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sexta-feira, 24 de abril de 2015

Ordem e desordem na crítica brasileira: sobre um ensaio de Antonio Candido


Rodrigo Suzuki Cintra


“No âmbito do marxismo, a ligação entre literatura e sociedade não é uma audácia, é uma obrigação.”
                                                                                              Roberto Schwarz


Quando Antonio Candido escreveu seu ensaio sobre as Memórias de um sargento de milícias acabou fazendo mais que reavaliar a tradição crítica sobre este romance. De fato, como constata Roberto Schwarz, o crítico realizou a proeza de escrever em 1970 nosso primeiro estudo propriamente dialético.
Tratava-se, na ocasião, de um ensaio literário que, por sondar a experiência social brasileira, ativava o programa materialista.
Em sua Dialética da malandragem, nosso Autor escrevia de forma clara e precisa, sem alardear vocabulário carregado de terminologias, e explicava, com a paciência de professor, os motivos pelos quais as Memórias de um sargento de milícias devem ser compreendidas como uma obra singular em nossa tradição literária.
Fugindo da caracterização europeia logo de saída, ao sustentar que o romance de Manoel Antônio de Almeida não era picaresco nem documentário, nosso Autor estava de maneira indireta assumindo a posição de que a literatura brasileira não é mera repetição de formas estrangeiras, mas sim algo novo.
            É nesse sentido que o herói de Memórias não deve ser entendido como uma figura pícara, como na experiência literária espanhola: ele é malandro. A determinação de suas características faz mais que mostrar especificamente quem é Leonardo Filho, mas o insere em uma tradição. Uma tradição brasileira que segue desde a Colônia, manifestada pela figura de Pedro Malasartes, e percorre a história literária brasileira até o modernismo no século XX, com Macunaíma e Serafim Ponte-Grande -  a malandragem. O malandro é o aventureiro astucioso, gosta do “jogo em si”, está sempre no limite entre o lícito e o ilícito e será a figura chave para a compreensão do ensaio de Antonio Candido. Isso porque o malandro é figura que existe efetivamente tanto no campo da ficção quanto no da realidade.
            As Memórias, como aponta Antonio Candido, são únicas no panorama de nossa ficção oitocentista porque não expressam a visão de nossa classe dominante. O autor das Memórias suprime os escravos e as classes dirigentes, sobrando-lhe um setor intermediário e anômico da sociedade, cujas características, entretanto, serão decisivas para a medida das relações ideológicas entre as classes sociais. 
            Tratava-se de caracterizar os homens livres e sua lei. Estes homens viviam num espaço social intermediário e anômico, em que não integravam a ordem, mas também não podiam dela prescindir.
            Talvez o maior achado de Antonio Candido tenha sido o de perceber que as Memórias operam através da lógica da dialética entre ordem e desordem. Ordem e desordem seriam a própria forma do romance, a “lei de sua intriga”, seriam o princípio que organizaria a realidade e a ficção.
