sábado, 13 de agosto de 2022
Geometrias de Cosmos
Nas geometrias de cosmos
não há harmonia dos
astros
nem estrutura misteriosa
de ordenação das pequenas
coisas
tudo é um compasso
de relâmpago
um estouro repente de luz
na brevidade
do escuro do profundo
a pele não tem sentido
de tempo
que não seja delicadeza
uma história não começa
no espaço
antes de ser saudade
toda a pintura é ainda
mais dor
pela tonalidade do
indefinido
os instantes teimam
um infinito
no silêncio do quase
e estou apaixonado
por alguém
pelo talvez das
possibilidades
Nunca olho para as
estrelas de madrugada
tenho o firmamento dentro
de mim
terça-feira, 19 de outubro de 2021
Quem tem medo do “Pequeno
Príncipe”?
Rodrigo
Suzuki Cintra
Quando
ele chegou, eu já estava ali escondida no fundo da sala. Os outros se
esparramavam pelas outras cadeiras e, sem me ver, ele começou a se arrumar lá
na frente para iniciar aquela espécie de homilia particular que inventou para
si e que apelidou formalmente de “aula”. No limite, uma espécie de masturbação
verbal que é exercida por homens cultos quando querem demonstrar poder pela razão.
Minha
presença era mais do que justa. Era até sagrada se ele levasse a sério tudo que
dizia quando afirmava que uma lição é um evento público e, depois daquelas duas
semanas que se recusou a falar comigo, também era um direito meu que ele
vislumbrasse meu aparecimento repentino em sua vida. No fundo mesmo, sabia que
ele ia amar me ver e que suas esquivas faziam parte do incompreensível jeito de
ser desses homens que, sobretudo, cheiram a masculinidades maiores a todo
tempo. Truque de pirata.
Esperei
começar a fala para me levantar e sentar na primeira fileira. Andei devagar
para que ele pudesse admirar o meu corpo enquanto caminhava, pois estava usando
o vestido preto de sempre e tenho certeza que quando ele viu a cena deve ter
sentido um pouco de tesão. Não existe outra opção de olhar para as mulheres
andando se o olhar é de um tarado, afinal de contas. Pois, eu sempre tive
certeza absoluta que quando ele olhava para qualquer mulher, tinha vontades
sexuais reprimidas. E quando ele negava essa conduta de machinho, percebia mais
ainda o cinismo daquele sujeito.
Tudo
bem que ele não hesitou no discurso quando me viu ali, uns 7 metros de
distância, mas ficava esperando que ele gaguejasse a todo momento. Eu bem que
ia gostar disso. Por alguns instantes, pensei que por causa de nossa intensa
paixão pregressa, ele fosse desistir da importância de falar sobre qualquer
outra coisa programada para a aula e começasse a falar comigo diretamente. Em
público seria melhor ainda porque eu tinha muita coisa a dizer para aquele
homem ridículo e todo mundo precisava saber o quanto ele me fez mal. Talvez
fosse uma boa ideia insistir naquela conversa que ele estava obrigado a ter
comigo, que ele me devia enquanto uma mulher que tem o que dizer, alguém que
sabe o que quer e tem o direito de se expressar. Estava disposta a ter essa
última discussão, a qualquer custo. Os telefonemas que eu fazia na madrugada e
as andanças pela vizinhança dele não estavam surtindo efeito. Ele nunca atende
o celular e quase sempre está fora de casa.
Como
suspeitei, ele havia deixado a pasta de trabalho na primeira fileira, perto de
mim. Esse tipo de homem confiante jamais suspeita que seus ex-alunos de tempos
longínquos vão entrar na aula e abrir a sua surrada pasta de couro marrom.
Lembrei que era a mesma ingenuidade que ostentou quando não percebeu que abri a
terceira gaveta da escrivaninha da casa dele enquanto ele dormia, às 3h da
madrugada, aquela que ele cuidava com segurança e não queria que ninguém
abrisse. Nada me impede de fazer o que eu quero e era altamente suspeito
existir um lugar particular interditado para mim na casa dele.
Que
espécie de segredo esse cara podia esconder?
Meu
presente estava embrulhado em papel azul e a fita era rosa. Conheço o homem e
sei que gostaria dessa estética. Coloquei dentro da pasta, lá no fundo, quando
ele se virou inocentemente para a lousa. Era uma edição de luxo de “O Pequeno
Príncipe”. Ele não tinha a obra no meio daquela biblioteca infinita e era
culpado, obviamente, de não ter lido um clássico incontornável.
Esse
recado ele teria que aceitar, ah, se teria!
Levantei
e estava quase abrindo a porta quando escutei no meio do palavrório dele uma
palavra solta: “princesa”. Ele deve ter percebido que eu ia sair e quis me
lisonjear, tenho certeza. Olhei para trás e ele estava de novo virado para lousa.
Abri a porta com som e fúria, demorei uns segundos por ali. Tenho certeza que
ele me olhou e admirou, deve ter sentido uma baita saudade da minha bunda, só
pode ser. Conheço o homem, fiquei com ele direto por sete semanas. E aprendi
direitinho quando ele disse, certa vez, que existe toda uma eternidade dentro
de um segundo.
domingo, 10 de outubro de 2021
O
Oscilador de Formatos de Nuvens
E entre a base e o
ocular, a semi-lente de engano finge também não ser feita de nebulosa.
