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terça-feira, 19 de outubro de 2021


Quem tem medo do “Pequeno Príncipe”?

Rodrigo Suzuki Cintra

 

Quando ele chegou, eu já estava ali escondida no fundo da sala. Os outros se esparramavam pelas outras cadeiras e, sem me ver, ele começou a se arrumar lá na frente para iniciar aquela espécie de homilia particular que inventou para si e que apelidou formalmente de “aula”. No limite, uma espécie de masturbação verbal que é exercida por homens cultos quando querem demonstrar poder pela razão.

Minha presença era mais do que justa. Era até sagrada se ele levasse a sério tudo que dizia quando afirmava que uma lição é um evento público e, depois daquelas duas semanas que se recusou a falar comigo, também era um direito meu que ele vislumbrasse meu aparecimento repentino em sua vida. No fundo mesmo, sabia que ele ia amar me ver e que suas esquivas faziam parte do incompreensível jeito de ser desses homens que, sobretudo, cheiram a masculinidades maiores a todo tempo. Truque de pirata.

Esperei começar a fala para me levantar e sentar na primeira fileira. Andei devagar para que ele pudesse admirar o meu corpo enquanto caminhava, pois estava usando o vestido preto de sempre e tenho certeza que quando ele viu a cena deve ter sentido um pouco de tesão. Não existe outra opção de olhar para as mulheres andando se o olhar é de um tarado, afinal de contas. Pois, eu sempre tive certeza absoluta que quando ele olhava para qualquer mulher, tinha vontades sexuais reprimidas. E quando ele negava essa conduta de machinho, percebia mais ainda o cinismo daquele sujeito.  

Tudo bem que ele não hesitou no discurso quando me viu ali, uns 7 metros de distância, mas ficava esperando que ele gaguejasse a todo momento. Eu bem que ia gostar disso. Por alguns instantes, pensei que por causa de nossa intensa paixão pregressa, ele fosse desistir da importância de falar sobre qualquer outra coisa programada para a aula e começasse a falar comigo diretamente. Em público seria melhor ainda porque eu tinha muita coisa a dizer para aquele homem ridículo e todo mundo precisava saber o quanto ele me fez mal. Talvez fosse uma boa ideia insistir naquela conversa que ele estava obrigado a ter comigo, que ele me devia enquanto uma mulher que tem o que dizer, alguém que sabe o que quer e tem o direito de se expressar. Estava disposta a ter essa última discussão, a qualquer custo. Os telefonemas que eu fazia na madrugada e as andanças pela vizinhança dele não estavam surtindo efeito. Ele nunca atende o celular e quase sempre está fora de casa.  

Como suspeitei, ele havia deixado a pasta de trabalho na primeira fileira, perto de mim. Esse tipo de homem confiante jamais suspeita que seus ex-alunos de tempos longínquos vão entrar na aula e abrir a sua surrada pasta de couro marrom. Lembrei que era a mesma ingenuidade que ostentou quando não percebeu que abri a terceira gaveta da escrivaninha da casa dele enquanto ele dormia, às 3h da madrugada, aquela que ele cuidava com segurança e não queria que ninguém abrisse. Nada me impede de fazer o que eu quero e era altamente suspeito existir um lugar particular interditado para mim na casa dele.

Que espécie de segredo esse cara podia esconder?

Meu presente estava embrulhado em papel azul e a fita era rosa. Conheço o homem e sei que gostaria dessa estética. Coloquei dentro da pasta, lá no fundo, quando ele se virou inocentemente para a lousa. Era uma edição de luxo de “O Pequeno Príncipe”. Ele não tinha a obra no meio daquela biblioteca infinita e era culpado, obviamente, de não ter lido um clássico incontornável.

Esse recado ele teria que aceitar, ah, se teria!

Levantei e estava quase abrindo a porta quando escutei no meio do palavrório dele uma palavra solta: “princesa”. Ele deve ter percebido que eu ia sair e quis me lisonjear, tenho certeza. Olhei para trás e ele estava de novo virado para lousa. Abri a porta com som e fúria, demorei uns segundos por ali. Tenho certeza que ele me olhou e admirou, deve ter sentido uma baita saudade da minha bunda, só pode ser. Conheço o homem, fiquei com ele direto por sete semanas. E aprendi direitinho quando ele disse, certa vez, que existe toda uma eternidade dentro de um segundo.  

domingo, 30 de julho de 2017

Roda de Bicicleta, 1913 (Duchamp) Ou À Sombra da Arte de Obra





I

              A arte é tudo que for o caso.
         Esta roda de bicicleta disposta sobre um banquinho branco é perfeitamente inútil. Este banquinho branco sob uma roda de bicicleta é perfeitamente inútil.
      Talvez tivessem utilidade prática como objetos de indústria se estivessem separados, mas daí não fariam uma sombra, dependendo do ângulo da luz, absolutamente improvável.
         Se os bancos servem para se sentar e as rodas de bicicleta para se mover, existe algo nesta construção que não leva a nenhuma dessas possibilidades. Esta montagem é contraditória: há algo nela de potência de movimento, mas está profundamente inerte.
         Não é bem uma escultura o que se propõe, apesar de situar-se no espaço. É um evento singular. Um evento do novo. Na física, os eventos são quadridimensionais. Somam à altura, à profundidade e à largura, o tempo. Os eventos situam hora e local. Esta Roda de Bicicleta é um evento malcriado. Situa-se no espaço, mas nega a inércia e também o movimento. Seu tempo é sempre o do instante. Mas, bem pode ter sido ontem e, sem dúvida, persistirá para amanhã e depois.
         Sem ser escultura, a montagem, que não tem assinatura aparente, causa impacto por ser, em sua materialidade dos usos cotidianos, apenas uma justaposição vertical. Trata-se de um deslocamento, este de ser outra forma de arte, que devolve a ela a sua dimensão mais importante: um certo ar de escândalo. Sua força artística está em uma rejeição: se nega a ser objeto de consumo ou de indústria, apesar de ser composta por elementos de consumo e indústria.
         É só uma ideia.
         A luz do ambiente, com o passar do dia, provoca transformações na sombra desta peça. É curioso olhar para arte por meio de sua sombra. Há algo de original nisso também. A luz, dependendo do horário, incide sobre a montagem com ângulos e intensidades diferentes. O que provoca as mais variadas formas de distorção em sua sombra. E pode se ter a nítida impressão que a obra tem vida; pois sua sombra se movimenta, aumenta de tamanho, diminui, fica mais evidente ou se apresenta quase como uma mera sugestão de sombra.
         Olhar para essa justaposição inaugural de um novo modo de fazer arte, por meio de sua sombra, é como que investigar os rastros que formalizaram a estrutura como ela é. Escura, mutável, irresponsavelmente avessa à ideia de representação dos elementos da composição, a sombra, misteriosa, sempre nos prega peças se o caso é tentar entender a obra a partir dela.
         A sombra é estar ali e aqui.   
         A sombra é um antes e um depois.
         Um banquinho e uma roda de bicicleta são o que são e ainda assim.

