Mostrando postagens com marcador Política. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Política. Mostrar todas as postagens

domingo, 10 de abril de 2016

10 Teses sobre o Caprichoso Político



Rodrigo Suzuki Cintra

 

            Senti a necessidade de explicitar o que venho chamando de caprichoso político. Essa figura, ao que me parece, é característica de nosso modo de navegação social e política e aparece com maior intensidade nos momentos de crise, em que as oposições em jogo se mostram mais evidentes. As dez teses a seguir são obviamente complementares e tentam passar a fisionomia sócio-política deste tipo. Começo pelo pressuposto mais básico de que não existe capricho sem ideologia e termino concluindo que o caprichoso é que, no fundo, é corruptor e corrupto. Mas, além disso, talvez seja necessário uma nota inicial: o verdadeiro caprichoso político se reconhecerá prontamente nesse texto. É inevitável. Mas, como é próprio de seu modo cínico de relação com conceitos, talvez ele faça de conta que essas teses não lhe dizem respeito. Vejam, esse tipo não está acostumado a ser contrariado.

 

1.      O caprichoso político opera sempre um discurso de classe.

Sua fala tem origem específica: parte dos privilegiados para os desafortunados. Desconhece a legitimidade do lugar de onde se produz um discurso popular. Suas opiniões têm a pretensão de ser totalizantes – querem englobar toda a sociedade, evitando ao máximo as verdadeiras oposições sociais em jogo. O capricho na política é sempre ideológico, portanto.   

 

2.      O caprichoso político não se interessa por princípios morais.

Na medida em que sua lógica é de classe, aquilo a que chama de princípio moral não passa, no fundo, de interesse em causa própria. Produz a contradição própria dos tempos: uma moralidade de fachada, avessa a uma ética de construção da cidadania efetiva, está a serviço da estruturação de uma vida política conservadora e desigual. Trata-se, na verdade, de um modo de se relacionar com a ética profundamente contraditório, absolutamente interesseiro e imensamente corrompido e corruptor.  

 

3.      O caprichoso político é avesso à legalidade.

Ele seleciona o que interessa e o que não interessa nas leis. Não vê nenhum problema em usar o direito de um modo meramente instrumental. No fundo, sabe bem que a lei é passível de interpretação. Mas, o curioso é que em alguns casos acredita ser desnecessário interpretar. A lei é clara quando o caprichoso quer, obscura quando o contraria. O capricho não se importa com a coerência: respeitar o direito é questão de oportunidade e ocasião.

 

4.      O caprichoso político é permissivo com a violência.

Ele não a pratica diretamente. Mas, argumenta e compreende as razões das ações pela força. Pondera: às vezes, é preciso alguma ordem (violência) para enquadrar os que não concordam com ele. Ele deixa que outros sujem as mãos, os mais toscos, os indignados máximos que estão dispostos a tudo, mas não engana: a violência como forma de ação política é uma de suas mais secretas opções para resolver crises. Ele é violento, mas preguiçoso e sofisticado demais para efetivar a força nas ruas. Então, assiste as repressões bárbaras cometidas contra manifestações públicas legítimas na tela da televisão. E tem um sorriso no canto da boca quando alguém desce o porrete.

 

5.      O caprichoso político se fantasia de povo.

Simula que seus interesses e problemas são os mesmos que de todos os brasileiros. Confunde o próprio povo que, vivendo nas maiores dificuldades materiais, pode acabar pensando que sua pauta política é a mesma do caprichoso. Alia a isso um nacionalismo absolutamente inverossímil em um país de desigualdades absurdas. Em uma nação partida em muitas, os outros que não aderem à pátria-nação-unida são considerados traidores. Como se fossem brasileiros de menos. O povo mesmo, que vive a lógica da necessidade, não tem, obviamente, a oportunidade de ser caprichoso.

 

6.      O caprichoso político é antidemocrático.

Para ele, o que chama de povão está correto quando concorda com suas opiniões e está “cego” quando não participa de sua lógica. A democracia é questão de lado: quem está afinado com quem. Ou, nos tempos atuais, quem adere ao discurso da moda. O povo, então, para o caprichoso, é, na verdade, um estranho. Como seria possível que parcela considerável da população mais carente não participe das vontades do caprichoso? É claro que ele não entende as razões dos que vêm de baixo. Mas, não poderia ser diferente: o caprichoso não faz efetivamente parte do povo.

 

7.      O caprichoso político é revoltado (mas não com as estruturas iniquas). Ele é um radical de meia-medida. Obviamente que sua revolta nunca é verdadeiramente revolucionária, algo que pudesse realmente mudar a ordem da política nacional. Ele só está interessado na sucessão do poder. Ele quer a mesma coisa de sempre na política, afinal, no fundo, tudo corre bem materialmente. A substituição dos governantes é então uma farsa. Os personagens são os mesmos, a estrutura política é a mesma, a vida social é a mesma. Trata-se de uma revolta caprichosa então, pelo que aparenta, pois opera de um modo preciso para que tudo fique sendo a mesma coisa de sempre.