Mede
as bordas das quase-arestas, pontas indecisas sempre [desagudas]: o Oscilador capta e calcula instantes
pelas margens das manchas. Função de detectar antes o que virá depois –
formatos duram na temporalidade própria [do talvez]. Certa nuvem branca sugere
a imagem e o observador de ocasião faz a hipótese indubitável sobre a girafa
perfeita, evidente, completamente visível na formação branca – todo desrespeito
ao azul infinito dura apenas a visão momentânea de um pescoço longo e quatro
patas.
Existe
uma floresta possível no céu.
Já
conheci quem jurasse que um bicho se transforma em outro, ali nas alturas, com
a mesma facilidade que se alternam nos passeios por alamedas de zoológico.
Um
gostar mais dessas pessoas, às vezes me ocorre.
Índices
de cidades grandes demais com seus símbolos de modernidade, sujeira e
incomunicabilidade são perceptíveis: Osciladores
captam carros, edifícios e mendigos ao chão com mais frequência [que pianos].
Nunca
soube de alguém que determinasse uma clave de sol ao olhar para o céu. Mas, já
sonhei com borrões claros que dançavam graciosamente sob o ritmo do fechar de
olhos.
Eu
sou bom de piscadela porque pisco de propósito.
E
nessa brevidade em que o olho titubeia que
lembro
do meu nome:
M.
Lovet.
É
ali no quando dos elementos que tudo fica escuro demais, e pode ser que o
estrondo da natureza nos recoloque em conexão com um silêncio feito de medo -, entre
episódios de pausa, nuvens carregadas de cinza provam a superioridade da
natureza. E as formas sempre voltam ao branco:
não
me sinto mal em nunca pensar em música sem inventar [um compasso]
O
Oscilador só está pronto quando o mastro triangular começa a girar em volta de
si mesmo. Ao captar os formatos de nuvens, sugere no painel em forma de flor as
próximas formas de nebulosa.
Gosto
de olhar para a flor de máquina porque ela lembra uma mãe caprichosa em dia de
domingo. Antes do almoço ela me deu bronca, mas a culpa era do meu primo.
O
Oscilador de Formatos de Nuvens é um
instrumento de possibilidades.
Composto
de lentes, no fundo, ele é feito do tempo da sugestão: os mais imaginativos dos
homens levam vantagem ao usar esse objeto de medição. Sonhar mais solto é privilégio;
nuvens não são feitas de nitidez. O estatuto de borrão dessas branquitudes
preenche significados nos sonhos de olhos abertos. [E tinha aquela história do
especialista em Osciladores...]. Enxergava
as hipóteses do depois do momento do agora das nuvens com tanta clareza –,
parecia até que comandava nuvens a se transformar. Aquela técnica de criar
coisas a partir de coisas.
E
eu o chamava de Metáfora.
Ele
gostava de chuva.
Como
instrumento sujeito às calibrações do olhar, a precisão do Oscilador de Formatos de Nuvens depende também de treino. Com o
tempo, se percebe o truque mais elementar das nuvens. Eu prefiro ainda guardar
no bolso direito da calça, o espaço em que controlo mistérios – Sentimentos! –
a matéria prima de que são feitas as manchas do céu. Estão nas alturas por isso.
Sereias
brancas significam perigo como violões não passam de fogueiras nas paixões
inventadas nos luaus na madrugada de areia na praia.
Uma
fumaça que não é nuvem me fez lembrar, agora, de quando eu não era feito de
tempo.
No
vai e vem de se transformar das nuvens, quando uma ideia começa a querer ser
outra, já vi muita saudade, e também ambição. Uma vez percebi de relance entre
um amor e um ódio, algo que não estava ali, nem aqui, o princípio do formato do
desprezo. Uma forma de medo, um tremor de corpo incontrolável: mas, podia ser
só uma imaginação mais doentia. Foi quando resolvi fingir que era só um remorso
levemente sugerido. Brancura indecisa entre o rosáceo e o gris.
Uma
terceira bocada no sorvete me fez ser um homem melhor.
Na
calçada resolvi descalçar o chinelo, não sabia de que lado ficava a praça,
então recalibrei meu Oscilador, olhei
para o azul do oceano às avessas lá em cima,
dancei
por 4’33’’ uns passos de tango sozinho
[sempre
com as mãos nos bolsos e sem fazer um único movimento] e enxerguei nitidamente um
tigre.
segunda-feira, 30 de agosto de 2021
O Mês das Vindimas, 1959 (Magritte)
Ou
Do Lado de Fora de Mim Mesmo
Existem dois homens iguais ao meio de cinco
homens iguais. Eles se vestem de preto.
Existem cinco homens iguais ao meio de
sete homens iguais. Eles usam chapéus.
Existem sete homens iguais ao meio de
onze homens iguais. Eles usam gravatas.
Existem onze homens iguais ao meio de
vinte e três homens iguais. Eles estão em pé.
Existem vinte e três homens iguais ao
meio de vinte e três homens iguais. Eles estão do lado de fora da minha janela.
Mas só um me incomoda.
A Galeria Invisível
Rodrigo Suzuki Cintra
Para minha querida Allegra, pois seu papai, com amor e muito carinho, deseja que sonhe sempre o impossível.
Para mim não existe diferença entre o
sonho e a realidade. Eu não sei nunca se o que faço é produto do sonho ou do
estado despertado.
