segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

 

Empoderamento, Brigas de Ocasião e Lutas Políticas

Rodrigo Suzuki Cintra

 

            Uma maneira no mínimo não convencional de reconsiderar o jogo político é proposta por Hannah Arendt em Sobre a Violência, e a hipótese conceitual de reverter a relação entre poder e violência, baseada nas considerações da autora, vem a explicar, talvez, implicações de brigas de ocasião elevadas ao nível de luta política.

            Para não fazer um fichamento escolar da proposta da filósofa, a questão toda se propõe, inicialmente, que tanto a esquerda mais revolucionária, quanto a direita mais autoritária, sempre identificaram o poder como exercício da violência. Em comunhão, a possibilidade de revolução emancipatória bem depende disso, assim como o totalitarismo se resolve e se impõe no “cano do revólver”.

            Hannah Arendt é bem mais que pensadora afinada a uma ideologia em particular e qualquer leitor pode perceber que sua trajetória como filósofa política no século XX, no tema mais próprio dos pensadores-homens, pode garantir uma legitimidade de começo de conversa, ou mesmo, uma leitura de adesão.

            Porque tem pessoas que sabem do que estão falando.

            A relação entre poder e violência é clássica e tanto um Max Weber justifica todo o Estado no exclusivo e legítimo exercício da força, como Marx propõe a revolução armada por tomada de consciência, em regime de luta de classes, contra o Estado opressor.

            Mas, a análise de Hannah Arendt não conecta a violência como manifestação de poder, mas, sim, em lógica de navalha, opõe a violência ao poder: o exercício da violência é sintoma de perda de poder. A operação de deslocamento, conceitual e factual, porque a violência existe mesmo e na base do porrete, funciona porque o poder, para a filósofa, tem que ser baseado em um consenso geral. E onde existe essa comunhão de sentido político, a violência não tem sentido, não é necessária. Hannah Arendt, assim, não posiciona o poder no mando exclusivo estatal, mas no agir em conjunto e no mesmo sentido de toda a comunidade.

            De certa forma, devolve a comunidade o agir da política.

            Sem continuar com as classificações e proposições do ensaio da autora, o que parece ser interessante em momento atual e contemporâneo, quando a luta política se esfacela em perspectivas diferentes a serem enfrentadas no cenário social, é que o empoderamento, palavra de ordem a reger operações de intervenção de pretensão política, em leitura tradicional, somente se realizaria por meio de enfrentamento. Uma violência de base seria necessária para a oposição e reposição de perspectivas de luta em nível político.

            Mas, se Hannah Arendt, a mulher que se propôs a entender a filosofia política no século XX, estiver no caminho correto da proposta conceitual, quanto mais violência no processo de tentativa de empoderamento, menos poder efetivo se estabelecerá, porque o verdadeiro poder do agir comunitário tem que ser avesso às formas de agressão.

            O extremo máximo da violência, um contra todos, nesse sentido, é uma formulação que não pode ser política porque, em regime de violência máxima, a comunidade não ganha o próprio sentido do poder.

            Em tempos em que a palavra empoderamento funciona como uma categoria absolutamente legítima para lutas sociais, o cuidado com a real e efetiva possibilidade de exercer às oposições de maneiras mais rigorosas pode ser a única maneira de conquista social plenamente política.

            O empoderamento, no entanto, em sua faceta prática é uma fórmula de emancipação que se propõe, antes de tudo, como conquista individual. O multiculturalismo registra o conceito em lógica de abrangência, sim, mas, porém, ele é uma forma de exercício da própria singularidade sem o menor medo ou ressalva de ser quem se é. No geral, se pode falar em empoderamento de um certo grupo social na ação política, mas ele é a expressão própria de uma individualidade que será plenamente exercida como cidadania plena.

            Não é incomum, aqui, que questões de oposição de caráter individual, brigas de contrariedade, rixas de discordância, seja elevada ao nível de luta política, confusão que também pode ocorrer ao reverso, quando a luta política se torna uma peleja entre indivíduos específicos.

            Carl Schmitt foi um pensador reacionário, por certo, mas, no corte de entendimento político não deixou de contribuir para a reflexão que se propõe entender no cenário da lógica do empoderamento. A definição mais operacional que define a política, para ele, no O conceito do político, é que a política é a distinção entre amigo e inimigo. Assim colocado, não é relação entre pessoas com divergências, mas uma ação que se perfaz na aniquilação do outro – o inimigo se destrói.

            Nesse sentido, operações de transformação de brigas de discordância para lutas políticas, se por um lado podem parecer funcionar porque o aniquilamento, por meio da violência, do inimigo é a proposta do próprio exercício político, isso significa categoricamente, se seguirmos a filosofia de Hannah Arendt, na perda do sentido político do próprio ato.

            Carl Schmitt, filósofo das entranhas do autoritarismo nazista, começa a ser, nessa opção de luta pela violência, a base de operação conceitual se o imbróglio se dá dessa forma. O autoritarismo violento se torna a chave da política e a possibilidade de desconexão entre poder e violência uma bobagem de pensadora filosofante.

            A ideia de empoderamento, portanto, não é um engano conceitual, mas deve estar atenta para não repetir a própria violência social que talvez condene no estranho mundo do real. Do contrário, ao invés de basear as ações emancipatórias nos conceitos de Hannah Arendt, avessa completamente à brutalidade, poderia se incorrer no engano da prática da política como extermínio, a proposta de Schmitt. O resultado dessas práticas, nós bem conhecemos ao abrir livros de história.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

 

Estratégias de Narrador em A mulher pequena, de F. Kafka

(O conto A mulher pequena é de F. Kafka, a tradução utilizada nas citações é de Modesto Carone, o ensaio, mero exercício escolar de primeira leitura, é de minha autoria.)

 

Dedicado aos que decidem, no pensar solitário, por própria conta e risco, tentar alcançar o tamanho que querem ter para a própria vida.

Rodrigo Suzuki Cintra

 

“Ora, essa mulherzinha está muito insatisfeita comigo, sempre tem algo a censurar em mim, diante dela estou sempre errado e irrito-a a cada passo; se fosse possível dividir a vida em partes mínimas e cada partícula pudesse ser julgada em separado, certamente qualquer pedacinho da minha vida seria um aborrecimento para ela.”