 

8.      O caprichoso político finge ser civilizado.

Usa argumentos. Reflete, inclusive. Mas, quando chega a hora do verdadeiro enfrentamento de ideias, estimula e compreende a barbárie da força sem hesitar por um segundo. É comum verificar em seu modus operandi argumentativo a virulência e o autoritarismo no modo com que conduz o debate público. Sintoma de um sujeito acostumado em estar por cima nas relações sociais, ele não pode nunca aparentar fraqueza em suas razões argumentativas. Ele até discute com o outro, o diferente, mas chega sempre o momento em que perde a paciência e seus preconceitos mais arraigados afloram. Então, a mulher é diminuída no debate por ser mulher, o negro por ser negro, o pobre por ser pobre (e, portanto, não estar entendendo nada), o sujeito de esquerda por ser de esquerda (e, portanto, ser o que ele considera tendencioso...). O caprichoso não aguenta: tem que xingar preconceituosamente o outro em sua singularidade mais particular simplesmente porque é um outro com singularidades particulares...

 

9.      O caprichoso político é intolerante.

Quem discorda do caprichoso, é visto como louco, inconsequente, corrupto, cego. Ele não compreende a possibilidade real da discordância democrática. O outro, o diferente, o discordante é tratado não como um opositor de ideias, mas como um inimigo. E, é claro, os inimigos têm que ser eliminados (mesmo que apenas do debate), e não aceitos no regime de uma tolerância mais inclusiva. O caprichoso quer calar todo discurso dissonante. Não tolera certas coisas. Então, vai às últimas consequências quando sustenta sua posição ideologicamente demarcada. Xinga, grita, esperneia, às vezes, cospe. Mas, não se enxerga como um intolerante. Suas razões agressivas são apenas sinais da indignação mais pretensamente verdadeira. É preciso perceber: ele cospe nos outros, mas não quer ser excluído do debate tolerante. Não pega bem, e ele preza muito as aparências.  

 

10.   O caprichoso político é corrupto.

É preciso inverter o discurso do caprichoso sobre a corrupção. Ele é seu agente mais frequente, tanto na política quanto no cotidiano. Fingindo ser incorruptível, o caprichoso corrompe, na verdade, a moral, o direito, a democracia, a tolerância e a civilidade. Faz um discurso às avessas: tudo que representa é o oposto da posição verdadeiramente cidadã. O caprichoso se pauta pela lógica da vontade e do interesse mesquinho, ele não concebe o mundo a partir de princípios e ideais. Sua volubilidade, suas estratégias relativistas de argumentação, sua posição política que transparece um discurso de classe, o tornam avesso ao discurso republicano. Para ele, não há princípios na moralidade, no direito, na democracia, na tolerância, tudo é questão de satisfação das vontades imediatistas de quem não gosta e não está acostumado em ser contrariado. Ele não tem utopias, vive da ditadura do real mais comezinho, então, seu discurso apesar de ser sempre o do oportunismo, adere as modas de ocasião com uma facilidade impressionante. Como sabe que a vida política é uma espécie de vale-tudo em que os mais espertos sobrevivem, ele está sempre do lado do poder, mesmo quando não percebe. Seu modo de navegação social mais característico é a lógica dos privilégios de sempre, do tratamento desigual e hierarquizado dos indivíduos, dos subornos do dia-a-dia, do levar vantagem em tudo. Trata os indivíduos que considera inferiores socialmente como coisas, mas quer ser tratado como um rei. Acostumado a fazer birra quando contrariado, o caprichoso aprendeu a ser autoritário quando o caso é o de impor suas vontades individualistas de sempre. Inclusive, fazer seus interesses privados se sobreporem às questões públicas é uma de suas notas mais características. Ele faz isso quando debate política, faz isso quando vai às ruas e faz isso quando vota. Ele faz isso na vida cotidiana – seus vícios privados geram benefícios públicos, ele acredita. No fundo, é preciso não se enganar: é porque existem pessoas como ele, que existe a corrupção.

 

Nota Final

O caprichoso político é birrento, volúvel, relativista, interesseiro, individualista, contraditório, antidemocrático e como tem a ganância própria da classe a que pertence, está sempre flertando de maneira oportunista com o poder. Não está acostumado a não possuí-lo em todas os domínios da vida social. Assim, ele é extremamente verdadeiro em um sentido particular. Quer ser representado politicamente, de qualquer modo, seja justo ou injusto, mesmo que à revelia de qualquer procedimento democrático, mesmo que contra alguns ou contra todos, mesmo que sustentado pela violência, e isso ele levará às últimas consequências, custe o que custar!

sábado, 26 de março de 2016

O Caprichoso e a Crise Política


Talvez um dos modos de navegação social mais distintivos de nossa vida política seja o capricho. Essa figura da extravagância, da vontade sem razões precisas, é típica de contextos arbitrários. Mas, algo não pode ser esquecido quando se trata de pensar uma política caprichosa: o capricho tem lado, é estruturante de um discurso de classe e, como bem se pode perceber, não reproduz verdadeiramente a voz do povo.

            O capricho é característico do discurso ideológico e, portanto, opera na base de um ocultamento das verdadeiras oposições em jogo.

            O caprichoso adere ao discurso de ocasião, menos por uma posição política particularmente calculada e mais por um senso de que as coisas políticas não caminham do jeito que ele gostaria. Claro que não haveria nenhum problema nisso se o que se manifestasse fosse uma posição crítica, ou mesmo, uma indignação mais verdadeira. O que parece ocorrer, no entanto, é apenas uma seletividade no que diz respeito ao que se pode e o que não se pode fazer em termos políticos.