Man Ray
É preciso ter uma ideia do que se irá fazer. Mas deve ser uma vaga ideia. Picasso
Loucura sim, mas tem seu método
Hamlet, Shakespeare
Existe um gênero literário clássico, uma
antiga técnica grega, chamado ekphrasis,
para muitos uma forma morta, que consiste em descrever uma obra de arte com a
maior exatidão possível, de modo a tornar factível a quem nunca a viu
efetivamente poder enxergá-la com os olhos da alma, como se estivesse bem na
sua frente. Há, nessa forma, um exagero de cálculo na descrição. Tratei de
compor os textos deste livro, que no fundo é um apanhado de fragmentos,
influenciado por essa maneira, se bem que por vezes me arrisque a narrar
histórias possíveis ou dissertar livremente sobre o valor de alguma obra
específica. Por se tratar exclusivamente de fragmentos que partem de ekphrasis de obras dadaístas e
surrealistas, conforme escolhi, certamente a lógica do real, imperativo típico
dos homens sem imaginação, cede a um modo de contemplação e composição um pouco
mais fantasioso e particular. Por certo que as descrições, as criações e as
argumentações que partem desses tipos de obras jamais poderiam ser fiéis
completamente se, de algum modo, não fossem ligeiramente malcriadas e não
estivessem no limiar entre razão e emoção, precisão e irreverência, sonho e
realidade.
Ensaio publicado na Revista Sibila (Revista de Poesia e Crítica Literária) em 23/08/2021 sob o título "Um conto de Kafka".
http://sibila.com.br/critica/um-conto-de-kafka/14163
Uma mensagem imperial, de
Franz Kafka
(O
conto objeto deste ensaio e pelo qual o texto se inicia está completo e foi
escrito por Franz Kafka. A tradução intitulada “Uma mensagem imperial” é de
Modesto Carone. Os comentários posteriores ao conto são de minha autoria.)
Rodrigo
Suzuki Cintra
“Quem
escuta uma história está em companhia do narrador; mesmo quem a lê partilha
dessa companhia.”
Walter Benjamin, O
narrador.
O
imperador – assim consta – enviou a você, o só, o súdito lastimável, a
minúscula sombra refugiada na mais remota distância diante do sol imperial,
exatamente a você o imperador enviou do leito de morte uma mensagem. Fez o
mensageiro se ajoelhar ao pé da cama e segredou-lhe a mensagem no ouvido;
estava tão empenhado nela que o mandou ainda repeti-la no seu próprio ouvido.
Com um aceno de cabeça confirmou a exatidão do que tinha sido dito. E perante
todos os que assistem à sua morte – todas as paredes que impedem a vista foram
derrubadas e nas amplas escadarias que se lançam ao alto os grandes do reino
formam um círculo –, perante todos eles o imperador despachou o mensageiro.
Este se pôs imediatamente em marcha; é um homem robusto, infatigável;
estendendo ora um, ora o outro braço, ele abra caminho na multidão; quando
encontra resistência aponta para o peito onde está o símbolo do sol; avança
fácil como nenhum outro. Mas a multidão é tão grande, suas moradas não têm fim.
Fosse um campo livre que se abrisse, como ele voaria! – e certamente você logo
ouviria a esplêndida batida dos seus punhos na porta. Ao invés disso porém –
como são vãos os seus esforços; continua sempre forçando a passagem pelos
aposentos do palácio mais interno; nunca irá ultrapassá-los; e se o conseguisse
nada estaria ganho: teria de percorrer os pátios de ponta a ponta e depois dos
pátios o segundo palácio que os circunda; e outra vez escadas e pátios; e
novamente um palácio; e assim por diante, durante milênios; e se afinal ele se
precipitasse do mais externo dos portões – mas isso não pode acontecer jamais,
jamais – só então ele teria diante de si a cidade-sede, o centro do mundo,
repleto da própria bossa amontoada. Aqui ninguém penetre; muito menos com a
mensagem de um morto. – Você no entanto está sentado junto à janela e sonha com
ela quando a noite chega.
Resumo
O
conto “A Mensagem Imperial”, de Franz Kafka, pode ser entendido a partir dos
posicionamentos em que os sujeitos envolvidos na armação literária (autor,
leitor, narrador e personagens) se situam para a interpretação do texto. Nosso
ensaio propõe que para além da interpretação de que o personagem imperador
envia a nós, os leitores, uma mensagem que nunca chegará ao destino, existem
outras mensagens em jogo na elaboração complexa desse texto. Sugerimos, em uma
segunda hipótese de interpretação, que o conto inteiro “A Mensagem Imperial”
também é uma mensagem, nesse caso de um narrador para nós, leitores. Também
indicamos a possibilidade do leitor, justamente por compreender as táticas
narrativas desse narrador perfeitamente, também poder se transformar no enunciador
de uma mensagem: a interpretação de sucesso. Por último, discutiremos a
possibilidade do autor, Franz Kafka, por meio do narrador em jogo, estar
mandando uma mensagem aos leitores em potencial do conto. Essas hipóteses de
interpretação de “A Mensagem Imperial” se situam nas fronteiras da literatura,
quando operam em regime de metaliteratura.