A Mulher pequena, de F. Kafka

 

A contrariedade é existencial, “questão de princípio”, e certa profundidade pseudo-obscura, em ritmo obsessivo de desaprovação, por preencher os sentimentos incompreensivelmente exagerados de gente pequena levou, ao que parece, o personagem-narrador do conto kafkiano ao discurso em registro textual. O feito literário, então, é menos opção por um cálculo qualquer de acerto de contas por parte desse personagem, como fica claro no escrito todo, uma vez que ele vive muito bem sem a mulherzinha, e mais provocado pelo caráter desproporcional da raiva que ele ocasiona na vida dela, o que o inclina, marcadamente, para aquelas reflexões talvez metódicas, mas, inúteis, de tentativa de compreensão da racionalidade em jogo quando se trata da construção incansável de um ódio absolutamente incomum. E é por demais evidente, mesmo no correr de leitura rápida do conto, que enquanto o papel do personagem-narrador na história é refletir com seu estilo particular, os prós e contras para uma tomada de decisão a partir das amarrações que o próprio texto engendra em seu vai e vem conjectural, à mulher pequena sobra a coadjuvância de um existir que se perfaz e se exerce somente na medida em que tem ódio de uma outra personagem. Na armação do conto, o personagem-narrador reflete em voz alta, mas no registro de escrita, e pode se dizer que sua existência é o próprio estilo peculiar com que organiza todo o discurso. A mulherzinha, por outro lado, se propõe mais importante que o narrador, uma vez que desagradá-la já é uma forma de culpa, e no entanto, nessa arquitetura textual de Kafka, ela é que se posiciona como objeto de análise. A existência ficcional do narrador se exerce pela reflexão, ao longo das frases encadeadas, para uma decidibilidade final que resolva o problema – e arremate o conto –, enquanto a forma de representação da mulher diminuta se encerra nos sorrisos engasgados que produz enquanto inflama uma raiva incomensurável.

Se o escrito revela um relacionamento problemático do narrador, descreve até infortúnios potenciais que, à título de hipótese, uma mulher menor poderia causar; na economia própria de sua peculiar progressão narrativa, um formato de quase-ensaio produz a sensação de um homem que pensa alto, e consigo mesmo, sobre a empulhação que a pessoa pequena lhe proporciona. No conto em que só o narrador fala, reflete e registra, a pequena obra-prima kafkiana sobre relações humanas e seus desencontros, o vagar do escrito leva a uma declaração espontânea de espanto perante aquele sentimento negativo incontrolável proveniente da mulher pequena, que descrita na sua particular obviedade de estatura baixa, característica que não se altera nunca apesar de virarmos as páginas do livro, parece ter dimensões físicas menorzinhas, como também pode significar aquele modo de ser diminuto que entende o mundo a partir da moralidade padrão e que faz do mais puro capricho valorativo pessoal uma regra universal. Pois, ela comparece nos parágrafos apenas para destilar, sem ter voz própria, por meio daquela montagem distorcida de caras e bocas que o narrador nos faz ver; insatisfações, censuras, aborrecimentos, negatividades e dores e apesar dele sequer se importar tanto com o modus operandi de suas lástimas, particularmente própria de criança teimosa, ou mulher que recebeu um adeus, toda a maledicência própria de mulherzinha contrariada inunda o escrito com o ecos da negatividade. Página após página do conto, ouvimos seus gritos abafados, grunhidos quase só simbólicos, contra ele e tudo que ele implica. Apesar do narrador ter sequestrado no texto as frases de indignação provenientes do tamanhinho da mulher, todo um gestual alentado na amargura produz a persona e a cena da desaprovação feita de desprezo.

Mas, nesse conto de Kafka, se ela é o objeto da reflexão momentânea, e também, participa com facilidade do rol das personagens que nos desagradam logo na leitura das primeiras linhas, é a estruturação das razões textuais no discurso do narrador que pode operar um registro de denúncia de sua inadequação real –, pois, sem ser criminoso de qualquer acusação precisa (só sabemos, ao certo, que ele irrita a moça diminuta), isso bem não significa que o personagem-narrador não seja culpado de outros crimes nos quais a pequenez moral e circunstancial dela apenas influenciem um caminhar existencial também problemático. Se o conto de Kafka é por demais bem escrito, preciso em prudência de refletir, a redução da mulher pequena a seu próprio tamanhinho, por meio das letras, é obviamente uma estratégia de composição singular. O que bem pode comprometer aquele status de pensador coerente, tolerante e racional com que o narrador tenta se apresentar.  

Conto breve em que só o narrador articula o encadeamento das ideias, a temática concreta até pode confundir, se o leitor cair em uma das duas armadilhas de interpretação mais fáceis, que permeiam a superfície das artimanhas dessa estratégia particular de narrar. Esse personagem principal que admite ser vítima de uma raiva incompreensível de uma mulher pequena não está, em hipótese alguma, escrevendo e narrando em regime de confissão. Não existe ali registro de redenção espiritual, social, comunicacional ou civilizatória. Nada aponta que um apelo a entidades superiores ou inferiores, por admissão de uma qualquer culpa de ocasião, possa solucionar o caso. O narrador não recorre a espíritos quaisquer como também não encontra solução em imperativos éticos, descarta a racionalidade comunicacional da mesma maneira que não obedece conselho de amigo, e sua atividade de escritura, então, parece não estar buscando aprovação de ninguém.

Além disso, também nada nos permite buscar um entendimento completo, global, dos motivos e causas para esse relacionamento desastroso descrito; a fala no texto não é partilhada, se bem que intuída em diálogos hipotéticos, pois, nesse conto singular parece ser a vez dele de gastar tempo no assunto. A mulher pequena, nesse conto, também não tem voz porque se trata antes de uma incomunicabilidade unilateral, é ela quem não conseguiria, por excesso de incômodo e repulsa, falar abertamente com o narrador e, portanto, tudo que lemos no texto é relato do modo particular com que um personagem-narrador lida, administra, reflete, esquece e pensa naqueles problemas diminutos de dia-a-dia que a pouca estatura pode proporcionar –, como se escrever lhe trouxesse a lembrança, só por ter que gastar tinta, que pessoas menorzinhas também existem no por aí. Talvez a mulher diminuta não consiga falar diretamente com o narrador por um asco primordial que lhe faria muito mal, mas, a hipótese simples de que pertencem a linguagens diferentes também é possível: não se entenderiam simplesmente porque ao olharem para as coisas do mundo não buscam os mesmos sentidos na biblioteca do encéfalo. É bom lembrar que mesmo o suicídio do narrador, um fim mais brutal para a história toda, não teria o mesmo significado para cada uma das partes em disputa. Nem a morte parece que os irmanaria em proposta compartilhada de significação.