II
Uma roda de bicicleta preta é uma roda de bicicleta preta.
Um banquinho branco é um banquinho branco.
Uma roda de bicicleta preta em cima de um banquinho branco não é uma roda de bicicleta preta em cima de um banquinho branco.

III

         Não podemos sentar nesta roda de bicicleta ou pedalar de banquinho. Juntos, estes dois elementos são, em verdade, um novo elemento.
         Quem sabe alguém que passe andando por esta estrutura se negue a perder tempo para entendê-la. Quem sabe a peça não desestabilize mais as formas prontas dos críticos mais respeitados. Talvez as crianças desejem brincar com a coisa toda e os adultos, secretamente, pensem serem capazes de criar coisas do gênero. 
         Dizem que é perfeitamente possível repetir esta montagem infinitamente. Um diâmetro de roda de aproximadamente 64 cm. Um banquinho de aproximadamente 60 cm. E basta colocá-los na posição indicada. O seu truque escapa à lógica da arte tradicional que evita a imitação. Pois, trata-se, em todo caso, sobretudo, de um conceito.         
         É claro que ocorre de imitadores fazerem justaposições variadas de outros objetos de indústria, às vezes, até mesmo elaboradas, porém, dificilmente conseguem o mesmo efeito.
     Escritores excêntricos tentam, sem sucesso, descrevê-la da melhor maneira possível. Há sempre uma perda. Obviamente, como não poderia ser de outro modo, algo escapa às palavras e tudo que se pode fazer é contemplá-la.  
Mas, um pensamento radical é deixar a Roda de Bicicleta como está. Perdida em um dos salões de galeria. Apenas mais uma peça entre peças. Deixá-la, ali, esquecida em sua improbabilidade.
Deixar que a luz do ambiente modele sua sombra. Aguardar que a luz solar projete no chão e na parede uma imagem como em um relógio de sol.
E, inevitavelmente, perceberíamos em sua sombra o movimento lento do objeto estático. Criando caso, certamente, pois, em verdade, sua sombra é, sempre, um momento do agora.

IV

A sombra da roda de bicicleta preta não é a roda de bicicleta preta.
A sombra do banquinho branco não é o banquinho branco.
A sombra de uma roda de bicicleta preta em cima de um banquinho branco é uma roda de bicicleta preta em cima de um banquinho branco.

V

Já pensei, algumas vezes, em tentar derrubar a famosa justaposição. Duvido que a roda de bicicleta esteja solta sobre o banquinho. Civilizado, quando a vi pela primeira vez, tentei soprar o mais forte que conseguia, um sopro de plenos pulmões, para ver se a estrutura se movia de algum modo.
Mas, a roda simplesmente não se movimentava.
Depois, acabei por perceber que, mesmo que conseguisse destruir a lógica da estrutura, sua sombra provavelmente não se alteraria. Ficaria ali, enigmaticamente, colada ao chão.
Trata-se de uma obra que não proporciona qualquer concessão. O sucesso na destruição em nada modificaria a sua força e o seu alcance. Sua sombra já estava impressa na minha mente e na história da arte.
Curiosa maneira de perceber que a arte é uma forma absoluta de dizer “não”.
         

terça-feira, 20 de junho de 2017

A urbe poética de Régis Bonvicino – notas sobre "Beyond the wall"


é um artista se entregando para a polícia
“Arte” de Régis Bonvicino

Quem se dispõe a percorrer a nova coletânea de poemas de Régis Bonvicino, Beyond the wall (Além do muro) recém publicada pela editora Green Integer nos EUA, deve estar preparado para enfrentar uma complexa trama em que o estatuto da arte, a vida na cidade e a política em ponto de bala se entrelaçam de uma maneira absolutamente inextricável, de modo que é praticamente impossível uma dissociação dos elementos dessa poética – existe algo de irredutível na obra que impede os esquemas mais tradicionais de interpretação de livros de poesias. Não é o caso, então, de tentar localizar quais são os poemas de uma ordem metalinguística mais evidente ou os que apresentam imagens da cidade ou mesmo os que discutem relações de poder. As poesias de Beyond the wall operam nas bordas, nos limites em que um tema já se transforma em outro, mas ainda não deixa de ser o que era.

Existe uma verdadeira topografia poética, um modo pelo qual os poemas foram estrategicamente colocados em sua sequência, que causa a perfeita percepção de que o livro tem um espaço próprio de acontecimento: a cidade.

O terreno em que as poesias são colocadas é o espaço urbano. Só que a cidade de Régis Bonvicino não é composta de prédios, janelas, casas e lojas. O lugar de que fala e de onde fala o poeta é feito de mendigos, ratos, garrafas, urina e cigarros. Não é uma cidade específica, tampouco. Pode ser Le monde, Bank of China, Chascona, Passeig de Gràcia, New York ou Bom Retiro. De qualquer modo: é uma poética urbana.  