            É desse modo que as fronteiras entre o lícito e o ilícito parecem ser tênues. A judicialização da política é usada de um modo especialmente contraditória. Com o intuito legítimo de averiguar denúncias de corrupção, ou seja, ilegalidades inaceitáveis, cometem-se outras ilegalidades igualmente inaceitáveis.

            O problema do caprichoso é que, como não está interessado em princípios de coerência – o que significa, aqui, o respeito a totalidade do direito –, ele aceita e propõe que a lei deva ser aplicada apenas no sentido em que seus interesses políticos sejam satisfeitos, não se incomodando nem um pouco quando se desrespeita a lei em seu próprio benefício.

            O capricho é, no fundo, avesso à legalidade, mas se transveste de rituais jurídicos para operar sua indignação mais profundamente interesseira.

            E como o capricho só pode servir à política a partir de uma dimensão de classe, afinal, só é caprichoso quem não vive da lógica da necessidade, é preciso cooptar parcela significativa da população para legitimar um discurso que tem um lugar de origem especifico. Então, tudo fica mais fácil.

            O caprichoso político é um indignado. Deixa claro: certas coisas, ele não aceita. A corrupção, então, tem que ser punida custe o que custar. O problema é que o custo não é baixo. Trata-se de desrespeitar o direito à privacidade, o devido processo legal, a produção lícita de provas judiciais, premiar os delatores e solapar prerrogativas constitucionais. Mas, o capricho se propõe como discurso fugidio. O que se pode fazer politicamente, é o que se quer, o que não interessa politicamente, é o que pode ser deixado de lado.

            A seletividade no que diz respeito a quais normas jurídicas cumprir é traço propriamente autoritário pois aponta para a ideia de que, para alguns, a lei deve ser severa, enquanto que para outros, ela pode ser um pouco mais elástica.

            É claro que não temos 200 milhões de caprichosos no Brasil – se bem que uma das características dessa figura, a transição tênue entre lícito e ilícito, nos seja muito cara –, mas, como se trata de discurso ideológico, a verdade é que o interesse mais mesquinho e individualista de alguns, se mostre a pauta geral de indignação da nação.

            O povo, o povo mesmo, está trabalhando. Pensando em como chegar sem atrasos para o serviço diário. Está preocupado com uma escola para os filhos. Está com dificuldades para colocar comida na mesa. Sua pauta política é bem clara.

            Mas, o caprichoso finge que seus problemas são iguais aos do povo. Afinal, somos todos brasileiros. Estamos todos juntos no mesmo barco. E o discurso nacionalista, que é o discurso que não exclui ninguém em essência, pode prosperar. O curioso é que o discurso da nação-pátria-unida se dê justamente em um dos países mais desiguais de todo o planeta.

            O caprichoso quer as coisas a seu modo. Pensa, inclusive, que tem o direito de pautar o debate de nossa crise política, afinal, está acostumado com o poder de sempre e se sente muitíssimo contrariado quando denúncias de corrupção são feitas contra os seus representantes mais proeminentes.

            Não se trata, em todo caso, de defender um governo absolutamente desastrado como o atual. Pelo menos, não no sentido de apoio aos desmandos e ilegalidades praticadas no seio da república. Mas, o que parece ser urgente, é colocar sob regime de suspeita um discurso ufanista blindado por uma superfície jurídica seletiva e de aparência democrática.

O capricho não é apenas contraditório e curioso, ele é perigoso. Antidemocrático por excelência, o capricho visa, em verdade, a estruturação de uma política autoritária, com os mesmos personagens de sempre no poder. É preciso evitar o engano, não se trata de uma substituição completamente radical do que está presente em nosso espectro político. O caprichoso diz querer o Estado de Direito, mas está plenamente disposto a esquecer essa ideia se for o caso de se estabelecer um novo governo para o Brasil. Razão de Estado, estamos em uma crise que talvez torne necessário, argumenta o caprichoso, subverter algumas regras de direito para alcançar o que se almeja. Todo o problema, aí, consiste no fato de que devemos esquecer propriamente o direito para se alcançar os objetivos de alguns poucos interessados realmente na sucessão pelo poder.
           O caprichoso quer ir às ruas como manifestante político legítimo. Veste uma roupa que, a princípio, nada diz ideologicamente (todo mundo é brasileiro...) grita xingamentos aos governantes (apesar de ser educado, sempre se pode chegar ao limite da paciência...) e é escoltado pela própria polícia que percebe que se trata de um manifestante pacífico, afinal, é evidente que não se trata de um manifestante revolucionário. Está, inclusive, no meio do povo. Finge ser exatamente o que não é: inofensivo e democrático. Mas, não resta dúvida. Quando chegar a hora, abrirá uma boca enorme e cheia de dentes pronta para morder violentamente o poder.            

