao fim sem interrupções.

Essas interrupções são verdadeiros engasgos, nos pegam de surpresa e provocam uma sensação estranha – às vezes colocamos até um sorriso na boca, tudo aparenta correr bem na leitura, mas, logo adiante, percebemos a verdade que essa poética provoca: o sorriso se transforma em riso nervoso. Trata-se de um tipo de poesia que é necessária, poesia-incomodo, bem diferente dos esquemas fáceis das poesias da moda. Pode-se dizer, inclusive, que nos seus ângulos, sinuosidades e esquivas é um livro que respeita plenamente o leitor. Mas, que assim o faz somente na exata medida em que exige mais da leitura.

Analisemos duas poesias da coletânea: a primeira e a última – para fazer uma moldura do que pode ser encontrado entre esses dois muros.

Com o título de “Arte”, a poesia de abertura não poderia ser mais irônica. Como falar da arte nos tempos atuais em que a barbárie cultural impera de maneira triunfante? Como fazer arte em tempos de mass media? A provocação que o título da poesia de abertura do livro faz é absolutamente pertinente. Mas, o poeta escreve ao longo da poesia, em uma sucessão de imagens, exatamente aquilo que não se poderia esperar da arte. Como se ela tivesse perdido o sentido nos tempos atuais. É assim que constrói os versos: [arte] “é o mendigo que, mão aberta,/não pede esmola”. A contradição é evidente e perturba não apenas a leitura que procura coerências, mas a própria estrutura da linguagem que se propõe. A certo momento desse primeiro poema chega até mesmo a propor: [arte] “é um relógio sobre uma lápide”. Nada mais contundente do que declarar a morte da arte e, apesar disso, via imagem certeira, reafirmar a arte, mesmo que às avessas.

Na última poesia da coletânea, “Abstract (2)”, podemos ler um verso que quase inviabiliza o título do livro: “Visitors: no trespassing”. Assim colocada a impossibilidade de ultrapassar os muros, a norma é clara e estabelece um dentro e um fora, fica o conflito com o título da coisa toda: Beyond the wall (Além do muro). E não é à toa que o último verso, meio político, esquema de fim de obra, (“Em Manhattan, só o rato é democrático”), esbanja o urbano e é cortado de modo preciso.

Alguns leitores bem poderiam pensar que o caráter urbano do verso esteja na palavra “Manhattan”. Que a política esteja no termo “democrático”. Nada mais longe da poética de Régis. É o “rato”. O “rato” é que nos remete à metrópole e à política. Esse rato que aparece diversas vezes entre os dois muros da moldura que estabelecemos para o livro. O rato que perambula pelos mendigos, por sobre cigarros amassados, que cheira o odor da urina e que consegue, por astúcia da espécie, ultrapassar os muros de concreto que cerceiam a liberdade própria do fazer poético.  

   

Obs: Esse artigo foi publicado na Revista Sibila - Revista de Poesia e Crítica Literária.        

segunda-feira, 29 de maio de 2017

Golconda, 1953 (Magritte) ou Chuva de Mim Mesmo




I

         Um dia desses, essa quase interminável chuva de mim mesmo, essa intempérie inesperada promete acabar e poderei verdadeiramente flutuar de forma livre ainda que fragmentado em gotas de mim – serei composto de partículas bojudas que não cairão mais das alturas, mas ficarão suspensas como balões estáticos. Inertes. Simplesmente pairando em pleno ar.
         Nessa ocasião, me tornarei mais próximo daquela promessa que fiz a mim mesmo – o homem que eu queria ser antes da chuva começar. Não poderei voar, essa é uma das minhas mais tristes certezas, mas, pode ser que seja um pouco mais feliz. Pelo menos não precisarei me preocupar em derramar mais tanto de mim.

II

         Somadas as características essenciais, todas as variações, são poucas as diferenças entre as possibilidades.
         Em 71 casos, pode-se ser original. Em 50, a divisibilidade é por 2, 5, 10, 25 e 50 (ser divisível por 2 é um dos principais defeitos da imagem).
         Segundo o cálculo de alguns, é possível que se caia dos céus 121 vezes. Mas, ascender às alturas somente se dá em 23 casos.
         De qualquer modo, o sobretudo e o chapéu sempre ajudam: é evidente que, mais uma vez, se esquece o guarda-chuva em casa.