            A figura do malandro é a mais adequada a este tipo de organização de mundo em que forças da ordem, como a polícia, por exemplo, concorrem com as forças da desordem. Ele é o tipo que transita entre os dois mundos. Está sempre atuando no limiar, no cinzento, entre o que se pode e o que não se deve fazer. A alternativa lícito/ilícito é perfeitamente relativizada pelo malandro. O malandro encarna a esperteza popular, sabedoria genérica da sobrevivência em um mundo repleto de obstáculos e iniquidades.
            Antonio Candido consegue, inclusive, sintetizar a questão da dialética da ordem e da desordem em uma imagem que capta do livro: o chefe-de-polícia, major Vidigal, vestido com a casaca do uniforme, mas com as calças domésticas e exibindo, sem querer, seus tamancos. A imagem, boa demais para ser descartada, mas que somente a leitura do crítico faz perceber, aponta para os dois “hemisférios” nos quais orbitam a vida dos personagens e as relações sociais descritas no romance. Nem mesmo o pólo mais evidente da ordem, o da polícia de Vidigal, passa livre da desordem que caracteriza a vida dos personagens que o próprio Vidigal persegue.
            Tudo se passa como se os personagens descrevessem uma verdadeira dança entre lícito e ilícito, sem que possamos dizer, satisfatoriamente, o que é um e o que é outro.
            Tomemos o roteiro das relações amorosas que pululam aos montes no romance. São “vinte mancebias a cada casamento e mil uniões fortuitas a cada mancebia”. Em outras palavras, os homens e mulheres livres e pobres se arranjavam da maneira que a vida parecia mandar, em uma oposição clara entre os casamentos devidamente realizados de acordo com a ordem moral, e as relações de convivência efetivas, mas não oficiais.
            Fazendo uma crítica materialista toda a seu jeito, Antonio Candido, esbanjando originalidade, impregna de dialética seu ensaio porque vislumbra a dialética na composição do próprio romance de Manoel Antônio. De caso pensado ou não, o fato é que as Memórias serviriam de registro da sociedade oitocentista – afinal, “Era no tempo do rei”...
            O valor do ensaio de Antonio Candido não está na mera ligação entre sociedade e literatura. Está muito mais no fato de nosso Autor buscar a sociedade através da forma literária e não o contrário. O elemento estético está em primeiro lugar.
Em outras palavras, antes de intuída e objetivada pelo romancista, a forma que o crítico estudou foi produzida pelo processo social, porém apesar da obra relatar seu próprio tempo e sociedade, a dinâmica das Memórias tem um valor estético todo próprio.
            Como explica Roberto Schwarz: “Assim, o ensaio retoma o esforço de interpretação da experiência brasileira, que havia sumido da crítica exigente, e talvez se possa dizer que inaugura a sondagem do mundo contemporâneo através de nossa literatura.”
            Redução da forma social a uma forma estética, a verdade é que nosso Autor, como aponta Paulo Arantes, percebeu que na circulação dos personagens das Memórias pelas esferas sociais da ordem (Brasil burguês) e da desordem (pólo negativo do Brasil burguês), estrutura central do romance, existia a fórmula que estilizava um ritmo geral da sociedade brasileira na primeira metade do século XIX.
            A Dialética da Malandragem, balanceio caprichoso entre ordem e desordem, define não apenas a estrutura da obra que se critica, mas explica a fisionomia do país que a produziu.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