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Muito além do "modismo": quem confunde as palavras, confunde as coisas


RESPOSTA DO COLETIVO ZAGAIA A PEDRO POMAR ENCAMINHADA PARA O BRASIL DE FATO E CAROS AMIGOS 


Prezado Pedro Pomar
Gostaríamos, antes de tudo, de aceitar o seu convite e nos apresentar para evitar qualquer espécie de acusação de que não assumimos nossos próprios riscos. O núcleo do Coletivo Zagaia é composto por Rodrigo Suzuki Cintra, Silvio Carneiro, Thiago Mendonça, Selito SD, Leonardo França e Leandro Safatle entre outros nomes que participam do coletivo e que se não aparecem aqui é apenas por economia de espaço, pois compartilham das mesmas inquietações destes que ora assinam este artigo. Ressaltamos que na página da Revista Zagaia (www.zagaiaemrevista.com.br) sempre foi possível identificar os seus membros e convidamos tanto o senhor como os demais leitores a visitar a Revista e nosso Blog, de modo a poder conhecer o nosso trabalho.
Portanto, a insinuação de que nosso artigo era despersonalizado, de fato, não procede. E a acusação de que nos escondemos “atrás da fachada de um grupo desconhecido, o Zagaia, que se diz parte de um grupo maior, o Cordão da Mentira” é, para dizer no mínimo, fantasiosa. Se assinamos em nome do coletivo é porque todos nós concordamos com os argumentos e com a tomada de posicionamento que ali escrevemos.
Talvez seja o caso de dizer, no entanto, que nos entristece ver sua posição em relação à ideia de coletivo como algo despersonalizado. Ao contrário, acreditamos que empreender lutas coletivas é fundamental para a transformação da sociedade, transformação que sempre se renova em suas demandas. Se há despersonalização no cotidiano ela não é fruto das lutas coletivas, mas do individualismo atroz e da falta do debate de ideias.
É preciso ressaltar, porém, que este não reconhecimento do coletivo como modo legítimo de se manifestar é sintomático. Ao questionar os motivos de não assinarmos com nossos nomes e sugerir que não teríamos coragem de mostrar a nossa cara, o senhor acaba por reiterar dois dos equívocos centrais desta polêmica. Em primeiro lugar, acaba por reduzir nosso texto a uma discordância de caráter pessoal, como se nossa intenção fosse atacar a sua pessoa acima de tudo. O que não é verdade, na medida em que nos sentimos confortáveis em dizer que o antagonismo era fundamentalmente em relação ao posicionamento tomado pelo senhor ao escrever o artigo “Um modismo equivocado”. Ou seja, o senhor diminuiu a polêmica a um debate personalizado, sentiu a crítica de uma maneira muito pessoal, quando, na verdade, o que importa (ao menos para nós) é discutir a desqualificação do conceito civil‐militar como modismo. Mas, para além disso, há outros equívocos a serem delineados.
O equívoco do poder
Não se trata, portanto, de tomar partido de um senhor “arcano” ou de “determinados jovens“ como o senhor escreve, mas de sustentar esta ou aquela postura em relação ao entendimento do verdadeiro significado da ditadura civil‐militar, mais precisamente, sobre seus participantes. Este ponto, curiosamente, foi deixado de lado em sua última resposta. Mas podemos aqui recordar.
Primeiramente, quando em seu artigo “Modismo Equivocado” o senhor assinala que: “Embora todos nós da esquerda (sic) saibamos da participação civil tanto no golpe de 1964 (…) como no regime que dele se originou, também entendíamos perfeitamente que quem mandou de fato, quem exerceu o poder político, foi o Alto Comando das Forças Armadas”. Em nossa resposta, argumentávamos que esta seria uma concepção equivocada de poder, pois contraditória: afinal, Pedro, os civis participaram ou não? Como eles participaram? O problema de seu conceito de poder está no sentido de afirmar que quem manda é apenas quem o detém formalmente. Sabemos, hoje, que a rede de poderes é mais complexa do que identificarmos quem assina e quem obedece. O que as recentes descobertas da historiografia latinoamericana vêm revelando é que havia um jogo entre as partes civis e militares, para além da soberania de um dos polos. Carlos Fonteles, integrante da Comissão da Verdade, revelou, dias depois de publicarmos nossa resposta ao seu texto, um documento oficial que relaciona a Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) à produção de armas para o movimento que derrubou o presidente João Goulart, em 1964. Citando relatório confidencial do SNI diz que o órgão civil teve a função de “fornecimento de armas e equipamentos militares aos revolucionários paulistas”. Portanto, desde o início, ninguém foi deixado de lado na farra da ditadura: civis e militares usaram as armas que tinham a seu alcance para derrubar toda sombra de mudança sobre o status quo.