Kafka é um incansável analista do
poder. Poucos de seus textos não exploram dimensões dessa temática. Em “A
Mensagem Imperial”, o autor trata das facetas do poder na própria arte de
narrar, em mais uma obra sobre a dominação, o conto denuncia também certa forma
de violência específica: a interpretação literária.
Introdução
Talvez não seja à toa que o
imperador, após segredar a mensagem no ouvido do mensageiro, tenha mandado que
esse repetisse a mensagem em seu próprio ouvido. O vai-e-vem de quem enuncia a
mensagem e quem a recebe, nesse breve conto que propõe o desafio de sua
interpretação, sob risco de sermos, enquanto leitores, alvo do escárnio de um
narrador calculista demais, é tão importante quanto o conteúdo da mensagem que
se quer transmitir. E uma leitura mais radical do conto bem poderia propor que
a substância da mensagem imperial e as posições dos sujeitos em relação a ela são,
no fundo, a mesma coisa. Ou mesmo que o conteúdo da própria mensagem possa
variar de acordo com o emissor do recado. Pois, é por camadas sobre camadas de
interpretação, variações dos emissores e mensageiros, reposicionamentos do
leitor, que o conto nos impressiona: em aproximadamente vinte linhas, em um
único parágrafo, Kafka arquiteta um modo próprio de se aproximar de seus
leitores. Nas letras bem traçadas de “Uma mensagem imperial”, a mensagem do
imperador ao súdito distante, o relato que nunca chega ao destino proposto, é
apenas a primeira das camadas a serem percorridas. Pois, o breve conto, em
cálculo de façanha, pode ser entendido como a análise e ativação do circuito
que opera as relações entre os sujeitos (autor, narrador, leitor, personagens) envolvidos
na história que se conta, como processo de comunicação entre autor e leitor da
obra, como estatuto do narrador em relação ao autor, como relações entre
personagens fictícios e leitores reais, enfim, um conto que opera em regime de determinação
de quem é enunciador e de quem é receptor. Posicionamentos que, se bem
calculados em suas consequências, podem, a título de exagero, dobrar o conto
sobre si mesmo. A metaliteratura, nesse conto, desafia interpretações
inventivas porque se situa no registro próprio da narração.
O narrador é suspeito, traiçoeiro e
cínico por inclinação. Comanda imperialmente todo escrito em seu andamento,
pois determina tempo, espaço, personagens e ações. O personagem da representação
da respeitabilidade, de onde emana um poder inicial, o imperador, está
moribundo, morrerá na temporalidade interna do próprio conto, mas nunca foi
poderoso de verdade na armação da trama que realmente importa. A não ser que se
façam interpretações simbólicas dos significados do conto, itinerário possível
e recomendável, mas que está distante de nossa fórmula autoral própria de ensaiar texto sobre texto. O
mensageiro do recado misterioso não alcançará seu destino enquanto for um mero
personagem secundário, é preciso mais que ser infatigável e robusto para entregar
palavras decoradas segredadas aos ouvidos, e seus esforços por espaços quase
infinitos já estavam comprometidos no primeiro passo – o imperador está no
leito de morte e esse morrer impedirá categoricamente a entrega da mensagem,
pelo que nos relata o narrador. O leitor ocasional do conto, homem de carne e
osso que segura o livro no exato momento da leitura, é convidado, por engenho
de estratégia e tática de armadilha, a participar do escrito, como se fosse
possível, por dentro da trama, redobrá-lo como personagem, e precisará sofrer nas
interpretações de obviedade da crítica literária sem imaginação, antes de se
libertar como sujeito. As multidões, casas, palácios, escadas, portões, pátios,
enchem o cenário como obstáculos intransponíveis, os espaços próprios do ritmo
do conto, mas ninguém poderia entregar a mensagem, na verdade, porque uma morte
(do imperador) inviabilizou a possibilidade de acessar o locus em que se situa o sonhador da janela, o leitor na noite, o
destinatário final da misteriosa mensagem imperial –, como enuncia, ao fim do
escrito, em tom de superioridade (inclusive, e principalmente, intelectual) o
narrador.
A estratégia literária de base, no
fundo, é a habitual.
Kafka
nos obriga, sempre, na trama essencial de seus textos, após a primeira leitura,
a reler o escrito.
Porque
é por meio do efeito literário criado nesse ler/reler que percebemos aquela
lógica própria feita de absurdo e que é política a todo momento, pois, a
organização estrutural do poder e dominação é contraposta à própria vida
intelectual insubordinada do autor em que a temática de base era feita de
fragilidade e culpa. Em “A mensagem imperial” não poderia ser diferente. Só que,
nesse conto feito de intrincados modos de se propor caminhos de interpretação,
parece estar mais em jogo os mecanismos de poder entre autor, texto,
personagens e leitor: existe opressão na narrativa e ela é quase uma rede feita
de camadas sob camadas de textualidade a desafiar os processos de comunicação. Nesse
texto, Kafka investiga o poder próprio da palavra, da comunicação e das
fórmulas de interpretação. Aqui parece que o embate do autor se situa no âmbito
do poder que se estabelece na relação literária. O autor parece querer explorar
o poder das operações táticas de narração.
Mas, se a releitura consola e
consolida apreciações de maior precisão, é aquele primeiro golpe de vista no
texto kafkiano que fornece bússola mais acurada, um quase suspeitar de nosso
próprio entendimento, um arrepio de lógica ou um desconforto de certezas o que
garante, também, na violência textual meramente sugerida, a fórmula de
enfrentamento de mundo desse autor singular.