 E se nas estruturas típicas de montagem de arquitetura de opressão, Kafka sempre se posiciona do lado dos oprimidos, sempre, como o ódio está na cabeça da mulherzinha que cerca de aborrecimentos e tenta enquadrar o personagem principal, a narração também pode se posicionar, no âmbito ensaístico, como uma tentativa de liberdade proposicional. É ele quem fala no conto, mas a exasperação máxima que ela sente, meio violência, meio mal-estar, bandeira de luta, ocasião de berrar é que o oprime como personagem, e de fora do texto, ela parece rondar o escrito, pronta para mostrar que tem razão no caso todo somente porque o narrador irresponsavelmente a deixa fora de si. O que seria até aceitável, por certo, se ela fosse o centro do mundo a quem todos deveriam exercer estilos de vida somente com o propósito de a agradar.

Pois o texto também é um reclame por uma vida livre e o narrador nunca esconde nos argumentos que a mulher pequena o cerca pelas cadeias feitas de grades de aborrecimento, incompreensão, impaciência e preconceito; e toda a desproporção própria ao caso não é maior, talvez, porque ela também não consegue sair da prisão feita de raiva que construiu para outra pessoa. Se a atribuição que ela lhe configura é a de culpado, um bandido de menos violência física está preso nas celas da incompreensão, enquanto do lado de fora pronta para a violência, mesmo aquela feitas de gritos contidos de desaprovação universal, a mulher pequena ronda toda cena com ares de polícia.

Enquanto ela espuma e baba de raiva, e com razão, ele escreve, mas só para tapar com a mão aquela obstinação mais doentia. Certamente, que essa ação bem pode reduzir seu campo de atuação pela cegueira voluntária, o fechar os olhos com uma única mão, pois no todo e em parte, as imagens que ela providencia para o recordar do ódio patológico que ela nutre são múltiplas, se bem que parecem começar com aquele “sorriso amargo” que rapidamente se transforma em “tremor de indignação”.  

Se cada pedacinho da existência do narrador incomoda uma qualquer coisa na mulher pequena, o que não reduz a raiva, mas a posiciona até mesmo nas dimensões infinitesimais, certamente ela ainda elaboraria um reproche por ele narrar (talvez, até pensar...) a coisa toda por via escrita. É claro que ele seria culpado, de antemão, somente por se expressar do único jeito que consegue, pois a insensatez que orienta o ódio universal da pequena mulher sequer permitiria ao narrador, que descreve sua estupefação, deslocar o caso todo para o regime formal que ele bem queira. E se antes de escrever o que o personagem narra e nos confidencia, ele já era culpado por ser quem era, podemos supor que letras bem feitas no corte preciso do estilo, formas do escrever que parecem indicar uma lógica de navalha do narrador, incomodariam a mulherzinha em mais de um plano existencial.

É bem possível que o narrador escreva bem de propósito. Talvez menos para provocar a ira infinita da mulher menor, mas para demonstrar que como contraponto daquela torção física que a leva a grunhir como animal, ainda é possível o pensar ritmado da razão. A exposição direta e por argumentos que o personagem que narra refuta e reposiciona no colo da mulherzinha que virou bicho toda a problemática, bem pode indicar um modo faceiro de sublinhar sua opção voluntária por continuar a ser um homem.

O narrador nos avisa que tudo nele parece contrariar o sentido de beleza, o sentimento de justiça, os hábitos, as tradições, as esperanças daquela mulher feita de ódio. Mas, se não entende os motivos do sofrimento dela, não é por discordar da estética, da ética, da fala, do dia-a-dia e mesmo dos sonhos que ali têm lugar, e o caso todo se potencializa ao nível do sequestro de sentido porque não há nenhuma relação entre os personagens que autorize a mulherzinha a pensar, odiar e sofrer por um homem que a incomoda tanto, mas que da vida dela parece não ter qualquer espécie de participação.

A tática de Kafka aqui é precisa. Sem um passado juntos, porque o narrador desconhece os motivos que originaram aborrecimentos, sem um futuro brilhante em que uma solução de compromisso encerre a causa, o presente, aquele espaço comprimido entre aporrinhação do olhar que reprova e a surpresa pela existência efetiva de personagens menores, perde significação temporal. Sem passado, não há construção de uma história; sem esperança, não haverá um futuro: Kafka circunscreve o tempo da mulher pequena na vida do narrador como as ocasiões próprias de um mero instante feito de continuidade perpétua.  

E tudo fica ainda pior, se o regime é o de ódio, quando o personagem quase que admite, inclusive, que escreve e pensa na coisa toda só para gastar o tempo, um nada para fazer, porque a solução do caso é dada logo no segundo parágrafo: é preciso que ela esqueça da existência dele. Tal esquecimento talvez colocasse o relacionamento estranho em equilibrio porque enquanto de um lado, o da pequenez, o funcionamento é a operação do desgosto em diversos níveis, o outro lado, o do personagem principal, sequer se interessa mais em compreender as motivações, os atos, as falas que irritaram a diminuta mulher ao ponto dela levar a vida em regime de revanche.

A desproporção é notória. O narrador pensa pouco na mulher pequena, e, após construir o texto, tomou decisão típica de indiferentes; ela, por outro lado, parece que só consegue garantir notoriedade existencial ao demonstrar como ele é culpado de crimes gravíssimos, cuja maior característica é a de simplesmente serem feitos de ações que ela desaprova prontamente.  

Sem procurar os signos que apontam para uma explicação da conduta da mulherzinha, o que resta é apenas incomodá-la menos, depositando seus desvarios no baú dos mistérios que ela inventou para provar que o narrador é um culpado do crime maior: na sua existência livre, ele simplesmente a atormenta demais.

