I
As
ondas do mar, a passagem das nuvens no céu, o vento a produzir vincos nas
cortinas, o movimento do vestido, tudo isso foi pintado apenas para combinar
com os cachos do cabelo.
II
Ela é bela. E seu retrato é feito às
avessas. Em um retrato pode ser possível exprimir toda a biografia de uma
pessoa. Os retratos são imagens que descrevem a expressividade. Em todos os
casos, são a representação da face e, às vezes, da visão frontal do corpo. Ela,
no entanto, é retratada de costas. Há uma originalidade nisso porque, com
efeito, a ideia parece dar certo. Seu retrato está nos cachos malcriados de
cabelos escuros, no modo como uma de suas pernas se dobra gentilmente para trás
e fica na ponta do pé, o que lhe dá um ar de mulher fantasiosa. Na maneira como
ela apoia firmemente os dois braços na janela para olhar – como todos os dias
faz –, para fora de casa. No modo como o corpo bem esculpido modela um vestido
barato qualquer. Nas pernas parcialmente descobertas, mas que apontam
suficientemente para sinuosidades e que nos dão vontade de imaginar como seria
o resto do corpo sem o vestido. Em uma cintura mais fina que os glúteos
absolutamente carnudos e sugestivos.
É
o retrato de uma mulher possível.
Porém,
não conhecemos ninguém exatamente assim e tudo que podemos fazer é contemplar a
imagem e sonhar com um encontro inesperado e improvável com uma personagem que
habita exclusivamente o mundo das representações.
III
É
preciso conter o mar, enquadrar o céu, impedir a ação do vento, enfim,
desrespeitar, no recorte da janela, a plenitude de todos os elementos
essenciais, mas representar a suavidade tensa dos cachos do cabelo enigmáticos,
a paixão inesperada de glúteos convidativos e a imaginação infinita de um pé
direito sonhador. Uma ideia realmente extravagante seria beijá-la nervosamente
na nuca, se perder nos cabelos encaracolados, levantar parcialmente seu vestido
e colocar seu corpo na ponta dos dois pés.
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