100 livros essenciais da literatura brasileira - Revista BRAVO!

 

1. Bagagem (Adélia Prado)
2. O Cortiço (Aluísio Azevedo)
3. Lira dos Vinte Anos (Álvares de Azevedo)
4. Noite na Taverna (Álvares de Azevedo)
5. Quarup (Antonio Callado)
6. Brás, Bexiga e Barra Funda (Antonio de Alcântara Machado)
7. Romance d’A Pedra do Reino (Ariano Suassuna)
8. Viva Vaia (Augusto de Campos)
9. Eu (Augusto dos Anjos)
10. Ópera dos Mortos (Autran Dourado)
11. O Uruguai (Basílio da Gama)
12. O Tronco (Bernardo Elis)
13. A Escrava Isaura (Bernardo Guimarães)
14. Morangos Mofados (Caio Fernando Abreu)
15. A Rosa do Povo (Carlos Drummond de Andrade)
16. Claro Enigma (Carlos Drummond de Andrade)
17. Os Escravos (Castro Alves)
18. Espumas Flutuantes (Castro Alves)
19. Romanceiro da Inconfidência (Cecília Meireles)
20. Mar Absoluto (Cecília Meireles)
21. A Paixão Segundo G.H. (Clarice Lispector)
22. Laços de Família (Clarice Lispector)
23. Broqueis (Cruz e Souza)
24. O Vampiro de Curitiba (Dalton Trevisan)
25. O Pagador de Promessas (Dias Gomes)
26. Os Ratos (Dyonélio Machado)
27. O Tempo e o Vento (Érico Veríssimo)
28. Os Sertões (Euclides da Cunha)
29. O que é Isso, Companheiro? (Fernando Gabeira)
30. O Encontro Marcado (Fernando Sabino)
31. Poema Sujo (Ferreira Gullar)
32. I-Juca Pirama (Gonçalves Dias)
33. Canaã (Graça Aranha)
34. Vidas Secas (Graciliano Ramos)
35. São Bernardo (Graciliano Ramos)
36. Obra Poética (Gregório de Matos)
37. O Grande Sertão: Veredas (Guimarães Rosa)
38. Sagarana (Guimarães Rosa)
39. Galáxias (Haroldo de Campos)
40. A Obscena Senhora D (Hilda Hist)
41. Zero (Ignácio de Louola Brandão)
42. Malagueta, Perus e Bacanaço (João Antônio)
43. Morte e Vida Severina (João Cabral de Melo Neto)
44. A Alma Encantadora das Ruas (João do Rio)
45. Harmada (João Gilberto)
46. Contos Gauchescos (João Simões Lopes Neto)
47. Viva o Povo Brasileiro (João Ubaldo Ribeiro)
48. A Moreninha (Joaquim Manuel de Macedo)
49. Gabriela, Cravo e Canela (Jorge Amado)
50. Terras do Sem Fim (Jorge Amado)
51. Invenção de Orfeu (Jorge de Lima)
52. O Coronel e o Lobisomem (José Cândido de Carvalho)
53. O Guarani (José de Alencar)
54. Lucíola (José de Alencar)
55. Os Cavalinhos de Platiplanto (J. J. Veiga)
56. Fogo Morto (José Lins do Rego)
57. Triste Fim de Policarpo Quaresma (Lima Barreto
58. Crônica da Casa Assassinada (Lúcio Cardoso)
59. O Analista de Bagé (Luis Fernando Veríssimo)
60. Tremor de Terra (Luiz Vilela)
61. As Meninas (Lygia Fagundes Telles)
62. Seminário dos Ratos (Lygia Fagundes Telles)
63. Memórias Póstumas de Brás Cubas (Machado de Assis)
64. Dom Casmurro (Machado de Assis)
65. Memórias de um Sargento de Milícias (Manuel Antônio de Almeida)
66. Libertinagem (Manuel Bandeira)
67. Estrela da Manhã (Manuel Bandeira)
68. Galvez, Imperador do Acre (Márcio Souza)
69. Macunaíma (Mário de Andrade)
70. Paulicéia Desvairada (Mário de Andrade)
71. O Homem e Sua Hora (Mário Faustino)
72. Nova Antologia Poética (Mário Quintana)
73. A Estrela Sobe (Marques Rebelo)
74. Juca Mulato (Menotti Del Picchia)
75. O Sítio do Pica-pau Amarelo (Monteiro Lobato)
76. As Metamorfoses (Murilo Mendes)
77. O Ex-mágico (Murilo Rubião)
78. Vestido de Noiva (Nelson Rodrigues)
79. A Vida Como Ela É (Nelson Rodrigues)
80. Poesias (Olavo Bilac)
81. Avalovara (Osman Lins)
82. Serafim Ponte Grande (Oswald de Andrade)
83. Memórias Sentimentais de João Miramar (Oswald de Andrade)
84. O Braço Direito (Otto Lara Resende)
85. Sermões (Padre Antônio Vieira)
86. Catatau (Paulo Leminski)
87. Baú de Ossos (Pedro Nava)
88. Navalha de Carne (Plínio Marcos)
89. O Quinze (Rachel de Queiroz)
90. Lavoura Arcaica (Raduan Nassar)
91. Um Copo de Cólera (Raduan Nassar)
92. O Ateneu (Raul Pompéia)
93. 200 Crônicas Escolhidas (Rubem Braga)
94. A Coleira do Cão (Rubem Fonseca)
95. A Senhorita Simpson (Sérgio Sant’Anna)
96. Febeapá (Stanislaw Ponte Preta)
97. Marília de Dirceu (Tomás Antônio Gonzaga)
98. Cartas Chilenas (Tomás Antônio Gonzaga)
99. Nova Antologia Poética (Vinícius de Moraes)
100. Inocência (Visconde de Taunay)