E quando o personagem principal admite que nem o silêncio, nem um agrado, que nada, no fundo, demoverá a mulher de expressar a dor que ele não provocou certamente por amor, percebe, no entanto, a sua responsabilidade parcial no assunto em pauta porque entende e posiciona as preocupações máximas da mulher pequena no estatuto próprio do que lhe é completamente irrelevante. Tudo leva a crer que ele não guarda no bolso um rancor porque sequer sabe onde encontraria tal sentimento por ela e, pelo contrário, chega a admitir que receberia essa mulher, talvez na sua própria casa, muito bem.

Porém, ao privilégio de uma indiferença existencial que o personagem principal se vangloria perante a mulherzinha, corresponde, inversamente, o olhar de desaprovação, repleto de reprovação moral de quem enxerga o outro como um ser errado, fustigando-o de raios de culpa –, uma troca de olhares feita de estranheza.

Pois se ao olhar para a pequenez  ele não vê coisa alguma, nem um quase dentro do possível, e mesmo quando pisca nada acontece, porque aprendeu a piscar bem por piscar de propósito, o olhar que ela lhe atribui quase irradia “chispas brancas” e comprometem uma existência inteira porque o colocam sob a lógica daquelas categorias básicas de julgamento próprio de gente menor, a moralidade de sempre das pessoas que adoram apontar alguém com o dedo, a ética que funciona unilateralmente, o senso de justiça que não se permite ver com os olhos do outro, ou seja, todas as fórmulas pré-fabricadas de operação da mediocridade moralista que o narrador certamente não compartilharia por decisão espontânea.

Permitindo-se um princípio de bondade que lhe é próprio, o personagem principal até parece se compadecer das lágrimas de cólera, das alterações corporais, dos sofrimentos gigantescos que ele parece provocar nela. E tudo fica até mais estranho porque ao meio de sua indiferença profunda perante a mulherzinha – a relação entre eles existe apenas do lado dela –, apesar dela parecer se ocupar exclusivamente da vingança de tormentos que a existência dele proporciona, o narrador até se pergunta se não poderia fazer nada para ajudar a mulher que não o suporta. O problema que ele enfrenta tem tamanho, e é feito de baixeza, mas, ela parece precisar de alguma forma maior de amparo. E já não sabemos, ao certo, se o que a irrita no ritmo da demasia não é um infeliz modo dele ser que não pode evitar, por ter nascido com ele, e que consiste em “sussurrar uma mansa exortação a quem está fora de juízo”, ou se esse tormento todo, com a adição da possibilidade por ele sugerida de que a receberia bem, não seja mais uma daquelas circunstâncias que a enlouquecem mais ainda de raiva, porque esse narrador parece atuar sempre do mesmo jeito com sua eterna incorrigibilidade.

No meio das manias que parecem determinar a ação dos dois, o apelo ao tribunal público seria uma solução se, na verdade, ambos não se desgastassem mutuamente perante o imaginário popular. E quando ele admite que pode ter um desconto de culpabilidade por sua posição social também percebe que a acusação é frouxa porque implica mais a mulher pequena do que ele mesmo: é ela quem odeia e que tem crises, vez ou outra, de não dominar o corpo que estremece por espasmos físicos advindos de impulsos de raiva.

Assim é que a publicidade total é bem um transtorno, a acusação total de culpa do narrador reflete na existência da mulherzinha reclamona que não gosta de ser contrariada, e a trajetória da ameaça constante que ela sinaliza em avisar o mundo de que o narrador a aborrece, tanto a implica quanto a explica – e o vexame de ser pessoinha pequena talvez transbordasse o copo cheio. Nem todos observam o mundo com porrete de polícia na mão.

A armadilha criada para pegar de jeito o narrador também pode comprometer o próprio estatuto do aborrecimento dela. Pois mesmo no caso limite em que ele se suicide, tal opção de caminho não será, nem assim ainda, uma solução para a questão toda. Pois é com percuciência que o narrador sugere que, em um caso como esse, ela também teria ataques de fúria sem limites, pois, nada que possa vir dele pode garantir alguma espécie de felicidade. Espumas de fúria substituem sorrisos mesmo em mortes desejadas se o regime de morrer se negar a pedir autorização.

Uma vez que a vida do personagem principal é, só por existência, motivo de atribuição de culpabilidade, desgosto profundo, nojo corporal, também sua morte é um evento insuportável, no mínimo, pela originalidade de um modo de ser livre que ela não pode controlar.

*

O texto que começa por caracterizar a mulher pequena e que terminará por uma decisão pela inércia do narrador com relação aos ataques de reproche que ela lhe envia pode ser um pouco mais espinhoso do que o narrador aparentemente finge no seu divagar.

É preciso que o leitor esteja atento para um certo modo de pensar feito de coerência e prudência, um narrar por argumentos e hipóteses, que disposto em texto não é, talvez, menos violento que as reprovações e transformações corporais com que o narrador descreve a mulherzinha.

O narrador é por demais astuto na descrição das alterações corporais que a sua mera visão proporcionam na mulher pequena. Assim: o “rosto azedo”, “os lábios franzidos rabugentamente”, “o olhar inquisidor de quem já conhece o resultado antes do exame”, o “sorriso amargo”, o “olhar de lástima que eleva ao céu”, um “empalidecimento”, e um “tremor de indignação” vão compondo, em corpo e vontade, a estruturação de mulher menor.

O narrador descreve a pequena rapidamente, é hábil nisso. E uma mera contraposição de duas formas de representar o desajuste, talvez explicasse mais do que toda ordem de argumentos: enquanto a mulher diminuta posiciona as “mãos que se plantam nos quadris para adquirir firmeza”, o narrador pensa-escreve em voz alta, “...pois a questão para mim é pequena vista de fora – a um nível um pouco inferior à verdade.”

Curiosa maneira de aliciar o leitor.

Enquanto a mulher pequena coloca as mãos no quadril por não gostar de ser contrariada e sentir uma indignação imensa contra o mundo só porque o narrador existe, o narrador pensa a questão “a um nível um pouco inferior à verdade”. Enquanto ela faz pose de caprichosa no instantâneo das letras, o narrador pondera sobre os níveis de verdade do imbróglio todo. Tudo se passa como se ao narrador fosse dada a ação pela razão, e à mulher menor, a ação pela vontade.