Neste sentido, o seu argumento de que estaríamos eclipsando o campo militar no conceito “ditadura civil‐militar” é, no mínimo, falacioso. Em nossa resposta não deixamos de lado a violência militar, mas insistimos em lembrar que estavam associados até a medula aos desmandos civis. Enfim, os dois polos da equação devem ser devidamente julgados e condenados aos olhos da história.
Decerto, o senhor poderia argumentar que também não deixa de lado isso. Conforme seu artigo: “É preciso sim identificar os grandes empresários e a oligarquia que financiaram e inspiraram o golpe militar e a repressão política. Os cúmplices civis dos governos militares, os apoiadores dentro e fora da mídia. Queremos sim sua punição! Mas deimediato deve‐se identificar e punir aqueles que foram a sua guarda pretoriana, que cometeram crimes de sangue em favor do regime. Que perseguiram, trucidaram, executaram covardemente, ocultaram e destruíram corpos”. Grifamos o “imediato” pois aqui mora o que caracterizamos “peleguismo” (o que não era uma crítica à sua pessoa, mas à sua posição em relação ao fato). Não se trata de preconceito ou ódio de nossa parte, muito menos de frenesi digital, mas de colocar sob regime de suspeita tal afirmação: um ato salutar no pensamento e na ação.
Ora, seu artigo foi escrito em plena aurora da Comissão de Verdade (agosto deste ano). Portanto, não é uma peça ingênua, e procura, ao que parece, representar uma posição na ordem das investigações do comitê. Ora, por que esta ordem? Por que, primeiro investigar os militares e depois os civis, ou se ater ao primeiro grupo? Não nos venha com a conversa de que estamos querendo ocultar os militares na neblina civil, ou que estamos prestando um desserviço, por favor! Nossa suspeita, é que esta insistência acabe por fazer justamente o contrário: ao destacar os militares, satisfaça o gozo civil – e navegue tudo como d’antes no quartel de Abrantes. Deixar para amanhã o julgamento dos civis responsáveis pela barbárie é, a nosso ver, omitir‐se em relação à história. Como se o fato de financiarem torturas e assassinatos fosse secundário diante de quem as realizou. Como se desconhecêssemos como funciona a justiça e o gozo com seus bodes expiatórios. A querela entre nós parte daí.
Portanto, não é um desserviço tratar a ditadura como civil‐militar, é clamar por uma memória ampla e irrestrita dos seus crimes e criminosos. Talvez mais: retirar do imaginário popular a ideia de que a ditadura fora apenas militar. Mostrar que o sr. Marinho tem, sim, tudo a ver com o que acontecia ali; de que os Frias forneceram veículos do seu jornal para atitudes nefastas do poder, de que o sr. Boilesen da Ultragás refestelava‐se com sessões de tortura, de que a TFP foi um braço civil importante para o discurso da moral e dos bons costumes. E se, porventura, os civis foram deixados de lado pelos militares a certa altura – como você afirma em seu artigo “Modismo” ‐ nada impediu que voltassem com força total pela porta dos fundos da anistia (ou mesmo antes dela, uma vez que a anistia não é nenhum milagre jurídico, mas o resultado de acordo entre as forças militares e civis no poder). A ditadura apenas “militar” oculta tudo isso e deixa o presente nebuloso e a perversão civil, muito bem, obrigado. Eis, ao nosso ver, o desserviço de sua estratégia. Eis o que nos forçou a reagir ao seu artigo.
O equívoco da tradição
O segundo equívoco pode ser percebido logo na enunciação inicial de seu segundo texto: “Tenho 55 anos de idade e milito na esquerda há mais de 30.” Não é novidade que muitos militantes da esquerda e da direita utilizem‐se de argumentos de autoridade para sustentar sua posição ‐ o que a Zagaia desconsidera de pronto. É só que ao usar tal instrumento retórico, se reafirma, mais uma vez, o que criticamos: o uso da ideia de tradição como recurso autoritário para sedimentar maus entendidos sobre o passado.
Mais ainda, trata‐se de uma estratégia de esquiva que, ao primeiro golpe, apela aos sentimentos privados no cenário público. Artifício comum nos debates públicos atuais que, ao primeiro sinal de controvérsia, leva ao território obtuso da cordialidade e da esfera privada. Quando vamos nos livrar disso? Tudo se passa como se sua acusação de “modismo” não fosse violenta, como se não atacasse os grupos que vêm construindo esta perspectiva há anos, e sua critica fosse a mais genérica e abstrata possível! Nesta estratégia desconsidera a luta de diversos grupos importantes como a Rede Dois de Outubro, Mães de Maio, Cordão da Mentira, e também o nosso “grupo de fachada” Coletivo Zagaia. Grupos para os quais é fundamental estabelecer os laços de continuidade entre o passado e o presente.