100 Livros Essenciais da Literatura Mundial - Revista BRAVO!


1. Ilíada, de Homero
2. Odisseia, de Homero
3. Hamlet, de William Shakespeare
4. O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de la Mancha, de Miguel de Cervantes (1/2)
5. A Divina Comédia, de Dante Alighieri (3/3)
6. Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust (1/7)
7. Ulisses, de James Joyce
8. Guerra e Paz, de Leon Tosltói
9. Crime e Castigo, de Fiódor Dostoiévski
10. Os Ensaios, de Michel de Montaigne
11. Édipo Rei, de Sófocles
12. Otelo, de William Shakespeare
13. Madame Bovary, de Gustave Flaubert
14. Fausto, de Johann Wolfgang von Goethe
15. O Processo, de Franz Kafka
16. Doutor Fausto, de Thomas Mann
17. As Flores do Mal, de Charles Baudelaire
18. O Som e a Fúria, de William Faulkner
19. A Terra Desolada, de T. S. Eliot
20. Teogonia, de Hesíodo
21. Metamorfoses, de Ovídio
22. O Vermelho e o Negro, de Stendhal
23. O Grande Gatsby, de Francis Scott Fitzgerald
24. Uma Temporada no Inferno, de Arthur Rimbaud
25. Os Miseráveis, de Victor Hugo
26. O Estrangeiro, de Albert Camus
27. Medeia, de Eurípides
28. Eneida, de Virgílio
29. Noite de Reis, de William Shakespeare
30. Adeus às Armas, de Ernest Hemingway
31. O Coração das Trevas, de Joseph Conrad
32. Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley
33. Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf
34. Moby Dick, de Herman Melville
35. Histórias Extraordinárias, de Edgar Allan Poe
36. A Comédia Humana, de Honoré de Balzac
37. Grandes Esperanças, de Charles Dickens
38. O Homem sem Qualidades, de Robert Musil
39. As viagens de Gulliver, de Jonathan Swift
40. Finnegans Wake, de James Joyce
41. Os Lusíadas, de Luís de Camões
42. Os Três Mosqueteiros, de Alexandre Dumas
43. Retrato de uma Senhora, de Henry James
44. Decamerão, de Giovanni Boccaccio
45. Esperando Godot, de Samuel Beckett
46. 1984, de George Orwell
47. A Vida de Galileu, de Bertolt Brecht
48. Os Cantos de Maldoror, de Lautréamont
49. A Tarde de um Fauno, de Stéphane Mallarmé
50. Lolita, de Vladimir Nabokov
51. Tartufo, de Molière
52. As Três Irmãs, de Anton Tchekhov
53. O Livro das Mil e Uma Noites
54. O Burlador de Sevilha, de Tirso de Molina
55. Mensagem, de Fernando Pessoa
56. Paraíso Perdido, de John Milton
57. Robinson Crusoé, de Daniel Defoe
58. Os Moedeiros Falsos, de André Gide
59. Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis
60. O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde
61. Seis Personagens à Procura de um Autor, de Luigi Pirandello
62. As Aventuras de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll
63. A Náusea, de Jean-Paul Sartre
64. A Consciência de Zeno, de Italo Svevo
65. Longa Jornada Noite Adentro, de Eugene Gladstone O’Neill
66. A Condição Humana, de André Malraux
67. Os Cantos, de Ezra Pund
68. Canções da Inocência-Canções da Experiência, de William Blake
69. Um Bonde Chamado Desejo, de Tennessee Williams
70. Ficções, de Jorge Luis Borges
71. O Rinoceronte, de Eugène Ionesco
72. A Morte de Virgílio, de Hermann Broch
73. Folhas de Relva, de Walt Whitman
74. O Deseros dos Tártaros, de Dino Buzzati
75. Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez
76. Viagem ao Fim da Noite, de Louis-Ferdinand Céline
77. A Ilustre Casa de Ramires, de Eça de Queirós
78. O Jogo da Amarelinha, de Julio Cortázar
79. As Vinhas da Ira, de John Steinbeck
80. Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar
81. O Apanhador no Campo de Centeio, de J. D. Salinger
82. As Aventuras de Huckleberry Finn, de Mark Twain
83. Contos - Hans Christian Andersen
84. O Leopardo, de Tomasi di Lampedusa
85. A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy, de Laurence Sterne
86. Uma Passagem para a Índia, de Edward Morgan Forster
87. Orgulho e Preconceito, de Jane Austen
88. Trópico de Câncer, de Henry Miller
89. Pais e Filhos, de Ivan Turguêniev
90. O Náufrago, de Thomas Bernhard
91. A Epopeia de Gilgamesh
92. O Mahabharata
93. As Cidades Invisíveis, de Italo Calvino
94. Oh The Road, de Jack Kerouac
95. O Lobo da Estepe, de Herman Hesse
96. O Complexo de Portnoy, de Philip Roth
97. Reparação, de Ian McEwan
98. Desonra, de J. M. Coetzee
99. As Irmãs Makioka, de Junichiro Tanizaki
100. Pedro Páramo, de Juan Rulfo    

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Kafka ou Sob o Signo de Odradek


Acabo de publicar ensaio sobre o texto Tribulações de um Pai de Família de Franz Kafka. Pode ser lido na Revista Sibila - Poesia e Crítica Literária.