Uma questão, então, começa a se esboçar sobre o próprio estatuto de verossimilhança do texto. Pode ser que o escrito, em sua progressão racional, frase após frase, tenha inclinado o narrador à decisão pela inércia: portanto, se assim for o caso, deve ser jogado no lixo porque já cumpriu seu papel. Ou, pode ser que o o narrador tenha escrito o texto após a resolução de tapar os olhos para as maledicências da mulher pequena. Nesse caso, talvez, possamos compreender os modos como o narrador irrita tanto a existência da pequenez, pois tendo decidido não fazer nada e viver calmamente à título de inércia, ele ainda produz textos, a partir do método de se fingir de morto.

Apesar de não haver outra designação para a mulher, ela é simplesmente pequena e nada mais, sobrariam, não obstante, duas opções para enquadramos esse narrador: ou ele desistiu de confrontar a baixeza e o texto foi para o lixo, ou ele assumiu um cinismo pós mortem e está perdendo, aos poucos, estatura.   

*

            O conto que é quase ensaio, ou um pensar em voz alta, uma progressão do processo de tomada de decisão, parece ser feito de menos movimento. Quase nada acontece de fato entre as primeiras linhas e o final previsível que emolduram o relato. O recheio do texto opera pela dialética formal entre os espasmos da personagem que odeia, mas não tem voz, e a esquiva de quem não está nem aí, mas se propôs a escrever. Algo entre a baba que escorre nas espumas da indignação e a letra pretensiosa de quem pensa para se entender. Mas se tudo começa no registro do conto com “É uma mulher pequena...”, outro dado logo ali na primeira frase pode denunciar também a repetitiva e reiterada obstinação com que a mulherzinha prossegue em regime obsessivo de pensar na vida de outra pessoa: “...vejo-a sempre com o mesmo vestido...”.

            A imagem, truque da escrita precisa de Kafka, é boa demais para ser desperdiçada.

Pois engole os símbolos do ódio no tédio da repetição do formato de sempre, a mesma proposição a se mostrar toda hora na orquestração dos índices do tormento. Se as vestes são as mesmas que recobrem o corpo, uma aposta na fantasmagoria inerente à repetição bem poderia atrapalhar pensamentos mais débeis, mas, de maneira mais simples, a pequenez dela pode ser tão pronunciada que a falta de imaginação a obriga às rotinas de sempre, o eterno fazer do mesmo o mesmo. O vestido ainda garante, no entanto, que não aparecerá nua quando for o caso de tentar desagradar o personagem-narrador. Sem roupas de cobertura da nudez, dimensões mais frágeis se pronunciam, e as regras do jogo podem mudar inadvertidamente.

Em regime de pele à mostra, ninguém é ingênuo porque todo mundo tem alguma culpa que sugere vergonha.

            Mas, pode ser que ela não troque de roupa por preguiça. Ou, que use a indumentária para deixar claro ao narrador quem é ela, a todo momento. Ou, talvez a vestimenta repetitiva faça parte da esperança de que ele se lembre dela, em todas as ocasiões, do mesmo jeitinho – e o vestido de sempre, o modo de se apresentar, o caimento do tecido no corpo possam denunciar, às avessas, que a mulher que é pequena tem ilusões mais soltas e inconfessáveis do que se permite admitir.

*

Se o narrador apenas recobre com uma das mãos o problema todo, como decide no último parágrafo do conto, isso não garante que ele ainda não o enxergue parcialmente por entre os dedos, e tudo indica, no regime de armação do conto, que ele se finja meio de morto, uma quase inércia, porque teme se diminuir ao tamanho dela. A mediocridade pode paralisar, sim, quem tem outras propostas de invenção de si mesmo. Uma conclusão e tanto. Uma vez que todo esforço de escrever o seu relato opera em regime de displicência, mas de mínimo de elegância e ordenação racional, sua análise do incômodo a partir da subtração da incomodada (que não tem voz), perderia muito em estilo se o personagem também pudesse, formalmente, ser acusado de pequenez. Assim, o narrador parece, em leitura atenta, quase admitir que por dentro da tessitura do escrito, na operação clássica que o singulariza e que verteu brevemente para a letra do texto, desejou, mesmo que momentaneamente, no tempo de um piscar de olhos, um bem-estar autêntico para a garota que se diminuiu por pensar nele demais.


domingo, 10 de novembro de 2019

Vídeo de apresentação do canal Conexões




O canal #Conexões é um espaço de análises, interpretações, digressões, explicações – um modo de amarrar as Humanidades e a Arte em suas mais diversas manifestações –, protagonizado pelo filósofo #RodrigoSuzukiCintra. Também é lugar de inventividade solta, debates de ocasião e blefe de cálculo. Com temática variada, mas sempre a partir de chave cultural crítica, é um canal aberto aos comentários e refutações dos espectadores. Participe, se inscreva, comente e compartilhe. Novos vídeos, semanalmente. 

Coringa | Rodrigo Suzuki Cintra | Conexões 1




sábado, 26 de outubro de 2019

Dois Poemas de "Geometrias de Cosmos", livro de Rodrigo Suzuki Cintra




Dois poemas de Rodrigo Suzuki Cintra

ainda assim
arriscar um poema que não
seja cálculo
que a forma
fosse subtraída
como em um assalto
de próposito
só impulso
de pensamento
um fluxo
de algo que surge
como o que é inexplicável
meio sem querer
todo desejo
de escrever poesia
sem tempo ou espaço
é cartada sem curinga
como um blefe
de caso pensado
em todo verso
existe a necessidade
de morte
das ideias que surgem
como do nada
oportunamente
apenas aquilo que é
espontâneo
se destaca se o caso for separar
de si toda forma de eu
como um bilhete de suicida.

réquiem para um poeta vivo[1]
para Tico.
Poeta, coveiro, suicida: homem.


Embora palavras
não passem
de nuvens
ainda que
formatos indeterminados
do imaginário
discordem tolos
teimam contornos
meramente sugestivos
fugidios da
primeira arquitetura
*
dos símbolos

também agulhas
 podem ser
 pois picam
alfinetam juízo
coçam por
dentro a
tragédia infinita
anunciado assassinato
no texto
difícil do
golpe arriscado
*
da escrita

talvez lápides
obras invisíveis
mas sempre
vermelhas como
vírgulas suicidas
do mergulho
do ferrão
certa loucura
mistura nariz
de palhaço
no veneno
*
de escorpião

pudera conceitos
dessem conta
enquanto letras
que enterram
a música
interna do
sentimento quando
silêncio um
grito pressentido
acorde final
ferroada poética
*
de marimbondo

naqueles signos
construções narrativas
onde veículos
fatais se
movem sempre
ou nunca
via contramão
o caso
daquele homem
argumento de
si mesmo
*
do não

nas imagens
sempre algo
de morte
estrutura a
nebulosa arte
do sonho
ressignifica mundo
num blefe
o último
da forma
dialética
*
de vagabundo




[1] [1] Esse poema foi escrito como crítica cinematográfica ao filme “Ferroada” de direção de Adriana Barbosa e Bruno Mello Castanho.