Se as metrópoles são o espaço da desigualdade evidente, Régis constrói suas imagens-sons de uma maneira particular. Uma técnica de construção de linguagem por contradição, talvez mesmo, por atrito. Não há nada de um lirismo coerente, de uma poesia sem arestas. De vez em quando, falta uma rima, outras vezes, um paralelismo é subtraído, uma ideia não se completa, uma imagem é sequestrada. De caso pensado, Régis Bonvicino faz poesia com ângulos, dobras, conflitos, inversões e paradoxos.

O poeta escreve com cálculo: está tudo resolvido no espaço da página. Porém, algo sempre sobra e parece escapar da prisão do texto e golpear os sentidos do leitor. A “urina” realmente fede, o “mendigo” implacavelmente incomoda e, quase imperceptivelmente olhamos para os cantos da sala a procura dos “ratos”. Um modo de fazer poesia que contamina as palavras e é contaminado por elas. O cálculo poético parece nos surpreender vez ou outra e somos pegos a levantar a cabeça, deixar o texto, e parar para pensar o que está acontecendo. Nessas vezes, invariavelmente, quando voltamos ao texto, relemos alguma passagem anterior, folheamos o livro e retornamos a alguma poesia que, de repente, merece melhor apreciação. Não se trata de um livro de poemas para ler do começo ao fim sem interrupções.

Essas interrupções são verdadeiros engasgos, nos pegam de surpresa e provocam uma sensação estranha – às vezes colocamos até um sorriso na boca, tudo aparenta correr bem na leitura, mas, logo adiante, percebemos a verdade que essa poética provoca: o sorriso se transforma em riso nervoso. Trata-se de um tipo de poesia que é necessária, poesia-incomodo, bem diferente dos esquemas fáceis das poesias da moda. Pode-se dizer, inclusive, que nos seus ângulos, sinuosidades e esquivas é um livro que respeita plenamente o leitor. Mas, que assim o faz somente na exata medida em que exige mais da leitura.

Analisemos duas poesias da coletânea: a primeira e a última – para fazer uma moldura do que pode ser encontrado entre esses dois muros.

Com o título de “Arte”, a poesia de abertura não poderia ser mais irônica. Como falar da arte nos tempos atuais em que a barbárie cultural impera de maneira triunfante? Como fazer arte em tempos de mass media? A provocação que o título da poesia de abertura do livro faz é absolutamente pertinente. Mas, o poeta escreve ao longo da poesia, em uma sucessão de imagens, exatamente aquilo que não se poderia esperar da arte. Como se ela tivesse perdido o sentido nos tempos atuais. É assim que constrói os versos: [arte] “é o mendigo que, mão aberta,/não pede esmola”. A contradição é evidente e perturba não apenas a leitura que procura coerências, mas a própria estrutura da linguagem que se propõe. A certo momento desse primeiro poema chega até mesmo a propor: [arte] “é um relógio sobre uma lápide”. Nada mais contundente do que declarar a morte da arte e, apesar disso, via imagem certeira, reafirmar a arte, mesmo que às avessas.

Na última poesia da coletânea, “Abstract (2)”, podemos ler um verso que quase inviabiliza o título do livro: “Visitors: no trespassing”. Assim colocada a impossibilidade de ultrapassar os muros, a norma é clara e estabelece um dentro e um fora, fica o conflito com o título da coisa toda: Beyond the wall (Além do muro). E não é à toa que o último verso, meio político, esquema de fim de obra, (“Em Manhattan, só o rato é democrático”), esbanja o urbano e é cortado de modo preciso.

Alguns leitores bem poderiam pensar que o caráter urbano do verso esteja na palavra “Manhattan”. Que a política esteja no termo “democrático”. Nada mais longe da poética de Régis. É o “rato”. O “rato” é que nos remete à metrópole e à política. Esse rato que aparece diversas vezes entre os dois muros da moldura que estabelecemos para o livro. O rato que perambula pelos mendigos, por sobre cigarros amassados, que cheira o odor da urina e que consegue, por astúcia da espécie, ultrapassar os muros de concreto que cerceiam a liberdade própria do fazer poético.  

   

Obs: Esse artigo foi publicado na Revista Sibila - Revista de Poesia e Crítica Literária.        

segunda-feira, 29 de maio de 2017

Golconda, 1953 (Magritte) ou Chuva de Mim Mesmo




I

         Um dia desses, essa quase interminável chuva de mim mesmo, essa intempérie inesperada promete acabar e poderei verdadeiramente flutuar de forma livre ainda que fragmentado em gotas de mim – serei composto de partículas bojudas que não cairão mais das alturas, mas ficarão suspensas como balões estáticos. Inertes. Simplesmente pairando em pleno ar.
         Nessa ocasião, me tornarei mais próximo daquela promessa que fiz a mim mesmo – o homem que eu queria ser antes da chuva começar. Não poderei voar, essa é uma das minhas mais tristes certezas, mas, pode ser que seja um pouco mais feliz. Pelo menos não precisarei me preocupar em derramar mais tanto de mim.

II

         Somadas as características essenciais, todas as variações, são poucas as diferenças entre as possibilidades.
         Em 71 casos, pode-se ser original. Em 50, a divisibilidade é por 2, 5, 10, 25 e 50 (ser divisível por 2 é um dos principais defeitos da imagem).
         Segundo o cálculo de alguns, é possível que se caia dos céus 121 vezes. Mas, ascender às alturas somente se dá em 23 casos.
         De qualquer modo, o sobretudo e o chapéu sempre ajudam: é evidente que, mais uma vez, se esquece o guarda-chuva em casa.

