Rodrigo Suzuki Cintra
Senti
a necessidade de explicitar o que venho chamando de caprichoso político. Essa figura, ao que me parece, é
característica de nosso modo de navegação social e política e aparece com maior
intensidade nos momentos de crise, em que as oposições em jogo se mostram mais
evidentes. As dez teses a seguir são obviamente complementares e tentam passar
a fisionomia sócio-política deste tipo. Começo pelo pressuposto mais básico de
que não existe capricho sem ideologia e termino concluindo que o caprichoso é
que, no fundo, é corruptor e corrupto. Mas, além disso, talvez seja necessário
uma nota inicial: o verdadeiro caprichoso político se reconhecerá prontamente
nesse texto. É inevitável. Mas, como é próprio de seu modo cínico de relação
com conceitos, talvez ele faça de conta que essas teses não lhe dizem respeito.
Vejam, esse tipo não está acostumado a ser contrariado.
1.
O
caprichoso político opera sempre um discurso de classe.
Sua
fala tem origem específica: parte dos privilegiados para os desafortunados.
Desconhece a legitimidade do lugar de onde se produz um discurso popular. Suas
opiniões têm a pretensão de ser totalizantes – querem englobar toda a
sociedade, evitando ao máximo as verdadeiras oposições sociais em jogo. O
capricho na política é sempre ideológico, portanto.
2.
O
caprichoso político não se interessa por princípios morais.
Na
medida em que sua lógica é de classe, aquilo a que chama de princípio moral não
passa, no fundo, de interesse em causa própria. Produz a contradição própria
dos tempos: uma moralidade de fachada, avessa a uma ética de construção da
cidadania efetiva, está a serviço da estruturação de uma vida política conservadora
e desigual. Trata-se, na verdade, de um modo de se relacionar com a ética
profundamente contraditório, absolutamente interesseiro e imensamente
corrompido e corruptor.
3.
O
caprichoso político é avesso à legalidade.
Ele
seleciona o que interessa e o que não interessa nas leis. Não vê nenhum
problema em usar o direito de um modo meramente instrumental. No fundo, sabe
bem que a lei é passível de interpretação. Mas, o curioso é que em alguns casos
acredita ser desnecessário interpretar. A lei é clara quando o caprichoso quer,
obscura quando o contraria. O capricho não se importa com a coerência:
respeitar o direito é questão de oportunidade e ocasião.
4.
O
caprichoso político é permissivo com a violência.
Ele
não a pratica diretamente. Mas, argumenta e compreende as razões das ações pela
força. Pondera: às vezes, é preciso alguma ordem (violência) para enquadrar os
que não concordam com ele. Ele deixa que outros sujem as mãos, os mais toscos,
os indignados máximos que estão dispostos a tudo, mas não engana: a violência
como forma de ação política é uma de suas mais secretas opções para resolver
crises. Ele é violento, mas preguiçoso e sofisticado demais para efetivar a
força nas ruas. Então, assiste as repressões bárbaras cometidas contra
manifestações públicas legítimas na tela da televisão. E tem um sorriso no
canto da boca quando alguém desce o porrete.
5.
O
caprichoso político se fantasia de povo.
Simula
que seus interesses e problemas são os mesmos que de todos os brasileiros.
Confunde o próprio povo que, vivendo nas maiores dificuldades materiais, pode
acabar pensando que sua pauta política é a mesma do caprichoso. Alia a isso um
nacionalismo absolutamente inverossímil em um país de desigualdades absurdas.
Em uma nação partida em muitas, os outros que não aderem à pátria-nação-unida
são considerados traidores. Como se fossem brasileiros de menos. O povo mesmo,
que vive a lógica da necessidade, não tem, obviamente, a oportunidade de ser
caprichoso.
6.
O
caprichoso político é antidemocrático.
Para
ele, o que chama de povão está correto quando concorda com suas opiniões e está
“cego” quando não participa de sua lógica. A democracia é questão de lado: quem
está afinado com quem. Ou, nos tempos atuais, quem adere ao discurso da moda. O
povo, então, para o caprichoso, é, na verdade, um estranho. Como seria possível
que parcela considerável da população mais carente não participe das vontades
do caprichoso? É claro que ele não entende as razões dos que vêm de baixo. Mas,
não poderia ser diferente: o caprichoso não faz efetivamente parte do povo.
7.
O
caprichoso político é revoltado (mas não com as estruturas iniquas).
Ele é um radical de meia-medida. Obviamente que sua revolta nunca é
verdadeiramente revolucionária, algo que pudesse realmente mudar a ordem da
política nacional. Ele só está interessado na sucessão do poder. Ele quer a
mesma coisa de sempre na política, afinal, no fundo, tudo corre bem
materialmente. A substituição dos governantes é então uma farsa. Os personagens
são os mesmos, a estrutura política é a mesma, a vida social é a mesma.