Ao tratar o conceito civil‐militar como uma moda da estação, acaba por afirmar sua posição autoritariamente (aparentemente embasado em outros historiadores respeitáveis e em um tal de “tradição oral popular”). Prefere afirmar o imaginário equivocado que apreendemos nos grandes meios de comunicação (estes também braços civis da ditadura) do que repensar o seu conceito.
A confusão não poderia ficar mais clara no fim de sua própria resposta. O senhor chama de lixo literário (a mesma categoria que o crítico literário Zé Serra se valeu para caracterizar a Privataria Tucana) nosso artigo. De fato, preferimos a honesta crítica dos botequins. Sustenta que escrevemos contra a sua pessoa e não contra seus argumentos, e com este recurso se isenta de responder nossas críticas. Arremata: “Vamos ver, nos próximos anos, o que o “movimento histórico” dirá de tal irresponsabilidade e de tamanha falta de princípios.” Qual teria sido, exatamente, a nossa irresponsabilidade, então? Seria, apenas, a de ter contrariado suas ideias? É isso que o “movimento histórico” ensinará? Contrariar os “arcanos” não é bom negócio?
E confessamos que recebemos com estranheza o questionamento descomedido sobre nossas identidades (“Não têm coragem de mostrar a cara?”; ou ainda: “assumam publicamente o teor da carta publicada. Identifiquem‐se como autores perante os leitores.”). Ninguém na Zagaia se esconde do que faz ou escreve, participamos de diversos fóruns e discussões públicos, militamos em diversas frentes seja no âmbito da política, seja no âmbito da estética (esferas que não se dissociam para nós), mas o pedido para mostrarmos a cara lembrou um pouco aquelas investigações policialescas de quem quer saber quem é o efetivo culpado pelo crime, para, depois, puni‐lo exemplarmente. Vivemos numa democratura Pedro, basta uma rápida procura na internet para que nossas identidades venham à tona. Não somos, ainda, uma guerrilha (apesar de termos muita simpatia pelos antigos guerrilheiros).
Por fim, não se trata, é claro, apenas de um conflito geracional como o senhor sugere ao fim de seu artigo em resposta a nossas inquietações. Muitos de sua geração compartilham conosco o posicionamento de que a expressão “ditadura civil‐militar” é mais precisa para designar o que realmente aconteceu no Brasil dos anos de chumbo. É bom lembrar que não estamos sozinhos neste entendimento. Um historiador que respeitamos muito, Daniel Aarão Reis, publicou este ano um texto em que defendia idéias muito semelhantes às nossas: “são interessados na memória atual as lideranças e entidades civis que apoiaram a ditadura. Se ela foi “apenas” militar, todas elas passam para o campo das oposições. Desde sempre. Desaparecem os civis que se beneficiaram do regime ditatorial. Os que financiaram a máquina repressiva. Os que celebraram os atos de exceção. O mesmo se pode dizer dos segmentos sociais que, em algum momento, apoiaram a ditadura. E dos que defendem a ideia não demonstrada, mas assumida como verdade, de que a maioria das pessoas sempre fora — e foi — contra a ditadura. Por essas razões é injusto dizer — outro lugar comum — que o povo não tem memória. Ao contrário, a história atual está saturada de memória. Seletiva e conveniente, como toda memória.” Alípio Freire, jornalista e ex‐integrante da ala Vermelha, defende, com especial precisão e senso crítico: “Chamar o golpe só de militar camufla a questão de classe. Foi uma ditadura civil militar. É uma questão capital‐trabalho.”
O verdadeiro sentido de nossa época, ao procurar nas ruas (através do Cordão da Mentira e dos escrachos e esculachos) ou através das comissões da verdade e justiça, desvelar o que estava acobertado pelo tempo, é justamente ressignificar o que sempre se pensou de maneira tradicional. Nesse sentido, acreditamos que os usos de linguagem denunciam, profundamente, o que se entende pelo período que se quer caracterizar. A alteração da expressão “ditadura militar” para “ditadura civil‐militar” não é, assim, aleatória e parece, sim, responder aos anseios do “movimento histórico”: revisitar o passado para compreendê‐lo melhor tendo em vista a identificação de suas estruturas no presente e a construção de um futuro livre, onde a verdade possa ser conhecida por todos. Este é o real sentido de nossa atual luta pela democracia.