A
primeira leitura desse conto próprio para leituras sucessivas talvez seja a
mais proposicional, no fundo.
Convidado,
na qualidade de leitor, a participar da trama arquitetada, o homem concreto que
segura o livro e está a ler “A mensagem imperial”, logo de saída, se sente
desconfortável com o modo diminuído com que o narrador o enquadra no conto. Porque
desde o princípio, no primeiro olhar para o texto todo, a operação realizada
pelo narrador de posicionar o leitor dentro do escrito não o deixa muito conformado
ou feliz por essa participação maior. O leitor entra na tessitura das letras,
vira personagem do conto que está a ler, aceita o convite, mas, pode ser que
perca os significados mais instigantes do conto justamente por ter concordado
em seguir as regras desse narrador. De um modo ou de outro, o leitor precisa
ler esse formidável escrito até o fim.
É
possível, para atribuir significado a “Uma mensagem imperial”, percorrer,
inclusive, outras hipóteses e fórmulas de encaminhamentos, até mesmo científicas,
que ajudem na investigação desse conto feito de improbabilidades. Hipóteses
psicanalíticas, investigações etimológicas, análises sociológicas, filosóficas,
enquadramentos religiosos, todas essas formas de aproximação metodológicas, se
feitas com rigor, podem contribuir para entendermos melhor a mensagem. Nosso recorte, no entanto, é o
de demonstrar emissores e receptores de mensagens no conto, estruturações de
posições dos sujeitos, reais ou fictícios. Um ensaio nas bordas de uma
metaliteratura meramente sugerida.
Ensaiaremos,
a título de hipótese, quatro possibilidades de envios de mensagens que
reposicionam os sujeitos envolvidos no processo que engloba autoria,
textualidade e leitura. Superpostas umas sobre as outras, existe uma
sofisticação crescente na constituição dessa obra singular. E o texto kafkiano
funciona porque nos obriga a pensar sobre nós mesmos enquanto leitores transformados
em personagens.
Mas,
antes de explorar as mensagens em jogo, é preciso investigar a relação mais
imediata entre o narrador e o leitor. Se é estruturante da obra, não é de todo
evidente a sua oposição mais singular. E é preciso enunciar a estrutura de base
do escrito para, posteriormente, demonstrarmos outras formulações de poder não
tão evidentes.
Na
moldura da primeira frase e da última do conto, quase as únicas que aparecem o você [leitor] como personagem textualmente
descrito, começamos como o só, o súdito
lastimável, a minúscula sombra refugiada na mais remota distância diante do sol
imperial; e terminamos fechando o conto com Você no entanto está sentado junto à janela e sonha com ela [a mensagem] quando a noite chega. Começamos o texto
como leitores-personagens insignificantes, pequenos, e terminamos o conto
caracterizados como alguma espécie de românticos ingênuos, nos limites do tédio
próprio aos babacas. O texto é muito bom, mas nos espeta a espinha dorsal:
ninguém quer ser diminuído ou não ser capaz de entender letras. E, menos ainda,
ao ser transformados em personagem, aguardar por uma mensagem que não chega e
que nunca saberemos o conteúdo. É preciso notar que quem diminui o leitor,
apesar de o incluir no relato, é o narrador e não o imperador, que, inclusive,
vai mandar mensagem para ele.
Entre
a caracterização, no leito de morte do imperador, do leitor ser súdito lastimável e a finalização na
última frase em que está sonhando com a mensagem quando a noite chega, todo resto do texto consiste em mostrar as
dificuldades na jornada do mensageiro para encontrar o leitor, o destinatário
final.
Os
espaços são feitos de espaços dentro de espaços, pátios levam a pátios de
castelos que circundam castelos, escadas levam a outras escadas – o trajeto a
ser percorrido entre emissor (imperador) e destinatário (leitor) é estruturado
quase como um infinito de obstáculos que se alongam e se repropõem novamente a
cada investida de sucesso em uma ultrapassagem.
O
tempo é um assim por diante, durante milênios–
aparentemente, ninguém viverá para contar a mensagem, pois temporalidade de
milênio bem bloqueia qualquer expectativa de sucesso maior, mesmo aos
obstinados.
A
multidão é grande, suas moradas não têm
fim, e como é preciso passar por ela esticando os braços ou mostrando o
símbolo imperial, também fornecem uma imagética de empecilhos gigantescos aos
caminhos que são compostos pelas grandes dificuldades de a locomoção.
Todos
esses obstáculos são muito avantajados. Hiperbólicos de propósito. Espaços grandes
demais, durações de jornadas infinitas, multidões intransponíveis. E, como na
descrição do leitor pelo narrador, o leitor é sozinho, sonhador da noite, homem
de janela, pessoa que aguarda mensagens que não virão, uma minúscula sombra
refugiada nos confins do império, a magnitude espacial, temporal e de ação do
conto lhe sobrepõe uma existência inteira, prontamente, ao longo das frases.
A
estratégia, aqui, parece ser clara. Ao antepor um tamanho diminuto e humilhante
para o leitor, preso ali na primeira frase, todo resto do conto, até quase a
última frase, é feito dos empecilhos gigantes do império. As frases vão sendo
lidas, e os espaços são grandes demais, o tempo é insanamente longo, as
multidões servem para atrapalhar: em registro de hipérbole das circunstâncias
da entrega da mensagem e de diminuição do leitor nas duas únicas frases que o
caracterizam, o resultado é a humilhação direta ou indireta do leitor, enquanto
personagem, ao longo do conto inteiro.