Palestra na Escola Paulista de Magistratura


"Kafka e a Filosofia Crítica do Século XX", por Rodrigo Suzuki Cintra





sábado, 10 de agosto de 2019

O Reconhecimento Infinito, 1963 (Magritte) Ou Pai e Filho




I

         Pois também existe aquela história do jovem poeta que teve como guia o velho poeta pelos caminhos do céu – o segredo era interpretar as nuvens mais caprichosas, as que não se assemelham a objetos ou coisas concretas, buscando formas que parecessem com sentimentos.
         A saudade era fina, mas era longa em extensão, e eles demoravam muito tempo para conseguir percorrê-la por completo. Às vezes, uma saudade era tão longa que eles desistiam no meio do caminho e tomavam outro rumo para continuar a atividade de sentir as nuvens e compreender suas peculiaridades.
         O ódio não era exatamente branco como as demais nuvens. Existia algo de cinzento nele. Era um tipo de nuvem que se podia perceber à distância e que causava uma impressão particular. Destacava-se entre as demais e era responsável pelas tormentas mais violentas.
A paixão se assemelhava, curiosamente, ao ódio. Também era responsável por fazer a terra estremecer, mas tinha algo de momentâneo, não se fixava por muito tempo no horizonte, e se dissipava com a mesma facilidade e violência com que havia se formado. Era um tipo de nuvem de um quase-vermelho muito leve, apenas matizado, e lembrava a face de alguém ligeiramente envergonhado, mas que conseguia evitar que a maioria das pessoas percebesse seu rubor. Era quase que apenas a sugestão do vermelho.
Já a dor era reconhecível por ser de um formato menos uniforme, tinha várias saliências, pontas, recortes: não era sempre da mesma maneira que se apresentava aos olhos e a mutabilidade de suas bordas era sua característica predominante. Não era à toa que podia se disfarçar por outro sentimento, sendo, por vezes, muito difícil de identificá-la: era preciso olhos treinados para não se deixar enganar e tomar essa nuvem por outra.
Existia uma forma de nuvem que raramente aparecia no horizonte. Delgada e curta, ela também era menos cheia que as demais, de uma brancura que apenas manchava levemente o céu azul. E mesmo os poetas que caminhavam entre as nuvens e tinham o costume de identificá-las, às vezes, podiam passar por essa forma sem reconhecê-la propriamente. Deram o nome de remorso para ela e começaram a perceber que muitas vezes ela se formava após a dissipação de uma nuvem de paixão ou de ódio.
Mas, a mais difícil nuvem de se identificar era aquela que continha o amor. Ela podia ter qualquer formato. Podia se apresentar de qualquer modo e se formava e se dissipava sem obedecer a muitas regras. E o mais curioso é que, ao contrário do que pensam os não-poetas, esse tipo de nuvem aparecia com muita frequência.
A respeito dessa nuvem, os dois poetas discordavam sobre a melhor maneira de identificá-la.
O velho poeta argumentava que para distingui-la era preciso sempre deixar o tempo passar. Ela não se estruturava apenas no espaço, era uma nuvem de temporalidade mais vagarosa e se relacionava diretamente com o brilho dos astros. Ela cobriria o sol e sua mais importante característica seria que quando ela terminava de passar por esse astro, ele brilharia de uma maneira completamente diferente: tudo parecia se iluminar, a luz inundava todos os lugares e as coisas podiam ser vistas de um modo mais verdadeiro. O velho poeta acreditava que a nuvem do amor era aquela que tornava possível uma explosão de luminosidade após a sua passagem.
O jovem poeta, no entanto, achava que conseguia identificar a nuvem do amor através de um outro recurso. Não era exatamente o formato das bordas, a coloração, o preenchimento, a potência de chuva, nem mesmo o brilho do sol depois que ela passava. Nenhuma dessas características tomadas exclusivamente podia apontar para a nuvem do amor. O amor era um pouco de saudade, um pouco de ódio, um pouco de paixão, um pouco de dor e um pouco de remorso. Era uma nuvem contraditória em si mesma. Fina e longa era, ao mesmo tempo, curta e disforme. Cheia e pronta para a tormenta era apenas uma mancha no céu azul. Levemente colorida era extremamente branca. Era responsável pela luminosidade mais ampla e pela sombra mais escura.     
Como isso poderia ser possível, o jovem poeta não sabia obviamente explicar. Talvez a resposta fosse que todos os formatos de nuvens que representam os sentimentos tivessem, no fundo, uma mesma origem. Ou que tivessem uma mesma finalidade. O amor poderia estar no começo ou no fim de todos os sentimentos. O que o jovem poeta tentava defender era que, de qualquer modo, nenhuma das nuvens tinha um real significado se não tivesse no fundo, mesmo que só de passagem, um pouco do amor. Todas as nuvens eram feitas da mesma matéria. Era uma certeza estranha. A de que todos os sentimentos que possam existir nesse mundo eram, na verdade, apenas breves momentos de uma nuvem de amor infinita.  

II

         Não estando propriamente mortos, os dois homens se encontram em meio aos sonhos. O cenário é com frequência o mesmo: os céus. E o caminhar é sempre para frente. Vez ou outra, é preciso desviar das nuvens mais carregadas.
         A conversa, no fundo, também é sempre a mesma.
         O homem mais velho, o que usa a bengala para auxiliar no andar, quer convencer o mais novo, o que fala sempre gesticulando, que seu lugar natural é ali, no azul do céu e na brancura das nuvens: um infinito plenamente luminoso e verdadeiro.
         O homem mais novo, no entanto, conhece seus próprios abismos. Sabe que estar ali, andando entre nuvens, não é sua condição natural. Reconhece que está sempre a um passo de cair em uma escuridão profunda. Talvez quisesse simplesmente acreditar no homem mais velho, porém, aprendeu a desconfiar prontamente de si mesmo e admite que anda sempre no limite, sempre em uma quase queda.
         E o pior.
         Aprendeu, com o passar do tempo, a gostar do abismo.