Coletivo Zagaia

domingo, 25 de novembro de 2012

Texto da Zagaia - a ditadura "civil-militar"


Uma resposta ao texto de Pedro Pomar


A construção da verdade ou da obrigação de combater a tradição, família e impropriedades
22/11/2012


É engraçado como a defesa de um ideal pode levar à cegueira de seu contexto. Beira quase a uma religião, com direito a discursos de autoridade para justificar sua visão numa repetição tântrica. Sobretudo quando um pretenso diálogo se inicia desqualificando como “moda” a perspectiva do outro. É o que acontece no artigo Um modismo equivocado de Pedro Pomar, onde o autor prima pela repetição ad eternum de suas "verdades" históricas através da desqualificação dos demais que delas não compartilham em uníssono.
No essencial, o texto "Um modismo equivocado" procura afirmar que a expressão “ditadura civil-militar” não passaria de um modismo, que desconsideraria anos e anos de estudos e uma pretensa tradição "consolidada!" que legitimaria o uso da expressão “ditadura militar”. É importante para o autor retirar o termo “civil” do meio de campo. Isto porque, embora reconheça o apoio cúmplice de entidades civis nacionais e estrangeiras, quem mandava matar, encarcerar e perseguir eram os militares e seus governantes. De acordo com sua retórica à moda antiga, o poder é daquele soberano identificado como o que manda, é quem assina as ordens. E neste sentido, não haveria nada no campo civil. Nos salões do poder executivo, a moda era a farda e não o terno cinza de seus cúmplices.
Claro, o autor não deixa de reconhecer, como jornalista que cumpre minimamente sua lição, o apoio de setores do capital nacional e estrangeiro. Faz parte de sua visão arcana reconhecer a ditadura como efeito do capitalismo. Lembra, inclusive, a entrada de personalidades civis no salão do Executivo, mas no período de “abrandamento”, com o presidente Figueiredo tendo como vice Aureliano Chaves (embora, estranhamente, esqueça de mencionar tecnocratas da economia como Roberto Campos e o neo-petista Delfim Neto, entusiasta dos governos Lula e Dilma. Ato falho?). Esquece que talvez o último período da ditadura seja o mais pernicioso e, neste sentido, violento, pois configurou uma anistia para os criminosos, assassinos e torturadores, e uma reconfiguração de poder em que as chagas foram escamoteadas e civis e militares envolvidos nos crimes do regime de exceção puderam seguir com tranquilidade suas vidas, numa pretensa democracia onde a ruptura com as estruturas do regime autoritário foram tênues e apaziguadoras.
Dada estas caracterizações, vamos às possibilidades esquecidas pelas "verdades" de Pomar. Se há algo que observamos neste período de abertura dos arquivos das ditaduras na América Latina é o grande lastro que a sociedade civil ofereceu aos campos militares. Não se trata apenas de um mero apoio a alguém que decide por conta própria. Trata-se por exemplo de financiamento direto à tortura, garantindo o sustento de muitos criminosos ainda hoje, como lembrou generosamente o próprio Cabo Anselmo em entrevista ao programa Roda Viva. Neste período, grandes conglomerados de comunicação se fortalecem e tornam-se hegemônicos, recebendo generosas somas de capitais dos governos autoritários, recompensadas com a exaltação ao Brasil que se formava sob a égide da caserna. É o período em que se consolidam muitos dos grupos que monopolizam as redes de informação até hoje na América Latina (no Brasil a Rede Globo, na Argentina o grupo Clarin, envolvido em sequestros de filhos de militantes desaparecidos). E por que não recordar a brutal e descontrolada invasão do capital estrangeiro em toda a América Latina, recompensa talvez aos generosos serviços prestados aos golpistas. Mais do que uma cumplicidade, elementos civis de diversas ordens, pois o capital é mais diversificado do que a estrutura militar, firmam um pacto em torno de uma sociedade baseada no progresso da indústria e no regresso da tortura. Beneficiam-se diretamente do autoritarismo, pois onde a exceção é a regra, a concentração é a norma. Esquecer este “casamento” significa apreender meias-verdades – pecado mortal para um historiador, erro de estudante de primeiro ano, falha imperdoável para quem se declara um militante de esquerda. O cidadão Boilesen agradece.
O problema central na retórica de Pomar está na concepção de poder que carrega ao separar o campo militar do civil. Se o poder é caracterizado por quem assina as ordens, então o papel da sociedade civil é necessariamente minimizado. Ora, é possível analisar o poder para além de uma relação de ordens, como um jogo de forças. Afinal, quem detinha (e detêm) os meios de comunicação, quem tornava concreto o aparato simbólico de exaltação ao regime, quem detinha os meios de produção, quem fabricava as máquinas de tortura e quem financiava os torturadores? Na visão à moda antiga, o poder militar mandava e desmandava, enquanto os cúmplices, temerosos por alguma represália, acatavam as ordens. Não havia planos da burguesia nacional e estrangeira no interior desta estrutura de poder. Daí a impressão de que os elementos da sociedade civil mais fervorosos, defensores da ditadura, eram exceções. Como se a estrutura do poder não transcorresse de um polo de forças mais amplo, mais diverso, com interesses menos monolíticos.
O Cordão da Mentira, bloco carnavalesco do qual fazemos parte, assumiu a nomenclatura “civil-militar” em seu desfile. Não porque estaria assim vestindo as cores da estação, mas porque, como sua trajetória revelou, estruturas civis existentes até hoje, como a TFP, a Folha de São Paulo e a faculdade Mackenzie foram ícones civis de apoio ao regime, e ostentam ainda respeitabilidade e poder a despeito da falta de auto-crítica à seu apoio a barbárie de nosso passado recente. Foi um ato pensado que, dentre tantos outros esculachos que assumiram também a nomenclatura “civil-militar”, na maioria promovidas por jovens que não fazem parte da geração de Pomar, refletiu uma relação histórica fundamental para compreender porque até hoje, os vínculos da ditadura civil-militar tem efeitos profundos. Queremos saber porque é tão difícil um país procurar estabelecer uma Comissão que investigue o passado sombrio de sua história. Queremos entender quais os vínculos das estruturas presentes com o passado, seja em nossos meios de comunicação, em nossos aparatos financeiro e indústrial, seja na lógica de extermínio que continua a reger o cotidiano de nossas periferias. Não é demérito do movimento querer reconhecer todos os personagens da tragédia. Também não é discordar de militantes mais aguerridos e menos retóricos, que identificam a ditadura apenas como militar. Este é um modo legítimo para codificarem suas angústias mas, ao nosso ver, insuficiente para compreendermos os impasses contemporâneos.
A reação de Pomar à nomenclatura “civil-militar" soa, enfim, exagerada. Por mais que sua retórica se dirija à defesa da Comissão da Verdade (e a Justiça??), construída a duras penas, e em início de atividades, pisando no campo minado que a ditadura nos deixou até hoje, afirmar o campo civil como parte da estrutura de poder ditatorial não é nenhum desserviço, apenas uma constatação já presente em vários países vizinhos.
Na insistência de separação entre civil e militar, num esforço dantesco que mais caberia às forças conservadoras do que à um declarado militante de esquerda, Pomar protagoniza um triste papel. Na ânsia cega de afirmar suas convicções, o oprimido torna-se mais radical do que o opressor. Torna-se surdo diante do movimento histórico e segue cantando sua ladainha. Denuncia assim os que não compartilham de suas ideias assentadas na autoridade de tempos ancestrais, assumindo a autoridade de quem detém a verdade para si e não dialoga com ninguém. Prefere atacar a nova geração do que repensar sua posição. Prefere atacar os jovens que clamam por verdade e justiça do que os aliados da ditadura, que continuam servindo-se das benesses do poder. Arroga-se para isso do discurso da tradição, posto ser neto de um dos combatentes fundadores do PCdoB (assassinado pelas forças da repressão no episódio conhecido como Chacina da Lapa).
Que virada espetacular! Típica da novela da Globo. Parabéns, Pomar, aos seus serviços! Os civis subtraídos da nomenclatura (civil)-militar agradecem à política do esquecimento. A memória seletiva será certamente recompensada. Uma nova excrecência, o peleguismo de esquerda, finca raízes na historiografia e na política, e a TFP ressurge como farsa, em seu espelho invertido à esquerda: a moda agora é Tradição, família e impropriedades!