Trata-se de uma revolta caprichosa então, pelo que aparenta, pois opera de um
modo preciso para que tudo fique sendo a mesma coisa de sempre.
8.
O
caprichoso político finge ser civilizado.
Usa
argumentos. Reflete, inclusive. Mas, quando chega a hora do verdadeiro enfrentamento
de ideias, estimula e compreende a barbárie da força sem hesitar por um segundo.
É comum verificar em seu modus operandi argumentativo
a virulência e o autoritarismo no modo com que conduz o debate público. Sintoma
de um sujeito acostumado em estar por cima nas relações sociais, ele não pode
nunca aparentar fraqueza em suas razões argumentativas. Ele até discute com o
outro, o diferente, mas chega sempre o momento em que perde a paciência e seus
preconceitos mais arraigados afloram. Então, a mulher é diminuída no debate por
ser mulher, o negro por ser negro, o pobre por ser pobre (e, portanto, não
estar entendendo nada), o sujeito de esquerda por ser de esquerda (e, portanto,
ser o que ele considera tendencioso...). O caprichoso não aguenta: tem que
xingar preconceituosamente o outro em sua singularidade mais particular
simplesmente porque é um outro com singularidades particulares...
9.
O
caprichoso político é intolerante.
Quem
discorda do caprichoso, é visto como louco, inconsequente, corrupto, cego. Ele
não compreende a possibilidade real da discordância democrática. O outro, o
diferente, o discordante é tratado não como um opositor de ideias, mas como um
inimigo. E, é claro, os inimigos têm que ser eliminados (mesmo que apenas do
debate), e não aceitos no regime de uma tolerância mais inclusiva. O caprichoso
quer calar todo discurso dissonante. Não tolera certas coisas. Então, vai às
últimas consequências quando sustenta sua posição ideologicamente demarcada.
Xinga, grita, esperneia, às vezes, cospe. Mas, não se enxerga como um
intolerante. Suas razões agressivas são apenas sinais da indignação mais
pretensamente verdadeira. É preciso perceber: ele cospe nos outros, mas não
quer ser excluído do debate tolerante. Não pega bem, e ele preza muito as
aparências.
10. O
caprichoso político é corrupto.
É
preciso inverter o discurso do caprichoso sobre a corrupção. Ele é seu agente
mais frequente, tanto na política quanto no cotidiano. Fingindo ser
incorruptível, o caprichoso corrompe, na verdade, a moral, o direito, a
democracia, a tolerância e a civilidade. Faz um discurso às avessas: tudo que
representa é o oposto da posição verdadeiramente cidadã. O caprichoso se pauta
pela lógica da vontade e do interesse mesquinho, ele não concebe o mundo a
partir de princípios e ideais. Sua volubilidade, suas estratégias relativistas
de argumentação, sua posição política que transparece um discurso de classe, o
tornam avesso ao discurso republicano. Para ele, não há princípios na
moralidade, no direito, na democracia, na tolerância, tudo é questão de
satisfação das vontades imediatistas de quem não gosta e não está acostumado em
ser contrariado. Ele não tem utopias, vive da ditadura do real mais comezinho,
então, seu discurso apesar de ser sempre o do oportunismo, adere as modas de
ocasião com uma facilidade impressionante. Como sabe que a vida política é uma
espécie de vale-tudo em que os mais espertos sobrevivem, ele está sempre do
lado do poder, mesmo quando não percebe. Seu modo de navegação social mais
característico é a lógica dos privilégios de sempre, do tratamento desigual e
hierarquizado dos indivíduos, dos subornos do dia-a-dia, do levar vantagem em
tudo. Trata os indivíduos que considera inferiores socialmente como coisas, mas
quer ser tratado como um rei. Acostumado a fazer birra quando contrariado, o
caprichoso aprendeu a ser autoritário quando o caso é o de impor suas vontades individualistas
de sempre. Inclusive, fazer seus interesses privados se sobreporem às questões
públicas é uma de suas notas mais características. Ele faz isso quando debate
política, faz isso quando vai às ruas e faz isso quando vota. Ele faz isso na
vida cotidiana – seus vícios privados geram benefícios públicos, ele acredita.
No fundo, é preciso não se enganar: é porque existem pessoas como ele, que
existe a corrupção.
Nota Final
O
caprichoso político é birrento, volúvel, relativista, interesseiro,
individualista, contraditório, antidemocrático e como tem a ganância própria da
classe a que pertence, está sempre flertando de maneira oportunista com o
poder. Não está acostumado a não possuí-lo em todas os domínios da vida social.
Assim, ele é extremamente verdadeiro em um sentido particular. Quer ser
representado politicamente, de qualquer modo, seja justo ou injusto, mesmo que
à revelia de qualquer procedimento democrático, mesmo que contra alguns ou
contra todos, mesmo que sustentado pela violência, e isso ele levará às últimas
consequências, custe o que custar!
Nenhum comentário:
Postar um comentário