Para acessar, aqui segue o link: http://sibila.com.br/novos-e-criticos/kafka-ou-sob-o-signo-de-odradek/11453

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Os Pássaros de Kafka - parte 1


Os pássaros de Kafka


I – O sentido da liberdade


Uma gaiola saiu à procura de um pássaro.

Franz Kafka, Aforismos


A frase propõe uma imagem inusitada. Não é próprio da natureza das gaiolas se moverem, são objetos inanimados, e, menos ainda, saírem a procurar justamente o que vão oprimir. Mas, é claro que em Kafka, isto explica pouco. Alguns de seus objetos têm uma tendência a se comportar de maneira mais viva, assim como seus animais também podem expressar características humanas. Neste caso, porém, a postura da gaiola nos incomoda profundamente. De certo modo, se os pássaros inicialmente apontam para a liberdade, uma vez que podem voar, as gaiolas representam as estruturas fixas que prendem, que cerceiam, que impedem voos maiores. No entanto, na frase, tudo se dá como se as gaiolas, que normalmente são imóveis, pudessem empreender efetivamente deslocamentos. E contrariando uma inércia essencial, esta estranha gaiola, um arcabouço de aprisionamento, parece sair atrás de seu próprio prisioneiro.

Esta absurda caçada, no entanto, é ainda mais intrigante do que inicialmente se supõe. Não se trata de procurar o pássaro, como se na lógica desta busca insólita, pelo menos esse animal fosse culpado por alguma espécie de desvio. Tudo leva a crer que a gaiola saiu para prender um pássaro qualquer. Como se o que importasse fosse cumprir com sua função de prisão, mesmo que para isso precise encontrar um pássaro aleatório, que não tenha feito nada demais – exceto, talvez, voar. A estrutura de dominação precisa obrigatoriamente funcionar, neste caso, pouco importando a existência de alguma espécie de motivação ou justificação. Talvez por isso também seja possível identificar algo de burocrático na frase. Na imagem que elaboramos ao tentar representar o sentido do aforismo, a gaiola parece ser mais importante que o pássaro. Uma estrutura pronta que lhe é superior, e que acaba por operar uma lógica altamente complexa ao alçar voo, apesar de aparentar sair à procura de um pássaro distraidamente.

Nesta imagem desconcertante, a essência da natureza dos pássaros, que é a liberdade de poder voar, fica até diminuída frente à possibilidade de voo da gaiola e o que isso significa. Pois, o estranho e o que perturba prontamente na frase não é, na verdade, a imagem de um pássaro encerrado dentro das grades de uma gaiola – imagem que, infelizmente, estamos acostumados –, mas a ideia de que essa estrutura de aprisionamento possa se mover e opere uma perseguição gratuita a um ser que se encontre livre. Isto aponta para algo extremamente opressor nesta história que é contada em uma única linha, e que de certa forma, acaba por nos levar a perguntar: não é assim mesmo que funcionam as nossas estruturas de dominação? Talvez o que incomode mesmo no aforismo seja menos a sua violência, apesar dela ser absolutamente devastadora, mas a certeza de que, de algum modo, a frase está colada irremediavelmente ao real. É claro que se trata de uma situação bizarra, como qualquer um pode notar, e é justamente por isso que parece ser plenamente possível que aconteça.

Em um caso como esse, ao contrário do que se poderia imaginar, toda a impostura parece vir, na verdade, dos pássaros. Existe um atrevimento em se propor a alçar voo. Bem pode ser que uma gaiola, inexoravelmente, já estivesse destinada a algum deles por princípio – quem garante que voar, em si mesmo, já não constitui alguma espécie de culpa? Mas, quanto a isso, é óbvio que não podemos ter certeza. Kafka jamais seria claro a respeito disso. A única coisa que parece ser correta é que não são os pássaros que tornam necessárias as gaiolas para aprisioná-los, mas o contrário, a existência das gaiolas é que viabiliza uma potencial liberdade aos pássaros. Reverso de mundo, em Kafka, a opressão é anterior à liberdade.