III

         Pode bem ser que a tela capture um momento, apenas um instante, de um movimento constante. Do céu para o chão, pingam homens vestidos de sobretudo e chapéu escuros; ou, do chão para o céu, ascendem homens a desafiar a gravidade.
         Se assim for, de qualquer modo, nada nos indica a velocidade do movimento, e fazer o quadro ganhar vida em nossa imaginação não garante, necessariamente, uma compreensão maior sobre sua estrutura.
         Ao olhar a imagem de longe, os inúmeros homens que compõem a tela parecem ser apenas borrões. Gotas negras a manchar o céu e os pequenos prédios de apartamentos: ocasiões do negro em um céu azul sem nuvens, em um telhado avermelhado sem telhas e em paredes de prédios cinza-claros sem portas visíveis.
         O escuro se repete, inclusive, como mancha do próprio borrão, pois, se observarmos atentamente, os homens vestidos de negro provocam sombras nos prédios que denunciam a presença do sol.
         De fato, é curioso que ninguém se atreva a abrir as janelas e que mesmo as cortinas fiquem quase completamente cerradas. Não há, aparentemente, um lado de dentro dos prédios que possa ser verificável. A lógica da imagem é completamente externa aos prédios, com os enigmáticos homens a borrar os outros elementos.
         Meramente suspensos, caindo dos céus, ou ascendendo às alturas, os homens parecem ser repetições de um mesmo personagem. Multiplicado infinitamente – tudo nos leva a crer que é impossível contar quantas variações do mesmo homem aparecem no quadro – o personagem parece não passar por nenhuma transformação em nenhuma de suas aparições, se bem que, dependendo da ocasião, apareça sob ângulos diferentes.
         Apesar de não ter, aparentemente, nada em comum com a maioria dos observadores da imagem, ele provoca identificação. Há algo nele que nos remete a nós mesmos. Não é o chapéu, nem mesmo o sobretudo, o que leva a essa sensação. É a repetição infinita que nos induz a essa tendência. Apesar de ser uma afirmação arriscada, que quase não se propõe, há algo de espelho nessa infinidade de figuras absolutamente idênticas. Mas, isso não quer dizer que esse personagem provoque os mesmos significados para cada um dos observadores da imagem.
         Os homens mais imaginativos pensam que esse homem está suspenso no ar, flutuando como uma bolha de sabão, e que bem que gostariam de experimentar essa sensação de leveza absoluta.
         Os religiosos imaginam que estão subindo da terra aos céus. Veem nessa possibilidade alguma espécie de revelação mística e ficam contentes com a imagem toda, convencidos de que encontrarão a salvação.
         Os homens que têm demônios internos mais frequentes somente conseguem imaginar a si mesmo caindo das alturas e se sentem incomodados com a ideia de que se espatifarão completamente pelos chãos.
         E existe também aqueles observadores que ao olhar para a imagem não conseguem enxergar outra coisa a não ser a possibilidade de voar. São os homens de imaginação mais solta, que encontram na arte sempre alguma possibilidade de libertação.

         No que me diz respeito, só uma coisa me incomoda de verdade. Nessa infinita multiplicação de mim mesmo, em todos os casos, eu continuo sendo eu mesmo. 

domingo, 30 de abril de 2017

Canção de Amor, 1914 (de Chirico) ou Gesto com Luva Vermelha (variação nº 2)




      Talvez se o busto de Apolo estivesse completo, com ombros e tudo, a luva cirúrgica não precisaria ficar pregada na arquitetura de uma construção geométrica. Não seria, obviamente, possível colocar a luva na escultura, afinal, bustos não têm mãos, mas pode ser que a luva vermelha ficasse solta nos ombros invisíveis de Apolo.
         A luva de borracha nos incomoda, sobretudo por ser vermelha, acostumados que estamos com uma higiene que embranquece o vestuário. Mas, ela não é o único objeto de borracha. A bola também aparenta ser feita desse material e, ali, inerte, nos induz a pensar em movimentos maiores.
       De certo modo, a bola de jogar parece caber perfeitamente na luva, como se pudéssemos segurar o brinquedo com apenas uma das mãos. Este senso de proporção acompanha o tamanho do busto. Seria possível, inclusive, usar a luva para dar um estalo na face insensível de Apolo, forçando esse Deus a demonstrar sentimentos humanos. Aquele que leva um estalo na face sempre demonstra alguma espécie de sentimento humano.
         Evidentemente, a construção geométrica que está em segundo plano do quadro é demasiado pequena, se compararmos com o tamanho dos demais objetos. Mas, sem dúvida, é o único elemento da composição que está verdadeiramente do tamanho real.
         O modo como a luva de borracha vermelha está pregada à construção é algo que incomoda. Por certo, um prego de aço é exagerado para segurar o peso de uma mera luva vermelha. É exagerado porque ela é vermelha, não por causa de seu peso.  
       A bola de jogar dá a impressão de que é preciso fazer alguma coisa com ela. Porém, é perfeitamente descartável. E se fosse preciso pintar o quadro mais uma vez, de modo absolutamente fiel à primeira versão, uma cópia completamente exata, uma segunda tela somente seria a representação adequada da original se jogássemos a bola fora.
Isso é verdade.
Não é, no entanto, por ser de borracha, nem por ser verde, que a bola é descartável. É porque ela tem um segredo, na sua inutilidade dentro da composição, que transborda o sentido da pintura como um todo.
         Se a bola de jogar fosse parar em outro quadro, uma representação exclusiva da bola de jogar, uma representação verde, como não poderia ser diferente, uma vez que é uma bola de jogar, teríamos um quadro que incomodaria mais que esta Canção de Amor. Isto porque a bola tem um segredo, na sua inutilidade dentro da nova composição, que transborda o sentido da pintura como um todo. O problema é que a pintura como um todo seria somente a representação da bola de jogar verde. Este é o segredo: a bola de jogar é verde.        
         Existe música na pintura. Trata-se, sem dúvida, de uma canção de amor. Não é o estalo na face do busto de Apolo (inadvertidamente, esta ideia é tentadora) o que pode produzir a sonoridade, provocando este Deus a se manifestar. Há algo de divertido em estapear os deuses. É o trem que passa que produz toda a musicalidade. É uma música por demais urbana, pois representa os amores na solidão das metrópoles. O ritmo da passagem do trem, um som contínuo e sedutor – uma marcha – essa é a melodia da canção. Mas, é preciso estar atento para o fato de que no exato momento em que vemos o trem ao fundo do quadro, no instante preciso em que sua presença se faz sentir, quando percebemos que a pintura estaria incompleta sem a sua representação, ouvimos, nitidamente e sem maiores avisos o seu apito.
         Este apito, singularmente curto, corresponde ao refrão da canção. 
      Algo preocupa muito na lógica da compreensão do quadro. É certamente uma questão essencial e, pode-se dizer que, após o som do apito, naquele momento em que percebemos o trem, acaba por nos intrigar profundamente pois diz respeito à direção que devemos tomar nas questões amorosas. Pode ser que seja, inclusive, o mais importante da composição: não dá para saber ao certo se o trem, ao fundo da tela, produzindo fumaça, seguirá para a esquerda ou para a direita.  