III

Como explicar esse universo de significados: a sensibilidade em pintar a conversa mais verdadeira, a adequação em localizar nas nuvens esses homens tão iguais e tão diferentes, a técnica de deslocar os personagens para justamente centralizá-los, a capacidade de fazer das ocasiões do branco algo de carinho, a presença dos chapéus como símbolo do encontro e a musicalidade profunda do azul como manifestação da futura saudade?   
Talvez, seja porque se trata de uma beleza plena que está para além de qualquer temporalidade, que sobreviverá ao depois do depois – de algum modo, foi possível pintar aquilo que os homens mais sensíveis nomeiam de uma forma abstrata, mas que é precisa: sinceridade.  

IV

         Na escolha das cores, nos matizes mais suaves, na leveza dos personagens, no senso de proporção.  
O contraste entre o azul do céu e o branco das nuvens: infinidade.
         O cinza da condição humana, levemente deslocado do centro da tela: brevidade.
         Uma imagem que não é uma representação, apenas sugere algo entre a infinidade e a brevidade: a pintura mais poética de todo surrealismo.

Cabide, 1920/21 (Man Ray) Ou Medo de Brinquedo




         Uma mulher por trás de uma boneca de cartolina.
         À primeira vista, pode-se pensar que se trata de uma colagem, mas, o exame mais detido evidencia que é uma fotografia.
         É importante perceber, nesse caso, que se trata de uma fotografia. Pois, inadvertidamente, é uma imagem que causa impacto por suas ambiguidades, por sua improbabilidade extrema enquanto um instantâneo do real, por uma estruturação do elemento que se pretende representar radicalmente misteriosa.
         Não há como não sentir algo de perturbador na imagem.
Sua incompletude, seu modo de mesclar o corpo humano com a cartolina, um modo de representar o feminino que se dá estranhamente entre o que se vê e o que se esconde, o que está na frente e o que está atrás, tudo ali provoca incômodo.
         Não é exatamente o fato de existir potencialmente uma mulher por trás da cartolina o que causa essa sensação particular. Tampouco é a cartolina à frente da mulher que induz a certa rejeição. É a fusão desconcertante entre o que é vivo com o que não tem vida o que nos deixa perplexos. Pois, nossos olhos se alternam, demasiadamente e sem autorização, entre o corpo nu e a boneca de cartolina. E é nos momentos em que se percebe esses dois elementos em conjunto que ficamos completamente estarrecidos por estarem escandalosamente em uma pretensa harmonia na fotografia. Ali, a tensão entre o orgânico e o inorgânico obriga a buscar significados e estabelecer conexões de sentido de modo a tornar possível suportar essa composição absolutamente inusitada.
A sensação geral, ao olhar para obra, é tão particular que, apesar da modelo por trás deste singular cabide estar nua, deixando à mostra os seios, o sexo e seus contornos curvilíneos de mulher, não sentimos qualquer espécie de ímpeto sexual.
Alguma coisa na fotografia inviabiliza o desejo.
         O recorte da cartolina que acaba por representar os braços, os ombros, a cabeça com olhos, boca e cabelos de uma boneca pode parecer, inicialmente, uma representação mais infantil, porém, no entanto, é perturbador demais para ter sido feito por crianças. 
         A boca desta boneca é demasiada pequena e, se somar isso à ausência de nariz e aos cabelos desenhados de um modo singelo, temos um rosto de boneca quase que esquemático. É claro que os olhos completam a equação da face particular da boneca de cartolina. Muito abertos, dão a impressão de olhar diretamente para frente e além. É um olhar por demais profundo, é bom que se diga, e parece, inclusive, trespassar a estrutura da fotografia e enxergar o próprio sujeito que está a observá-la.
Por certo, o cabide vertical que sustenta a estrutura de cartolina garante que a imagem pareça não ter movimento. Além disso, a brancura do corpo e da cartolina contrasta com o fundo da fotografia que é profundamente negro. Essa escuridão é um truque de luz e, ao mesmo tempo, é contagiosa. De algum modo, absorve parte da perna direita da modelo. E ficamos sem saber ao certo se a perna foi apenas sequestrada pela lógica da escuridão do fundo da imagem, ou se a modelo já não tinha esse pedaço do corpo desde o princípio.
A cartolina disposta à frente do rosto e dos ombros da modelo esconde completamente o semblante da mulher real, funciona como uma máscara, e tem traços de boneca inerte que contrariam o corpo vivo e em evidência do resto da composição.
Porém, sequer é possível dizer, seguramente, para falar a verdade, que a boneca de cartolina é que encobre a mulher real. Talvez o rosto e os ombros da modelo também não apareceriam se o caso fosse o de retirar a boneca de cartolina da sua frente. Tal qual a perna pela metade, nada garante a completude da modelo acima dos seios. Pode bem ser que se encontrasse escuridão também por trás do lugar que a boneca ocupa na fotografia.
Esse é um tipo de pensamento coerente com a lógica interna desta fotografia, não há dúvida, mas, profundamente improvável para falar a verdade.
Porém, não são essas possibilidades que causam a sensação mais estranha quando se trata de observar atentamente a lógica da foto. Existe algo na estruturação dos elementos internos dessa representação que provoca, inadvertidamente, um pouco de medo.
Pode ser que essa sensação se origine em um movimento de nossa imaginação. Se pudéssemos retirar a boneca feita de cartão da frente da modelo e assim fosse possível enxergar a mulher por completo, em toda a sua vivacidade, com pernas, sexo, seios, ombros, pescoço, boca, cabelos, ela seria uma pessoa real, alguém que efetivamente pertence ao mundo. Ou seja, tiraríamos da fotografia seu caráter mais inusitado e a reduziríamos a uma mera representação singela de uma modelo.
E todo problema, o que nos aflige nos momentos em que deixamos a imaginação correr solta, consiste no fato de que, mesmo tendo sido retirada a boneca da frente dela, como a retirar uma máscara, essa mulher por trás da cartolina, estaria, inevitavelmente, a olhar diretamente para o espectador, ainda com aqueles olhos inertes de boneca.  
E a dúvida que apareceria, se assim fosse, não seria mais a proposta da foto (o que há de mulher por trás de uma boneca), mas, inversamente, o que há de boneca por trás de uma mulher: um pouco de morte.