III

         Pode bem ser que a tela capture um momento, apenas um instante, de um movimento constante. Do céu para o chão, pingam homens vestidos de sobretudo e chapéu escuros; ou, do chão para o céu, ascendem homens a desafiar a gravidade.
         Se assim for, de qualquer modo, nada nos indica a velocidade do movimento, e fazer o quadro ganhar vida em nossa imaginação não garante, necessariamente, uma compreensão maior sobre sua estrutura.
         Ao olhar a imagem de longe, os inúmeros homens que compõem a tela parecem ser apenas borrões. Gotas negras a manchar o céu e os pequenos prédios de apartamentos: ocasiões do negro em um céu azul sem nuvens, em um telhado avermelhado sem telhas e em paredes de prédios cinza-claros sem portas visíveis.
         O escuro se repete, inclusive, como mancha do próprio borrão, pois, se observarmos atentamente, os homens vestidos de negro provocam sombras nos prédios que denunciam a presença do sol.
         De fato, é curioso que ninguém se atreva a abrir as janelas e que mesmo as cortinas fiquem quase completamente cerradas. Não há, aparentemente, um lado de dentro dos prédios que possa ser verificável. A lógica da imagem é completamente externa aos prédios, com os enigmáticos homens a borrar os outros elementos.
         Meramente suspensos, caindo dos céus, ou ascendendo às alturas, os homens parecem ser repetições de um mesmo personagem. Multiplicado infinitamente – tudo nos leva a crer que é impossível contar quantas variações do mesmo homem aparecem no quadro – o personagem parece não passar por nenhuma transformação em nenhuma de suas aparições, se bem que, dependendo da ocasião, apareça sob ângulos diferentes.
         Apesar de não ter, aparentemente, nada em comum com a maioria dos observadores da imagem, ele provoca identificação. Há algo nele que nos remete a nós mesmos. Não é o chapéu, nem mesmo o sobretudo, o que leva a essa sensação. É a repetição infinita que nos induz a essa tendência. Apesar de ser uma afirmação arriscada, que quase não se propõe, há algo de espelho nessa infinidade de figuras absolutamente idênticas. Mas, isso não quer dizer que esse personagem provoque os mesmos significados para cada um dos observadores da imagem.
         Os homens mais imaginativos pensam que esse homem está suspenso no ar, flutuando como uma bolha de sabão, e que bem que gostariam de experimentar essa sensação de leveza absoluta.
         Os religiosos imaginam que estão subindo da terra aos céus. Veem nessa possibilidade alguma espécie de revelação mística e ficam contentes com a imagem toda, convencidos de que encontrarão a salvação.
         Os homens que têm demônios internos mais frequentes somente conseguem imaginar a si mesmo caindo das alturas e se sentem incomodados com a ideia de que se espatifarão completamente pelos chãos.
         E existe também aqueles observadores que ao olhar para a imagem não conseguem enxergar outra coisa a não ser a possibilidade de voar. São os homens de imaginação mais solta, que encontram na arte sempre alguma possibilidade de libertação.

         No que me diz respeito, só uma coisa me incomoda de verdade. Nessa infinita multiplicação de mim mesmo, em todos os casos, eu continuo sendo eu mesmo. 

domingo, 30 de abril de 2017

Canção de Amor, 1914 (de Chirico) ou Gesto com Luva Vermelha (variação nº 2)




      Talvez se o busto de Apolo estivesse completo, com ombros e tudo, a luva cirúrgica não precisaria ficar pregada na arquitetura de uma construção geométrica. Não seria, obviamente, possível colocar a luva na escultura, afinal, bustos não têm mãos, mas pode ser que a luva vermelha ficasse solta nos ombros invisíveis de Apolo.
         A luva de borracha nos incomoda, sobretudo por ser vermelha, acostumados que estamos com uma higiene que embranquece o vestuário. Mas, ela não é o único objeto de borracha. A bola também aparenta ser feita desse material e, ali, inerte, nos induz a pensar em movimentos maiores.
       De certo modo, a bola de jogar parece caber perfeitamente na luva, como se pudéssemos segurar o brinquedo com apenas uma das mãos. Este senso de proporção acompanha o tamanho do busto. Seria possível, inclusive, usar a luva para dar um estalo na face insensível de Apolo, forçando esse Deus a demonstrar sentimentos humanos. Aquele que leva um estalo na face sempre demonstra alguma espécie de sentimento humano.
         Evidentemente, a construção geométrica que está em segundo plano do quadro é demasiado pequena, se compararmos com o tamanho dos demais objetos. Mas, sem dúvida, é o único elemento da composição que está verdadeiramente do tamanho real.
         O modo como a luva de borracha vermelha está pregada à construção é algo que incomoda. Por certo, um prego de aço é exagerado para segurar o peso de uma mera luva vermelha. É exagerado porque ela é vermelha, não por causa de seu peso.  
       A bola de jogar dá a impressão de que é preciso fazer alguma coisa com ela. Porém, é perfeitamente descartável. E se fosse preciso pintar o quadro mais uma vez, de modo absolutamente fiel à primeira versão, uma cópia completamente exata, uma segunda tela somente seria a representação adequada da original se jogássemos a bola fora.
Isso é verdade.
Não é, no entanto, por ser de borracha, nem por ser verde, que a bola é descartável. É porque ela tem um segredo, na sua inutilidade dentro da composição, que transborda o sentido da pintura como um todo.
         Se a bola de jogar fosse parar em outro quadro, uma representação exclusiva da bola de jogar, uma representação verde, como não poderia ser diferente, uma vez que é uma bola de jogar, teríamos um quadro que incomodaria mais que esta Canção de Amor. Isto porque a bola tem um segredo, na sua inutilidade dentro da nova composição, que transborda o sentido da pintura como um todo. O problema é que a pintura como um todo seria somente a representação da bola de jogar verde. Este é o segredo: a bola de jogar é verde.        
         Existe música na pintura. Trata-se, sem dúvida, de uma canção de amor. Não é o estalo na face do busto de Apolo (inadvertidamente, esta ideia é tentadora) o que pode produzir a sonoridade, provocando este Deus a se manifestar. Há algo de divertido em estapear os deuses. É o trem que passa que produz toda a musicalidade. É uma música por demais urbana, pois representa os amores na solidão das metrópoles. O ritmo da passagem do trem, um som contínuo e sedutor – uma marcha – essa é a melodia da canção. Mas, é preciso estar atento para o fato de que no exato momento em que vemos o trem ao fundo do quadro, no instante preciso em que sua presença se faz sentir, quando percebemos que a pintura estaria incompleta sem a sua representação, ouvimos, nitidamente e sem maiores avisos o seu apito.
         Este apito, singularmente curto, corresponde ao refrão da canção. 
      Algo preocupa muito na lógica da compreensão do quadro. É certamente uma questão essencial e, pode-se dizer que, após o som do apito, naquele momento em que percebemos o trem, acaba por nos intrigar profundamente pois diz respeito à direção que devemos tomar nas questões amorosas. Pode ser que seja, inclusive, o mais importante da composição: não dá para saber ao certo se o trem, ao fundo da tela, produzindo fumaça, seguirá para a esquerda ou para a direita.  