domingo, 29 de janeiro de 2017

Diagnóstico Preciso, um conto de Rodrigo Suzuki Cintra


         Cheguei, como de costume, atrasado para a sessão. Claro que eu não gostava nem um pouco de ir lá todas as semanas. Mas, meu comportamento, pelo que diziam, exigia intervenções maiores.
          Ele estava me esperando. Nunca perguntava o motivo de meus atrasos. A verdade é que eu me atrasava só para ver se ele ia falar alguma coisa. Nas nossas conversas, invariavelmente, somente eu falo. Não é bem, então, o que se poderia chamar de uma conversa. Mas, essa parece ser a técnica da coisa toda. Sabia que aquela seria a última sessão. Eu já não aguentava mais aqueles truques intelectuais baratos e além disso, no fundo, tudo que bastava era só eu não querer mais aparecer por lá. Ninguém me levaria à força, obviamente. Avisei, por respeito, mas sem maiores avisos, que seria nosso último encontro. Ele concordou. Não falou nada. Apenas acenou afirmativamente com a cabeça. Eu estava me lixando para tudo aquilo, então, já de saída na porta, antes de dar a despedida final, resolvi fazer alguma pergunta cínica – daquelas típicas coisas que adoro fazer. Eu ia fingir, pela última vez, que me interessava por aquelas conversas: ia simular um interesse no meu próprio caso (como se eu, no fundo, não me conhecesse melhor do que ninguém).
          “Doutor, diga-me com franqueza, qual é o seu diagnóstico?
          Ele me olhava fixamente, mas, não parecia querer falar. Decidi, então, pressionar um pouco: “Eu já venho aqui há muito tempo. Acho que o mínimo que o senhor poderia fazer é ser sincero comigo.”
          Então, ele respondeu: “Você é um impostor!”
          Resolvi investigar melhor a afirmação. Era a nossa última consulta, e afinal, aquilo era uma tese um pouco estranha. Disse: “Mas, doutor, por que diz isso?”
      Ele respondeu prontamente dessa vez: “Você anda se fazendo passar por você mesmo!”
          Não respondi. Desci pelo elevador. Saí para o sol. Atravessei a rua fora da faixa de pedestres. Dobrei a primeira esquina à direita. Não pensava em nada. Eu estava indo a pé para algum lugar qualquer. Talvez, para casa. Dobrei à direita. Estava, de fato, até mesmo feliz, afinal, estava me livrando de uma chatice das boas. Pensei, inclusive, em dar uma passada em algum boteco. Talvez eu devesse, inclusive, comemorar. Eu até que gosto de beber sozinho em botecos sujos. Dobrei à direita e fiquei a olhar o sol, os pássaros, até as nuvens me encantavam com seus formatos inesperados. Comecei, também, a olhar fixamente para as pessoas que passavam por mim. Atravessei a rua na faixa de pedestres. Caminhei alguns metros. Subi de elevador. O corredor era longo e estava escuro. 
          Cheguei, como de costume, atrasado para a sessão.

terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Celebes, 1921 (Ernst) ou Breve gesto com Luva Vermelha




Escrito em João Pessoa (07/11/14)





I

          Um céu com texturas compostas de tonalidades variadas de azul denuncia, por oposição, a terra desolada.
Apesar de a imagem estar preenchida em quase toda a sua totalidade por uma criatura-estrutura gigantesca e singular, temos a impressão que a área ao seu redor, caso pudéssemos vê-la à distância, seria desértica.
          A máquina-animal que está no centro da cena é particularmente única. Pelo menos, e disso estamos certos, é a única que pode ser vista nas proximidades.
          Há algo de aço na robustez dessa coisa-coisa. E mesmo que exista qualquer elemento orgânico em sua estrutura, isso deve, provavelmente, também ser feito de algum material metálico, sem dúvida.
          Alguns apostam, sem titubear, que se trata de um elefante muito particular. Outros, que é, certamente, um tanque de guerra pronto para o combate. De qualquer modo, veículo ou animal, trata-se de um artefato ou de um ser extremamente curioso.
          Aqueles que sustentam a tese de que se trata de um elefante, apontam para a existência de uma tromba que, curvilínea, causa mais impressão pelo fato de não parecer funcional do que pela sua posição. Ela não parece ter começo nem fim. Está ligada ao mesmo tempo ao corpo do elefante e a cabeça do animal, o que impossibilitaria o seu uso. Mas, parece perfeitamente adequada a composição, apesar de ser, se assim o for, plenamente inútil.
          Para os que estão certos de que se trata de um veículo de combate, é claro que a estrutura curvilínea a que os outros chamam de tromba corresponde ao canhão do tanque. Um canhão meio inusitado pois, a princípio, é menos rígido do que se esperaria de uma máquina de artilharia pesada.
           A cabeça da criatura-estrutura possui chifres e dentes de latão e está separada do corpo ligando-se a este pela tromba, ou se arriscarmos outra interpretação, pelo canhão.
          Dois elementos, no entanto, chamam atenção e apontam, cada um a seu modo, para interpretações divergentes. Uma espécie de chaminé feita de peças de metal colorido disposta logo acima da estrutura sugere que essa é mais um veículo militar que um elefante em potencial. Porém, em contraposição, do lado esquerdo da criatura, duas presas se projetam do corpo, dando a entender que se trata de um elefante particularmente especial e não de uma máquina de guerra.
          Às vezes, devido à posição das presas, temos a impressão de que a cabeça verdadeira do animal está escondida pelo seu corpo e que o que podemos ver na figura corresponde à sua parte traseira. A tromba, assim, se transforma em rabo e a criatura toda parece ser ainda mais enigmática visto que teria, nesse caso, duas cabeças.