O Mundo Perfeito, 1962 (Magritte) Ou As Cores do Mistério






I
  Um quadro singelamente bicromado: azul e branco, sem dúvida. Toda a astúcia da tela, que é um jogo de enganar, consiste em posicionar o olhar a partir de uma dessas cores. Sobrepostas, elas dão a impressão de profundidade à lógica de uma estrutura paradoxal. E somos tentados, constantemente, a determinar qual das camadas corresponde à verdadeira imagem de um céu que se desdobra e se reproduz a cada novo lance de olhos que empreendemos para tentar compreender a coisa toda. Pode ser que realizar um olhar a partir do azul garanta algumas certezas. A diferença de tonalidade dessa cor nos elementos que compõem a pintura certamente ajuda a identificá-los e, se isso não proporciona a descoberta de alguma verdade radical sobre a tela, pode auxiliar a delimitar os problemas que um intérprete pode encontrar pela frente. Pelo menos os problemas decorrentes do olhar azul, como podemos chamar. O chão, a parede e a cortina são plenamente identificáveis, possuem tons de azul diferentes, mas um rouba a cena do outro. Pensamos constantemente em que lugar, em qual destes elementos, está o verdadeiro céu. Um céu que pode muito bem ser impossível de se determinar, que é quase que apenas intuído, mas que invariavelmente não cansamos de tentar delimitar. Bem pode ser, no entanto, que sua função na tela seja outra – impedir profundamente que enxerguemos além. Obstáculos sucessivos a que olhemos diretamente para a imensidão do azul. O curioso, nesse sentido, é que eles são feitos do próprio azul cujo olhar inviabilizam. É possível, também, uma contemplação que privilegie a cor branca. Ela opera, nesse caso, de modo muito mais fugidio. Ao contrário do azul, feito de linhas retas, o branco é disforme e, além disso, espalhado pela tela em muitos lugares, mais mancha o azul do que propriamente se afirma como um elemento próprio. As diversas manchas, aliás, podem aparentar unidade em sua disposição aleatória, em seus formatos irredutíveis à geometria, mas, talvez, sejam plenamente singulares em cada uma de suas aparições. Se o azul é estático, o branco só se propõe nessa tela como movimento. Seus momentos são sempre de leveza. O branco pode estar na pintura de um modo absolutamente perceptível, determinado, de um modo que pensamos poder registrá-lo em nossa mente sem dificuldades. Mas, qualquer distração, qualquer desvio de olhar, tornará impossível enxergá-lo duas vezes do mesmo modo. As ocasiões do branco nos pregam peças e fogem do nosso olhar repetitivo. Cada experiência com essa tonalidade, que é quase que a negação da própria tonalidade, é única e, portanto, exige de nós, não concentração – o que de nada ajuda nesse caso – mas, uma forma de respeito toda particular. O branco pode não preencher o céu em todos os casos, sempre haverá dias sem nuvens, mas certamente é o que dá sentido ao céu que está para além do imenso, que inscreve seu registro para depois da finitude.  
II
  A maçã é verde, mas na verdade é azul. Disposta diretamente no chão, ela é um dos elementos azulados da pintura. Trata-se de uma maçã perfeitamente desenhada. Os matizes de seu azul são pintados ao nível do detalhe. Ocupando o primeiro plano da tela, ela projeta, inclusive, uma sombra que, como não poderia deixar de ser, também é azulada. Um azul quase que meramente sugerido, na medida em que as sombras têm por hábito serem negras. Ali, no espaço do azul que parece ser imenso, um azul que se aprofunda a cada olhar, a maçã se situa em posição estratégica. É a primeira camada da representação do céu. Ela, de certo modo, o integra e o inicia e sua função é puramente enigmática. Entendê-la é como que desvendar um segredo. O segredo dos céus propriamente dito. Isso é: uma metáfora. Todo céu é um mistério.  
III
  A maçã é verde, mas na verdade é branca. Uma nuvem branca estranhamente estática, avessa a sua própria natureza, com um formato peculiar de maçã, com cinco folhas esbranquiçadas num galhinho, e que contrasta com o azul do céu que quando olhamos muito fixamente parece curiosamente se mover. Todo branco lembra nuvens. Mas, quando se trata de nuvens propriamente, nunca podemos saber ao certo. Nuvens são sempre outras possibilidades de si mesmas. E os formatos dessas manchas no universo da composição da tela podem lembrar muito bem uma coisa ou outra. O branco é infinito a seu modo, de uma maneira um tanto caprichosa. Isso é: uma metáfora. Toda nuvem é uma metáfora.  
IV
  A imagem é muito bem desenhada: um círculo perfeito. Está disposta no chão azul, o que pode sugerir, num lance de olhos, a sensação de certa imobilidade. Sua inércia, porém, é algo duvidoso dentro da estrutura da pintura – pois sua sombra, mesmo que vagarosamente, provavelmente se movimentará. Mas, isso não é o que incomoda quando pensamos no assunto de maneira mais detida. O azul está em todo lugar. Só é interrompido por aquelas manchas brancas – as que podem bem ser nuvens, o que quer que isso signifique efetivamente. Um exercício interessante, no entanto, seria o de colocar o quadro de ponta-cabeça. Nada se alteraria verdadeiramente, se assim o fizéssemos, a não ser o círculo em primeiro plano. O azul e o branco continuariam com a mesma lógica de sempre e pode até acontecer de observadores desavisados nem perceberem a mudança. A pintura ainda estaria completa a seu modo – tudo se passa apenas no choque entre as cores. Mas, se assim fosse, a cor do círculo perfeito – azul ou branca – pediria maiores explicações. Seria o caso de pensar se, de fato, se trata de uma lua ou um sol, essas esferas que reinam nas alturas. E é claro que haverá sempre quem insista, sem maior sucesso, que a lua não é azul e o sol não é branco. O que mostra, no fundo, que muitos não conseguem nem determinar, ao certo, qual é a cor de uma simples maçã.  
V
  Por trás das nuvens do céu há cortinas que nos impedem de ver mais além. E todo o problema consiste no fato de que mesmo essas nuvens, vez ou outra, também são feitas de cortinas.