O
diminuto homem sozinho dos confins do império que espera por uma mensagem, à
noite na janela, jamais receberá o recado. Seu feito de abobado é aguardar por
algo que era impossível, ao que parece, acontecer desde o princípio.
A
tática de se propor, enquanto narrador, superior ao leitor faz parte do modo
específico como ele arma a narração da história. Ao operar uma estrutura pelo
exagero diminui o leitor-personagem e engrandece os espaços, o tempo e a
multidão. É uma técnica formal e literária – e se está nas entranhas do estilo
da narração, está presente nas ambições e na formulação do caráter desse
narrador.
Aliada
a essa primeira estratégia de diminuição do leitor enquanto personagem, uma
segunda forma de expressão também é calculada pelo narrador. Diz respeito a
ação. Quase ao fim do texto, o narrador entoa [...] e se ele se precipitasse do mais externo dos portões – mas isso
não pode acontecer jamais, jamais.
A
impossibilidade de se alcançar efetivamente o mais externo dos portões pelo
mensageiro fica quase que ofuscada pela declaração de que isso não pode acontecer jamais, jamais. A duplicação da palavra jamais efetivada pelo narrador mostra,
inclusive aquela mistura de capricho, exercício de poder e superioridade que
parece ser o modo específico com que o narrador lida com o que não lhe é
conveniente. É perceptível porque é uma duplicação desnecessária, situa-se no
limite da enunciação de uma autoridade textual que está tão segura de si que se
permite repetir as interdições que propôs como máximas.
Aqui,
a técnica é, sobretudo, política: o narrador não está propenso em considerar
que a mensagem deva chegar ao seu destino. Mas, em irritabilidade de
duplicidade (jamais, jamais), acabou
se denunciando como um narrador que exerce o poder de contar a história como
fórmula tática de personagem mandão.
Uma
terceira forma de golpear o leitor vem pela leitura da lógica do próprio texto.
Lendo as peripécias pelos castelos, pátios e escadas, subitamente, o discurso
começa a mudar, torna-se mais agressivo, peremptório. Às vezes, opera nas
bordas próprias de um exagero máximo e fornece a nítida impressão de que o
narrador não quer que o leitor receba a mensagem. Mas, quando o narrador diz: Aqui ninguém penetra; muito menos com a
mensagem de um morto, a interpretação textual do leitor pode vacilar
porque, na lógica interna do conto, já era sabido que o imperador estava para
morrer em seu leito. A frase se torna absurda, então, para um leitor atento e
consequentemente o agride não pela via dos enquadramentos textuais, mas por
fugir da lógica esperada de alguém que vai entregar a mensagem de um moribundo.
Trata-se,
aqui, de uma provocação lógico-racional. Pois, exatamente pelo imperador ter
morrido que talvez a mensagem tenha mais significado. Era essa a primeira
hipótese de leitura – quase em regime de promessa – do conto que qualquer
leitor faria.
Nos
mecanismos de poder do narrador sobre o leitor, o primeiro é a diminuição do
homem por contrastá-lo, via jogo de hipérbole, com grandezas espaciais,
temporais e humanas; o segundo modo de humilhação; o capricho se denuncia em um
enrijecer da narrativa escrita e na duplicidade de palavras que impedem o
mensageiro de chegar a seu destino. O poder político em exercício literário. Em
terceiro lugar, não permitir entrada no locus
em que está o leitor, sob o argumento de que a mensagem era de um homem morto,
foge a qualquer racionalidade imediata e agride o leitor porque lhe distorce a
lógica. Pois foi justamente pelo imperador estar no leito de morte, moribundo, a
querer mandar mensagem a um súdito, que essa ideia parece ser razoável e
deveria ser cumprida.
Se
o narrador estabeleceu que o leitor é um personagem, um receptor da mensagem
que jamais alcançará o objetivo, em sua fórmula e técnica de narrar também se
denunciam as operações de um personagem autoritário, calculista e que gosta de
exercer o poder – o narrador é um caprichoso político.
1
A
primeira hipótese de mensagem diz respeito ao recado que o imperador enuncia
aos ouvidos do mensageiro para que esse entregue a informação para um receptor
bem diferente do usual: o próprio leitor do conto. Mas, quem nos informa desse
destinatário é o próprio narrador do texto. Essa mensagem, no entanto, não
chegará ao leitor, que ficará apenas aguardando por ela. O narrador não sabe o
conteúdo do recado em nenhum momento, mas, parece não se importar com isso, a
mensagem era destinada ao leitor sonhador que ficará aguardando na janela
inutilmente por ela. O leitor-personagem, que foi convidado à trama, nunca
saberá o que o imperador queria dizer a ele.
Certamente
que a melhor forma de interpretar o “você” duramente apontado como destinatário
da mensagem imperial deve ser levar a arquitetura kafkiana a sério e nos
colocarmos, enquanto leitores, como os destinatários da mensagem do imperador.
