sábado, 26 de março de 2016

O Caprichoso e a Crise Política


Talvez um dos modos de navegação social mais distintivos de nossa vida política seja o capricho. Essa figura da extravagância, da vontade sem razões precisas, é típica de contextos arbitrários. Mas, algo não pode ser esquecido quando se trata de pensar uma política caprichosa: o capricho tem lado, é estruturante de um discurso de classe e, como bem se pode perceber, não reproduz verdadeiramente a voz do povo.

            O capricho é característico do discurso ideológico e, portanto, opera na base de um ocultamento das verdadeiras oposições em jogo.

            O caprichoso adere ao discurso de ocasião, menos por uma posição política particularmente calculada e mais por um senso de que as coisas políticas não caminham do jeito que ele gostaria. Claro que não haveria nenhum problema nisso se o que se manifestasse fosse uma posição crítica, ou mesmo, uma indignação mais verdadeira. O que parece ocorrer, no entanto, é apenas uma seletividade no que diz respeito ao que se pode e o que não se pode fazer em termos políticos.

            É desse modo que as fronteiras entre o lícito e o ilícito parecem ser tênues. A judicialização da política é usada de um modo especialmente contraditória. Com o intuito legítimo de averiguar denúncias de corrupção, ou seja, ilegalidades inaceitáveis, cometem-se outras ilegalidades igualmente inaceitáveis.

            O problema do caprichoso é que, como não está interessado em princípios de coerência – o que significa, aqui, o respeito a totalidade do direito –, ele aceita e propõe que a lei deva ser aplicada apenas no sentido em que seus interesses políticos sejam satisfeitos, não se incomodando nem um pouco quando se desrespeita a lei em seu próprio benefício.

            O capricho é, no fundo, avesso à legalidade, mas se transveste de rituais jurídicos para operar sua indignação mais profundamente interesseira.

            E como o capricho só pode servir à política a partir de uma dimensão de classe, afinal, só é caprichoso quem não vive da lógica da necessidade, é preciso cooptar parcela significativa da população para legitimar um discurso que tem um lugar de origem especifico. Então, tudo fica mais fácil.

            O caprichoso político é um indignado. Deixa claro: certas coisas, ele não aceita. A corrupção, então, tem que ser punida custe o que custar. O problema é que o custo não é baixo. Trata-se de desrespeitar o direito à privacidade, o devido processo legal, a produção lícita de provas judiciais, premiar os delatores e solapar prerrogativas constitucionais. Mas, o capricho se propõe como discurso fugidio. O que se pode fazer politicamente, é o que se quer, o que não interessa politicamente, é o que pode ser deixado de lado.

            A seletividade no que diz respeito a quais normas jurídicas cumprir é traço propriamente autoritário pois aponta para a ideia de que, para alguns, a lei deve ser severa, enquanto que para outros, ela pode ser um pouco mais elástica.

            É claro que não temos 200 milhões de caprichosos no Brasil – se bem que uma das características dessa figura, a transição tênue entre lícito e ilícito, nos seja muito cara –, mas, como se trata de discurso ideológico, a verdade é que o interesse mais mesquinho e individualista de alguns, se mostre a pauta geral de indignação da nação.

            O povo, o povo mesmo, está trabalhando. Pensando em como chegar sem atrasos para o serviço diário. Está preocupado com uma escola para os filhos. Está com dificuldades para colocar comida na mesa. Sua pauta política é bem clara.

            Mas, o caprichoso finge que seus problemas são iguais aos do povo. Afinal, somos todos brasileiros. Estamos todos juntos no mesmo barco. E o discurso nacionalista, que é o discurso que não exclui ninguém em essência, pode prosperar. O curioso é que o discurso da nação-pátria-unida se dê justamente em um dos países mais desiguais de todo o planeta.

            O caprichoso quer as coisas a seu modo. Pensa, inclusive, que tem o direito de pautar o debate de nossa crise política, afinal, está acostumado com o poder de sempre e se sente muitíssimo contrariado quando denúncias de corrupção são feitas contra os seus representantes mais proeminentes.

            Não se trata, em todo caso, de defender um governo absolutamente desastrado como o atual. Pelo menos, não no sentido de apoio aos desmandos e ilegalidades praticadas no seio da república. Mas, o que parece ser urgente, é colocar sob regime de suspeita um discurso ufanista blindado por uma superfície jurídica seletiva e de aparência democrática.

O capricho não é apenas contraditório e curioso, ele é perigoso. Antidemocrático por excelência, o capricho visa, em verdade, a estruturação de uma política autoritária, com os mesmos personagens de sempre no poder. É preciso evitar o engano, não se trata de uma substituição completamente radical do que está presente em nosso espectro político. O caprichoso diz querer o Estado de Direito, mas está plenamente disposto a esquecer essa ideia se for o caso de se estabelecer um novo governo para o Brasil. Razão de Estado, estamos em uma crise que talvez torne necessário, argumenta o caprichoso, subverter algumas regras de direito para alcançar o que se almeja. Todo o problema, aí, consiste no fato de que devemos esquecer propriamente o direito para se alcançar os objetivos de alguns poucos interessados realmente na sucessão pelo poder.
           O caprichoso quer ir às ruas como manifestante político legítimo. Veste uma roupa que, a princípio, nada diz ideologicamente (todo mundo é brasileiro...) grita xingamentos aos governantes (apesar de ser educado, sempre se pode chegar ao limite da paciência...) e é escoltado pela própria polícia que percebe que se trata de um manifestante pacífico, afinal, é evidente que não se trata de um manifestante revolucionário. Está, inclusive, no meio do povo. Finge ser exatamente o que não é: inofensivo e democrático. Mas, não resta dúvida. Quando chegar a hora, abrirá uma boca enorme e cheia de dentes pronta para morder violentamente o poder.            

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