II – O céu-deserto


As gralhas afirmam que uma só poderia destruir o céu. Não há dúvida quanto a isso, mas não prova nada contra o céu, pois os céus significam justamente: impossibilidade de gralhas.

Franz Kafka, Aforismos


            A sequência das frases é precisa e resolve todo o problema da liberdade em apenas duas afirmações. Metáfora de nós mesmos, as gralhas de Kafka simbolizam nossas pretensões e limitações neste aforismo singular que opera uma lógica que a princípio parece contraditória, mas que no fundo, é verosímil apesar de ser perversa. Na primeira frase, temos a impressão de que as gralhas têm uma liberdade plena. Desafiam o ambiente em que podem empreender o voo. Uma forma de ser livre absoluta, maior que o próprio céu, pois decorre de um princípio de natureza primordial. Mas, claro que isso é meramente o discurso das próprias gralhas, o nosso discurso. Animais que, pelo que podemos perceber ao ler a primeira frase do aforismo, estão corretos em sua afirmação pretensiosa - destruir o céu. O que não significa efetivamente a concretização do próprio voo. Porém, é na segunda frase que o aforismo se resolve. Sem maiores avisos, essa frase contraria prontamente a lógica da frase anterior e finaliza a questão quase que com uma sentença de caráter moral: os céus significam justamente: impossibilidade de gralhas.

Curiosa maneira de nos fornecer imagens. Em um primeiro momento, após a leitura da primeira frase, enchemos o céu de pássaros. A imagem de uma única gralha, inclusive, a voar livremente pelo céu, nos autoriza a pensar em um mundo em que a liberdade é plena. Porém, a segunda frase, por meio de uma conclusão lapidar, nos desorienta. A sentença faz mais que meramente dizer que as gralhas não podem voar livremente. É uma afirmação que estabelece o próprio sentido dos céus. Proclama que o significado dos céus é a impossibilidade das gralhas. A imagem que a segunda frase nos fornece é desanimadora. Após encher o céu de pássaros e posteriormente reduzir para um único animal dessa espécie, o movimento que nossa imaginação realizou após a leitura da primeira frase do aforismo, somos obrigados a imaginar um céu vazio, destituído de pássaros, um céu sem vida. Afinal, ao que tudo indica, a frase não apenas inviabiliza a liberdade de voar das gralhas, mas nos informa que as gralhas, em si mesmas, são plenamente impossíveis por causa dos céus. Subtrai-se, portanto, não apenas a liberdade, mas a própria existência. E esse é o verdadeiro significado do céu, o motivo para qual existe, sua função conforme nos é informado – o céu é um deserto.

Mas, claro que, apesar disso, o céu está logo ali, neste aforismo. Existe potencialmente como algo para vislumbrarmos. Kafka, certa vez, ao ser questionado se não havia esperança no mundo, assim respondeu: “Sim, há muita esperança. Mas não para nós.” Assim, o real sentido do céu é algo mais opressor do que as gralhas podem supor, o oposto do que acreditamos. Sua imagem não pode mais representar a liberdade, mas sim, ao contrário, ela é a tradução da mais completa impossibilidade de existir e ser livre. Em Kafka, o céu não tem horizonte.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Tradução - Poema de T. S. Eliot


O Nome dos Gatos
                   Tradução: Rodrigo Suzuki Cintra

Dar nome aos gatos é assunto complicado,
   Não é apenas um jogo que divirta adolescentes;
Podem pensar, à primeira vista, que sou doido desvairado
Quando eu digo, um gato deve ter TRÊS NOMES DIFERENTES.
Primeiro, temos o nome que a família usa diariamente,
   Como Pedro, Augusto, Alonso ou Zé Maria,
Como Vitor ou Jonas, Jorge ou Gui Clemente –
   Todos nomes sensíveis para o dia-a-dia.
Há nomes mais requintados se pensam que podem soar melhor,
   Alguns para os cavalheiros, outros para titia:
Como Platão, Demetrius, Electra ou Eleonor –
   Mas todos eles são sensíveis nomes de todo dia.
Mas eu digo, um gato precisa ter um nome que é particular,
   Um nome que lhe é peculiar, e que muito o dignifica,
De outro modo, como poderia manter sua cauda perpendicular,
   Ou espreguiçar os bigodes, orgulhar-se de sua estica?
Dos nomes deste tipo, posso oferecer um quórum,
   Como Munkustrap, Quaxo, ou Coricopato,
Como Bombalurina, ou mesmo Jellylorum –
   Nomes que nunca pertencem a mais de um gato.
Mas, acima e para além, ainda existe um nome a suprir,
   E este é o nome que você jamais cogitaria;
O nome que nenhuma investigação humana pode descobrir –
   Mas O GATO E SOMENTE ELE SABE, e nunca o confessaria.
Se um gato for surpreendido com um olhar de meditação,
   A razão, eu lhe digo, é sempre a mesma que o consome:
Sua mente está engajada em uma rápida contemplação
   De lembrar, de lembrar, de lembrar qual é o seu nome:
       Seu inefável afável
       Inefavefável
Oculto, inescrutável e singular Nome.