Somos os leitores externos de um livro físico, mas participamos, em ritmo de
personagens da própria narrativa, daquela estruturação dos percalços do
mensageiro para entregar o recado para nós. Pois, o início do conto é claro e
deve ser levado a sério: O imperador –
assim consta – enviou a você, o só, o súdito lastimável, a minúscula sombra
refugiada na mais remota distância diante do sol imperial, exatamente a você o
imperador enviou do leito de morte uma mensagem.
A mensagem segue do personagem
imperador para nós, leitores, em regime de orquestração dos obstáculos a serem
transpostos pelo mensageiro, e o resultado final, obrigatoriamente para essa
interpretação, é que a mensagem não alcançará o destinatário. Nós, no ritmo
interno dessa possibilidade de interpretação do texto, não vamos receber nunca
a mensagem dada pelo imperador: somos apenas sonhadores na janela e nossa
participação como personagens na trama não é só pequena – foi propositalmente
diminuída pelo narrador. E se o narrador desconhece o conteúdo dessa mensagem,
ele não demonstra saber disso em nenhum momento, o mensageiro fica sendo o
único a conhecer o recado do imperador que, na temporalidade lógica do conto,
morre lá pelo final do escrito.
A lógica operando pelo absurdo,
aqui, toma corpo, porque o narrador vai dizer que “penetrar no centro do mundo”
não é permitido a ninguém, “muito menos com um recado de um morto”. Estranho
modo de resolução da coisa toda, na medida em que o recado que se tem a
obrigação de entregar tem origem justamente porque o imperador estava para
morrer, e ao fim não pode ser entregue porque o imperador morreu, como se a
vida do imperador, que estava por um fio, virasse subitamente condição de
possibilidade para a entrega da mensagem. A mensagem que era para ser entregue
porque ele estava a morrer, de repente, não pode jamais ser entregue justamente porque ele morreu.
2
Uma
segunda hipótese de interpretação é pensar que o conto inteiro, “Uma mensagem
imperial”¸ é um recado e é também, em si, uma mensagem organizada estrategicamente pelo narrador, para a exegese
do leitor. Pois se o narrador não é o imperador, nem o mensageiro, nem o
receptor da mensagem, tudo que escreve está sob seu comando, inclusive situar o
leitor como o receptor dos enunciados. Nada nos garante, sob o regime do
escrito, que o narrador não seja o autor do conto inteiro, o sujeito que está
por trás da inventividade da história bem pode ser o mesmo que a narra.
“Uma
Mensagem Imperial”, o conto, pensado do título até o ponto final, se transforma
subitamente em um recado que o narrador quer emitir para o leitor, que foi
convidado a participar da história toda na qualidade de personagem. E algo a se
perceber, nesse caso, é que o narrador é quem qualifica, posiciona, descreve e
até mesmo manda nesse personagem inusitado: o próprio leitor do conto. Estranho
modo de enunciação entre os sujeitos em jogo. O leitor, de carne e osso, que lê
a obra, uma pessoa efetiva, nada pode determinar sobre si mesmo no conto e, em
contrapartida, um narrador, alguém que enuncia e descreve o mundo nas palavras
contidas em um livro, alguém que é pura ficção, determina mais sobre a posição
do leitor na estruturação dessa interpretação específica do que um homem real.
Existe
uma violência em jogo, até mesmo por insinuação de superioridade intelectual,
em obrigar o leitor a ficar abobado na janela, como diz o fim do escrito e,
pior: sendo um incapaz de perceber que o conto inteiro era um recado, uma
mensagem literária que o intérprete simplesmente não conseguiria enxergar. Tudo
se passa como se o leitor lesse o conto, mas não entendesse que ele, por
completo, era uma estratégia de o diminuir como um intérprete: enquanto o
leitor-personagem aguarda a mensagem que não chega nunca, um narrador ri da
coisa toda, e pior, ri por último.
Nesse
esquema de interpretação do conto de Kafka, o narrador não é apenas o
enunciador da mensagem mais encoberta, a própria “Uma Mensagem Imperial”, mas
também o próprio mensageiro de todo o escrito pois o texto inteiro está sob seu
comando. É um sujeito que é narrador, mensageiro e, talvez – nada comprova o
contrário –, o autor real do escrito. É uma interpretação em que o conteúdo da mensagem
é de perfeito conhecimento do narrador, ele inventou toda a narração, e o
insucesso do leitor em conhecer o recado vem de uma incapacidade de, até mesmo,
levar a sério propostas literárias ficcionais.
3
Mas,
um outro registro interpretativo da lógica entre emissores e receptores das
mensagens em jogo na leitura desse conto, os sujeitos da trama, também pode
ocorrer.
Nada obriga o leitor a não
reconhecer o caráter suspeito e caprichoso do narrador.
O leitor pode bem compreender a
possibilidade de “A Mensagem Imperial”, o conto completo, ser também um recado,
uma mensagem, para leitores. Nesse caso, obviamente, o intérprete da obra não
estaria sozinho na janela a esperar pela mensagem, como pensaria e tentaria o
enquadrar o narrador do conto. E esse narrador que ardilosamente transformava
leitores em personagens e os diminuía por dizer que não entendem de recados,
nesse caso, se transformaria, ele mesmo, em apenas um mensageiro, alguém que
pretendeu esconder que estava dando um recado, mas, foi descoberto pela leitura
do leitor atento.