II

Com um gesto gracioso, o corpo da mulher sem cabeça domina o primeiro plano da pintura, apesar de quase ninguém reparar nela. Sua imagem está recortada pela própria tela e seu corpo muito branco, sem sombra de dúvida, está completamente nu. Não há dúvida de que deve ser uma mulher muito bela, mas, de qualquer modo, sua representação completa foi sequestrada pela lógica do quadro. Talvez o gesto que ela faz com um dos braços, delicado e preciso, sugira que se trata de uma bailarina. Inadvertidamente, sempre que estamos em dúvida, pensamos que são bailarinas. A mulher certamente não está inerte e o movimento do braço não poderia estar completo sem aquele gesto absolutamente característico da sua mão que, atrevida e de propósito, deixa-se levar por aqueles modos caprichosos exclusivamente femininos que causam admiração, proporcionam beleza e são extremamente sedutores. É evidente e perceptível que a ausência da cabeça nessa figura não se dá pelo recorte da tela. Sentimos, em um primeiro momento, a sua falta. Porém, a delicadeza do gestual (e os seios perfeitos...) nos cativa logo após um segundo exame e não conseguimos pensar em nenhuma cabeça específica que pudesse ajudar a dar um significado maior para o modo como ela foi representada. A ausência de cabeça, de certa maneira, facilita a imaginação – pois leva a pensar qual rosto de mulher nos vem à mente quando o caso é o de tentar preencher uma face que a própria imagem nos negou. A brancura do corpo da mulher, a perfeição do volume de seus seios e a ausência de cabeça produzem um impacto profundo em quem se propõe a olhar essa bailarina de um modo mais detido. Essas características do corpo da bailarina quase que fazem com que não nos preocupemos em perceber a luva que ela veste em uma das mãos. Talvez fosse possível dizer, por causa disso, que a mulher não está completamente nua – a luva ainda esconde algo de seu corpo. Porém, essa seria uma visão severamente equivocada. Pois é justamente a luva, em cores vivas, a contrastar com a brancura do corpo, que garante a nudez total.

III

Ao ocupar quase que a totalidade da tela, a coisa-coisa, criatura-estrutura, elefante-tanque tem matizes escuros, em tonalidades de cinza. Podemos ver toda a sua proporção a partir do ponto de vista em que nos encontramos como observadores. Estamos em ângulo privilegiado, bem de frente para este monstruoso constructo.
 Sua disposição aponta para a inércia, parece estar parado, e sua estatura e volume, sem dúvida, nos remetem ao peso. Pode bem ser que se trate de uma máquina de guerra singular, um elefante-tanque, e, nesse caso, a impressão de que o cenário para além dos limites da tela, caso pudéssemos vê-lo por completo, seria de pura desolação confirmaria a sensação de que a estrutura em questão serve mais à destruição do que à vida.
Sua existência, como potencial máquina de guerra, uma estrutura do extermínio, é intrigante porque estranhamente dá a sensação de operar de maneira autônoma, sem intervenção humana. Como se fosse uma mecânica que, de alguma forma, se bastasse.
A mulher-bailarina é branca. Muito branca. Seu corpo está incompleto, em muitos sentidos – a mulher não é retratada da cintura para baixo. Inclusive, estar ao mesmo tempo dentro do campo de visão do observador e fora de seu campo de visão, é estratégia fundamental para destacar sua movimentação. Ela está na extremidade direita da pintura, mas em primeiro plano, e contrasta visivelmente com a centralidade do tanquedeguerraelefante. Tudo nela aponta para um suave deslocamento. Bem pode ser que ela esteja ensaiando para uma apresentação de balé.
A estrutura ao centro é, sem dúvida, composta de aço, metal e ferro; já a bailarina, é feita de carne e sua estatura pequena, leve e magra entra em conflito com o tamanho avantajado, o peso e o porte avolumado da criatura.
          Mas, se a contradição é evidente, não se sabe ao certo se é a possibilidade de dança ou a possibilidade de destruição o que está fora do lugar na tela.
          E, talvez, alguns críticos mais atentos sugiram que, no fundo, as duas hipóteses correspondem à mesma coisa na lógica da composição.

IV


Em um céu de texturas elaboradas em tonalidades variadas de azul, em uma terra desolada, em um solo em que a sombra nada revela, ao meio de três elementos viris que brotam do chão, entre um peixe e outro voando no céu, entre o cinza e o branco, peso e leveza, inércia e movimento, aço e carne: a tensão entre a tromba e o seio.

O Mês das Vindimas, 1959 (Magritte) ou Do Lado de Fora de Mim Mesmo






          Existem dois homens iguais ao meio de cinco homens iguais. Eles se vestem de preto.
          Existem cinco homens iguais ao meio de sete homens iguais. Eles usam chapéus.
          Existem sete homens iguais ao meio de onze homens iguais. Eles usam gravatas.
         Existem onze homens iguais ao meio de vinte e três homens iguais. Eles estão em pé.

          Existem vinte e três homens iguais ao meio de vinte e três homens iguais. Eles estão do lado de fora da minha janela. Mas só um me incomoda.

terça-feira, 29 de novembro de 2016

Lançamento de meu livro: "Shakespeare e Maquiavel - a tragédia do direito e da política"





Contracapa

O que Shakespeare tem em comum com Maquiavel? O que o genial dramaturgo e o polêmico pensador renascentista têm a dizer sobre a relação entre o Direito e a Política? De maneira rigorosa e, ao mesmo tempo, ousada, o filósofo Rodrigo Suzuki Cintra se propõe a reler as grandes tragédias de Shakespeare e o livro mais impactante de Maquiavel, O Príncipe, para tentar responder a essas perguntas. Por meio de análises de peças de Shakespeare, propostas de novas leituras de Maquiavel, resgates da tradição da tragédia no mundo ocidental, o autor procura, de maneira erudita, estabelecer como opera a ideia de trágico na formação da política e do direito na Era Moderna e mostrar como esta relação ainda se propõe como um problema para o nosso próprio tempo.