Zagaia é um coletivo de criação, crítica e experimentação estético-política. É um dos grupos que organizam o Cordão da Mentira.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Pinheirinho - entre o Direito e a Política

Duas questões jurídicas e políticas essenciais incomodam no que diz respeito à desocupação do terreno do Pinheirinho, em São José dos Campos.


A primeira diz respeito ao conceito de técnica jurídica, a segunda, ao Estado de Direito.


Alguns juristas têm apontado que a decisão jurídica que autorizou a saída forçada das famílias da região, por meio de força policial, é tecnicamente irrepreensível. É preciso, então, retomar o que se entende por técnica jurídica e perguntar, até mesmo, no limite, qual é a finalidade última do Direito.


Se por técnica jurídica se compreender uma leitura infraconstitucional, meramente civilista, desconectada de uma concepção constitucional e humana de Direito, talvez a decisão seja realmente acertada. Ocorre que a correta técnica jurídica não consiste em simplesmente aplicar normas jurídicas, como por exemplo, a que diz respeito ao direito de propriedade, de maneira descontextualizada como se o direito fosse um mero jogo de encaixar, ou seja, aplica-se a norma fria, sem se preocupar com as consequências sociais e também sem se compreender o direito como um sistema de normas e não como uma mera soma de dispositivos normativos. Não se pode interpretar o direito de maneira fragmentária, interpretando partes dos códigos como se fossem o todo, ao sabor de interesses políticos altamente questionáveis.


Assim, mesmo o direito de propriedade, pedra angular de todo o sistema jurídico capitalista moderno, deve obedecer uma lógica interna dentro do sistema jurídico que estabelece, entre outras disposições, a lógica de sua função social. Além disso, é preciso atentar para o fato de que uma decisão jurídica não é uma mera assinatura em um pedaço de papel. Ela tem impacto social e significa, verdadeiramente, uma mudança na vida de pessoas de carne e osso. Assim, a chamada técnica jurídica não pode estar, de forma alguma, desconectada das consequências sociais da decisão. Não é uma correta técnica jurídica, então, simplesmente aplicar uma norma se esquecendo dos resultados que possivelmente decorrerão da decisão. O Direito deve servir as pessoas, não as pessoas devem servir ao Direito.


Qualquer interpretação jurídica que não se guie pela dignidade da pessoa humana, pelo valor do indivíduo socialmente pensado, não pode ser correta do ponto de vista técnico. É sintoma de nossos tempos acreditar que é tecnicamente correta a decisão que promova desabrigar nove mil pessoas para possibilitar um suposto direito de propriedade de alguns. A questão é que 180 milhões de reais parecem valer mais que a dignidade de abrigo destas pessoas. Simples assim.


Aos juristas que, então, elogiam ou se contentam com esta técnica jurídica específica, é bom dar um recado: não existe técnica sem ideologia.


No que diz respeito ao Estado de Direito, conceito que serve aos mais variados propósitos, a questão não é menos desconcertante. Algumas pessoas acreditam, infelizmente, que se uma decisão não for cumprida, custe o que custar, o Estado e suas estruturas não estarão seguros. A segurança jurídica, para alguns, é valor dos mais caros. Isto também é sintoma de nossos tempos. Voltar ao mote: “ordens são ordens”.


O que se deve questionar, na verdade, é outra coisa.


Qual o valor real que devemos perseguir quando falamos em Estado de Direito?


Trata-se de um conceito que aponta para a segurança das instituições socialmente estabelecidas e, assim, deve ser preservado via força policial ou para os direitos das pessoas a terem uma vida digna? Não pode existir um Estado de Direito que desrespeite a dignidade da pessoa humana. Quando o governo estadual decide, via força policial, retirar as pessoas de suas casas para fazer cumprir uma ordem judicial nós não estamos diante de um problema que simplesmente possa ser resumido como “cumprir a lei”. Isto porque, na verdade, cumprir a lei, neste caso, parece ser exatamente o contrário: não retirar as pessoas de suas casas, não permitir que a especulação imobiliária seja maior que a vida.


A verdadeira segurança jurídica é a que promove direitos, não a que possibilita privilégios.


Tomando por base as recentes ações policiais que vemos na mídia, requisitadas pelo governo estadual sob a suposta alegação de “cumprimento da lei”, podemos dizer que, talvez, nós nunca estivemos tão inseguros. 


É preciso, a todo momento, lembrar que a segurança de alguns, possibilitada pela intocável política de preservação da propriedade privada significa, para todos os demais, a mais completa insegurança. As notícias de que as famílias que habitavam a região do Pinheirinho estão em situação degradante, completamente desamparadas pelo mesmo Estado que as desabrigou,  devem causar revolta em qualquer um que realmente acredite em um Estado de Direito.


No fundo, a insistência em retomar a ideia de técnica jurídica e a de Estado de Direito como conceitos que devem organizar a vida social tem uma função bastante clara, no que diz respeito ao incidente em Pinheirinho: legitimar a injustiça. E, assim, mais uma vez, o governo estadual nos obriga a repensar a questão que realmente importa no que diz respeito à relação entre política e direito: afinal, de que lado nós estamos?