O narrador é quem não atinge o
objetivo que pretendia, ele não consegue dar o recado aos ouvidos do leitor. E
o intérprete se valoriza no processo todo de leitura, na trama dos sujeitos,
porque ao não ser ridicularizado por falta de entendimento, se propõe também
como um emissor de um recado: nem todo mundo se engana tão facilmente.
4
Uma
das formas de entrada no universo da literatura kafkiana é compreender suas
composições como análises do poder. Pois, em maquinaria de sentença mortal (“Na
colônia penal”), na opressão patriarcal (“A metamorfose”, “O veredicto”, “Carta
ao pai”), na alienação burocrática do poder (“O castelo”), nas armações
textuais de proprietário burguês e mandatário enquanto narrador (“A tribulação
de um pai de família”) ou em tribunais que se espalham por todo real (“O
processo”), Kafka explora e analisa diversas maneiras de manifestação de
estruturas de poder.
Não é muito recomendável se imaginar
que o narrador de um texto é o seu autor empírico, que existe uma identidade
perfeita entre o homem concreto que escreve e aquilo que é enunciado em texto.
Mas, se pensarmos na possibilidade
de Kafka, o autor, estar mandando uma mensagem
para seus leitores em potencial, ou seja, a ideia de que ele é o próprio
narrador da proposição toda, teremos que aceitar a ideia de que é ele quem
enquadra o leitor, dentro do conto, a ser um sonhador na janela a não receber
mensagens ou recados.
Existe uma certa descrença de Kafka,
se esse for o caso, na capacidade do leitor em compreender a sua obra. E se
insinua, brevemente, uma relação autor-leitor em que o poder fica do lado do
autor.
Essa possibilidade, ao que nos
parece, é absolutamente única em todos os textos de Kafka, o que faz de “A
Mensagem Imperial” um texto estratégico para conhecer concepções literárias do
autor, até porque a temática dos sujeitos envolvidos como emissores ou
receptores de mensagens é o que estrutura essa forma artística de manifestação
de poder.
Pois em absolutamente nenhuma outra
das obras de Kafka, ele se coloca do lado da manifestação do poder. Kafka,
analista de muitas formas de poder, fica sempre do lado dos oprimidos, denuncia
a dominação, demonstra sua irracionalidade, luta com palavras contra a
violência. Os filhos que são dominados, animais que recebem violências, seres
inanimados que ganham vida e são brutalizados, homens que lutam contra
estruturas institucionais irracionais, máquinas que esmagam a vida: Kafka é um
escritor do contra-poder.
Nessa curiosa maneira de interpretar
“Uma mensagem imperial”, autor sendo seu próprio narrador, e o conto um recado
para potenciais leitores, teríamos a única obra em que uma demonstração de
poder seria uma manifestação em que Kafka seria protagonista.
O conto, nesse caso, engrandece mais
ainda por ser singular e a dificuldade de sua tessitura bem autoriza Kafka a
duvidar de nossas interpretações como leitores. Porque o que é certo é que ele
sabia perfeitamente o que estava escrevendo, nós, leitores, é que inventamos
formas de aproximação de maior ou menor sucesso da narração de gênio.
domingo, 4 de julho de 2021
sexta-feira, 12 de março de 2021
O Mês das Vindimas, 1959 (Magritte)
Ou
Do Lado de Fora de Mim Mesmo
Existem dois homens iguais ao meio de cinco
homens iguais. Eles se vestem de preto.
Existem cinco homens iguais ao meio de
sete homens iguais. Eles usam chapéus.
Existem sete homens iguais ao meio de
onze homens iguais. Eles usam gravatas.
Existem onze homens iguais ao meio de
vinte e três homens iguais. Eles estão em pé.
Existem vinte e três homens iguais ao
meio de vinte e três homens iguais. Eles estão do lado de fora da minha janela.
Mas só um me incomoda.
A GALERIA INVISÍVEL
Para minha querida Allegra, pois seu papai, com amor e muito carinho, deseja que sonhe sempre o impossível.
Para mim não existe diferença entre o
sonho e a realidade. Eu não sei nunca se o que faço é produto do sonho ou do
estado despertado.
Man Ray
É preciso ter uma ideia do que se irá fazer. Mas deve ser uma vaga ideia.
Picasso
Loucura sim, mas tem seu método
Hamlet, Shakespeare
Existe um gênero literário clássico, uma
antiga técnica grega, chamado ekphrasis,
para muitos uma forma morta, que consiste em descrever uma obra de arte com a
maior exatidão possível, de modo a tornar factível a quem nunca a viu
efetivamente poder enxergá-la com os olhos da alma, como se estivesse bem na
sua frente. Há, nessa forma, um exagero de cálculo na descrição. Tratei de
compor os textos deste livro, que no fundo é um apanhado de fragmentos,
influenciado por essa maneira, se bem que por vezes me arrisque a narrar
histórias possíveis ou dissertar livremente sobre o valor de alguma obra
específica. Por se tratar exclusivamente de fragmentos que partem de ekphrasis de obras dadaístas e
surrealistas, conforme escolhi, certamente a lógica do real, imperativo típico
dos homens sem imaginação, cede a um modo de contemplação e composição um pouco
mais fantasioso e particular. Por certo que as descrições, as criações e as
argumentações que partem desses tipos de obras jamais poderiam ser fiéis
completamente se, de algum modo, não fossem ligeiramente malcriadas e não
estivessem no limiar entre razão e emoção, precisão e irreverência, sonho e
realidade.