domingo, 26 de março de 2017

A Reza, 1930 (Man Ray) ou Como Contar os Dedos do Pé com o Próprio Cu




  
         Entre o claro e o escuro há um pouco de corpo. No escuro, nada podemos ver; no claro, vemos demais.
O erotismo é uma arte traiçoeira. Pode parecer, à primeira vista, que consiste em mostrar sem revelar a imagem por completo, mas, na verdade, consiste em um jogo de esconder. É o que se oculta que provoca o desejo, não o que se mostra visível.
Esta fotografia, no entanto, é erótica às avessas.
O corpo se contorce e dobrando-se sobre si mesmo dá a impressão de uma posição que, se não for impossível, é certamente improvável. Toda a obscenidade da imagem não está no que não vemos. De maneira desconcertante, é exatamente o que encobre os orifícios deste corpo o que faz a imaginação flutuar. O inusitado é que, neste caso singular, o que se vê claramente é que remete ao erótico.
Pois, há algo de excessivo em todos aqueles dedos.
Os orifícios cujas imagens nos são negadas, que poderiam apontar para o apelo sexual do instantâneo, não são, a bem da verdade, o que importa na representação. São os dedos, escancaradamente nítidos, que provocam o pensamento a tomar certas formas mais sensuais.
Os glúteos, são excessivamente redondos. Também são demasiadamente brancos. Lembram uma maçã que perdeu a cor. E na composição da totalidade da imagem, junto aos dedos que estão em escala de cinza, correspondem a uma corporalidade quase que meramente sugerida. Mas, a imagem está perceptivelmente completa, mesmo que tenha algo de menos corpo no que foi retratado.
Os pés estão juntos, mas os vemos pela metade. Estão profundamente inertes. É a sombra dos glúteos o que os coloca no limiar entre o claro e o escuro. Porém, podemos ver todos os dedos. Existe algo de profundamente obsceno em tentar contá-los. É no momento exato em que examinamos se todos os dedos estão aparentes que somos pegos por uma sexualidade menos sutil e mais evidente. Todo escândalo que advém desse jogo de somar os dedos dos pés consiste, paradoxalmente, no fato de que, nesta imagem, é o esforço de minúcia, que induz ao sexual. Na foto, os pés e as mãos são de uma nudez mais provocativa do que os orifícios que tentam esconder. É preciso perceber isso. Por trás das mãos e pés, que inclusive nos enganam quando pretendem não ter nada a ver com a posição corporal inusitada, algo de sexual se insinua. 
O sexo está no detalhe.
As mãos que pretendem esconder os orifícios são quase que exclusivamente dedos. Dedos que, ao contrário dos pés, podem se movimentar. A imagem é estática, como não poderia deixar de ser, mas, o sugestivo está justamente em imaginar estes dedos em movimento. Dedos que tentam nervosamente esconder o sexo. Existe, inclusive, uma vontade de que os dedos, dada a posição que estão, não consigam cumprir seu papel no jogo de esconde e fiquem se movimentando, uma mão sobre outra, de modo que quando conseguem cobrir uma parte do sexo, acabam, invariavelmente, por deixar outra parte comprometedora descoberta.  
Além disso, não é exatamente alguma forma de toque o que precipita uma fantasia mais imaginativa. É a disposição dos dedos.
Dedos sobre dedos.
As mãos podem até ser nervosas, mas os pés são calmos. Reclinado como em uma forma de reza, o corpo é contraditório. Os pés juntos, com seus múltiplos dedos, podem até sugerir ave-marias se o caso fosse o de rezar. Se não provocassem, maliciosamente, na sua visão, certa inclinação para verificar se todos os dedos estão realmente ali. Mas as mãos, com a sobreposição de dedos sobre dedos, denunciam evidentemente, certas vontades menos religiosas.