Orelha

Ser ou não ser – eis a questãoAlém disso, deve-se, em todas as coisas, considerar o seu fim... As duas famosas frases, correntemente associadas a Shakespeare e Maquiavel, podem, em princípio, apontar para duas esferas distintas da produção humana: a arte e a política. 
A ideia geral deste livro, no entanto, é tentar mostrar como arte e política podem ter conexões muito mais profundas do que aparentemente se supõe. Talvez, até mesmo uma ligação essencial. Por meio da apropriação do pensamento trágico de Shakespeare e de Maquiavel – a leitura de Maquiavel como pensador trágico é uma das teses polêmicas deste livro – trata-se de investigar como no início da Era Moderna a arte shakespeariana era extremamente política enquanto o pensamento político maquiaveliano tinha um elevado valor artístico-literário. 
É via visão trágica de mundo que o autor, o filósofo Rodrigo Suzuki Cintra, traça seu esquema de interpretação da Era Moderna. Ao conectar arte e política em Shakespeare e Maquiavel, o autor resgata um problema que parece ser de extrema importância na obra destes importantes pensadores, uma questão que está no centro da tragédia: o lugar da justiça.  
Se o núcleo da política é o poder e o núcleo do direito, a justiça, a tragédia enquanto formato literário e enquanto modo de viver e sentir o mundo se propõe sempre como uma forma política e jurídica. Assim, podemos encontrar nas grandes tragédias shakespearianas (HamletOteloRei Lear e Macbeth) e também em O Príncipe, de Maquiavel, uma preocupação em equacionar como o poder se liga à justiça. Será que poder e justiça estão implicados de maneira indissociável? Será que a justiça nada tem a dizer ou condicionar o poder?  
Estudar esses autores em conjunto, entrecruzando suas obras, é uma alternativa original de investigar uma questão fundamental para a política e para o direito: quais são os limites do poder?

domingo, 10 de maio de 2015

A Importância de ser Infiel ou A Dama do Cachorrinho



Rodrigo Suzuki Cintra

“A sua dama causou-me tamanha impressão que, apenas a conheci, quis trair minha mulher, sofrer, brigar etc.”
Górki em carta para Tchekhov em 1900.

            Uma história de adultério, na literatura e na vida, virada do avesso, pode ser também uma história de amor.
            Em poucas obras essa transição entre a simples traição e um verdadeiro amor aparece de maneira tão instigante quanto no conto A Dama do Cachorrinho de Anton Tchekhov. Há quem divida esse conto em partes (o próprio autor o fez) e demonstre na estrutura narrativa como uma paixão de ocasião se transforma no amor de uma vida. É como se Gurov e Ana, os personagens principais, ficassem desculpados por traírem seus respectivos cônjuges, pois, no fim das contas, percebem que se amam de verdade. O leitor, então, também se sente desculpado por torcer pelo sucesso dos encontros furtivos dos dois: “está tudo certo, afinal, eles se amam!”
            De minha parte, não posso dizer o mesmo. Curto cada etapa do texto: o seu tempo próprio. Desde o começo do relacionamento, ainda um momento em que a vontade titubeia, até a certeza de um amor pleno que a vontade não pode negar. E, pior: aprecio os parágrafos apaixonadamente, e com malícia.
 Gosto da maneira como Tchekhov traça em poucas linhas, em uma ou duas páginas no começo do conto, toda a armação que sustentará o adultério. E quando sinto prazer em ler essa passagem, não estou me importando nem um pouco se o caso extraconjugal será legítimo do ponto de vista amoroso. A questão não se propõe nesses termos para mim. A verdade é que o autor sabe perfeitamente conduzir o tempo interno da narrativa. E o melhor a fazer é nos deixar conduzir pelo ritmo do namoro. Tchekhov traça o perfil de Gurov com tamanha nitidez, com perfeita precisão em breves frases, que torna fácil para nós compreendermos os motivos que levam o personagem a trair reiteradas vezes sua esposa.
E quando Tchekhov descreve as caminhadas a sós, os beijos roubados, os abraços às escondidas e coloca tudo aquilo em uma cidade que não é a moradia regular dos amantes, enfim, quando situa tudo com um sabor de férias, é impossível não recordarmos de nosso próprio passado, de nossas paixões de estação. E ao percebermos a intensidade e a sinceridade dos encontros secretos dos personagens, lemos tudo aquilo com um sorriso no canto da boca. Pelo menos eu assim o faço. Tchekhov simplesmente nos toca, muitas vezes, porque faz lembrar, através de uma literatura sem rodeios e de estrutura simples, de sentimentos e momentos que nós, leitores, muito bem podemos reconhecer.
            E a narrativa vai crescendo em emoção de uma maneira nesse conto que é difícil traduzir. Quanto mais Gurov percebe que está perdidamente apaixonado por Ana, o que ele não desconfiava que pudesse acontecer dada a sua vasta experiência nos casos de amor proibido, mais o leitor se comove e participa dos sentimentos do personagem. Invariavelmente, começamos a torcer por aquele amor que não deveria efetivamente acontecer. Somos levados, por meio de uma escrita que não só diz respeito à paixão mas que em si mesma seduz, a desconsiderar os deveres tradicionais de fidelidade vigentes na estrutura moral da vida social. E então, absolutamente sinceros, queremos ler naquelas linhas bem traçadas que o amor pode vencer as convenções.
            Talvez seja justamente quando alcançamos esse ponto, quando estamos já embriagados por aquela escrita, que uma consideração inevitável, situada mais ou menos no meio do conto, de consequências devastadoras, sempre que a lemos causa algo de incomodo. Por que, muitas vezes, o que há de mais importante para nós, o que existe de mais verdadeiro, o que pode nos traduzir completamente, o que realmente importa de verdade, tem que ser ocultado em nossas vidas? Por que escondemos nossos desejos mais sinceros? A vida pulsante que encobrimos propositalmente é milhares de vezes mais franca, importante e essencial que nossa existência social regrada, sustentada por aparências e etiquetas dos bons costumes feitas de pura dissimulação. Isso é uma verdade que qualquer um pode perceber. Mas, o que fazemos? Persistimos na vidinha sem sobressaltos, na lógica do fingimento cotidiano, na morte de nossos desejos mais profundos, e tentamos sustentar, a todo custo, aquilo que os outros esperam de pessoas sensatas como nós.
Somos apenas coadjuvantes na peça de teatro de nossas próprias vidas.   
Muitos leitores questionam os desfechos dos contos de Tchekhov. Há algo de anticlímax. Um não-desfecho. É que depois de ter alcançado às alturas nas breves considerações sobre a natureza humana, ao relatar os sentimentos do personagem principal de maneira tão pungente, ficamos a esperar um desfecho igualmente estratosférico. Mas, não é isso que o autor requer de nós. Seus desfechos são um verdadeiro balde de água fria. Meio que não sabemos para onde ir. Não sabemos, ao certo, se gostamos ou não. Mas isso ocorre, é claro, porque o conto não poderia caminhar no mesmo ritmo até o fim. Uma história desse nível, contada dessa maneira, uma imensa afronta a nossa tendência de fingir para todos, se continuasse na mesma cadência até a última frase, certamente nos destruiria. Uma história que nos lembra, a todo momento, que fingimos para nós mesmos, que não aguentamos levar às últimas consequências as próprias paixões, sejam elas quais forem. Uma história que, a bem da verdade, acaba por nos denunciar: já não podemos mais, mas bem queríamos ter um amor como aquele. 