The Naming of Cats
                   T. S. Eliot

The Naming of Cats is a difficult matter,
    It isn’t just one of your holiday games;
You may think at first I’m as mad as a hatter
When I tell you, a cat must have THREE DIFFERENT NAMES.
First of all, there’s the name that the family use daily,
   Such as Peter, Augustus, Alonzo or James, 
Such as Victor or Jonathan, George or Bill Bailey –
    All of them sensible everyday names.
There are fancier names if you think they sound sweeter,
   Some for the gentlemen, some for the dames:
Such as Plato, Admetus, Electra, Demeter –
   But all of them sensible everyday names.
But I tell you, a cat needs a name that’s particular,
   A name that’s peculiar, and more dignified,
Else how can he keep up his tail perpendicular,
   Or spread out his whiskers, or cherish his pride?
Of names of this kind, I can give you a quorum,
   Such as Munkustrap, Quaxo, or Coricopat,
Such as Bombalurina, or else Jellylorum –
   Names that never belong to more than one cat.
But above and beyond there’s still one name left over,
   And that is the name that you never will guess;
The name that no human research can discover –
   But THE CAT HIMSELF KNOWS, and will never confess.
When you notice a cat in profound meditation,
   The reason, I tell you, is always the same:
His mind is engaged in a rapt contemplation
   Of the thought, of the thought, of the thought of his name:
      His ineffable effable
      Effanineffable
Deep and inscrutable singular Name.



domingo, 4 de setembro de 2011

TRADUÇÃO - Poema de Dylan Thomas

Do not go gentle into that good night

Dylan Thomas



Do not go gentle into that good night,

Old age should burn and rave at close of day;

Rage, rage against the dying of the light.



Though wise men at their end know dark is right,

Because their words had forked no lightning they

Do not go gentle into that good night.



Good men, the last wave by, crying how bright

Their frail deeds might have danced in a green bay,

Rage, rage against the dying of the light.



Wild men who caught and sang the sun in flight,

And learn, too late, they grieved it on its way,

Do not go gentle into that good night.



Grave men, near death, who see with blinding sight

Blind eyes could blaze like meteors and be gay,

Rage, rage against the dying of the light.



And you, my father, there on the sad height,

Curse, bless, me now with your fierce tears, I pray.

Do not go gentle into that good night.

Rage, rage against the dying of the light.



Não vás tão gentilmente nessa boa noite escura

Tradução: Rodrigo Suzuki Cintra



Não vás tão gentilmente nessa boa noite escura,

Os velhos deveriam arder e bradar ao fim do dia;

Raiva, raiva contra a morte da luz que fulgura.



Os homens sábios, em seu fim, sabem com brandura,

O porquê a fala de suas palavras estava vazia,

Nâo vão tão gentilmente nessa boa noite escura.



Os homens bons, ao adeus, gritando como a alvura

De seus feitos frágeis poderia ter dançado em uma verde baía,

Raiva, raiva contra a morte da luz que fulgura.



Os homens selvagens que roubaram e cantaram o sol na altura,

E aprenderam, tarde demais, que o lamento toma sua via,

Não vão tão gentilmente nessa boa noite escura.



Os homens graves, perto da morte, enxergam com olhar que perfura,

O olho quase cego a brilhar como meteoro, então, cintilaria,

Raiva, raiva contra a morte da luz que fulgura.



E você, meu pai, do alto e acima de tudo que perdura,

Maldiga, abençoe, com sua lágrima triste, eu pediria:

Não vá tão gentilmente nessa boa noite escura,

Raiva, raiva contra a morte da luz que fulgura.