E, no entanto, Tchekhov precisava terminar de algum modo e sabia muito bem o que estava fazendo. O desfecho do conto é desconcertante. Menos porque não aponta para uma solução para que o casal fique junto - Gurov fica se perguntando “como?, como?, como?” -, mas porque nos lembra, invariavelmente, de nossos amores passados, daqueles casos que não sabemos ao certo o que foi que realmente aconteceu. As histórias de amor acabam. Na literatura e na vida. E nem sempre acabam bem resolvidas. 

domingo, 26 de abril de 2015

Citação do Mês - Abr/2015






"HAMM: Você já pensou numa coisa?

 CLOV: Nunca."

Diálogo de "Fim de Partida" de Samuel Beckett.

sábado, 25 de abril de 2015

Os Pássaros de Kafka - Parte 2



III – Um voo profundo


Um abutre estava bicando os meus pés. Já havia despedaçado as minhas botas e as meias, agora atacava os pés. Bicava-os com ferocidade, circundava-me sem trégua, e continuava o trabalho.
Franz Kafka, O Abutre


            Não sabemos nada sobre os motivos que levaram o abutre a bicar violentamente o narrador. A história já começa com os ataques deste pássaro. Pode ser que o personagem tenha cometido algum crime contra os deuses, tal qual Prometeu, condenado por ter roubado o fogo de Zeus e tê-lo entregue aos mortais, a ter o fígado comido eternamente por uma águia. Porém, em se tratando de Kafka, é bem possível, talvez quase certo, que o narrador não tenha cometido mal algum. O abutre simplesmente chegou e começou a bicar, conforme relata o personagem. A história inteira pode ser resumida em poucas frases. Um abutre que bicava ferozmente os pés do narrador escuta uma conversa entre esse e um cavalheiro. O cavalheiro, com a intenção de ajudar o torturado, se propõe a pegar uma espingarda para matar o abutre. Porém, compreendendo perfeitamente toda a armação para liquidá-lo, em um último ataque fulminante, o abutre arremessa, qual lança, o bico pela boca do protagonista.

            O que chama a atenção neste breve conto de Kafka é o ritmo da narrativa, uma capacidade de contar uma história inteira em poucas linhas e estabelecer uma quebra com a lógica das imagens surpreendente. Ao longo da narração, somos levados a imaginar concretamente cenas possíveis, porém, o conto termina com uma abstração, uma verdadeira negação da imagem e provoca a impressão de que tudo que podemos fazer é compreender, mas não imaginar.

            Podemos visualizar claramente a figura do abutre a dar voltas pelo céu e investir com seu bico nos pés do personagem principal. Também a conversa entre o narrador e o cavalheiro, conversa em que esse promete pegar uma espingarda e liquidar com o pássaro, pode ser perfeitamente idealizada. Porém a história, em dado momento, impede a possibilidade de representarmos imageticamente o que nos é narrado. É possível até imaginar o voo preciso em que o abutre mergulha dentro da boca do narrador: uma imagem violentíssima. No entanto, as últimas palavras são decisivas para a avaliação do valor deste texto: Caí para trás, aliviado ao sentir que ele se afogava irreparavelmente no meu sangue que inundava todos os abismos, cobria todas as praias

            De maneira surpreendente, o abutre que a princípio parecia que liquidaria o personagem-narrador, até mesmo porque se arremessa após inclinar-se bem para trás a fim de tomar impulso e mergulhar como uma lança o bico pela garganta do personagem, nas últimas linhas do conto, morre afogando-se irreparavelmente. Mas, como imaginar de maneira efetiva um abutre se afogando sem salvação no sangue dentro de um homem? Um afogamento em que o sangue deste homem inundava todos os abismos, cobria todas as praias.

            Kafka, ao fim de seu conto, na última sentença, inverte a lógica estabelecida durante toda a narrativa. Não só porque nos nega brilhantemente a possibilidade de compreendermos e representarmos o desfecho final por meio de imagens, mas porque inverte a lógica da violência, estabelecendo no sangue, por dentro do homem, a possibilidade de destruição daquilo que o atacava. Existe aqui uma verdadeira fusão da corporalidade. O inimigo externo, o abutre, se infiltra por dentro do homem após penetrar em voo rápido e certeiro pela boca do narrador. Torturador e torturado identificam-se, ao fim da história, corporalmente, no limite do próprio sangue, e, talvez somente assim, possam compartilhar do mesmo implacável destino.

            O personagem-narrador sente-se, de algum modo, aliviado. Ninguém mais lhe bica os pés. O abutre se afogou irreparavelmente dentro de seu sangue. A história, então, pode terminar abruptamente. Mas é claro que, dentro da estrutura narrativa montada por Kafka, a morte do abutre não significa a vida do narrador.