domingo, 26 de março de 2017

A Reza, 1930 (Man Ray) ou Como Contar os Dedos do Pé com o Próprio Cu




  
         Entre o claro e o escuro há um pouco de corpo. No escuro, nada podemos ver; no claro, vemos demais.
O erotismo é uma arte traiçoeira. Pode parecer, à primeira vista, que consiste em mostrar sem revelar a imagem por completo, mas, na verdade, consiste em um jogo de esconder. É o que se oculta que provoca o desejo, não o que se mostra visível.
Esta fotografia, no entanto, é erótica às avessas.
O corpo se contorce e dobrando-se sobre si mesmo dá a impressão de uma posição que, se não for impossível, é certamente improvável. Toda a obscenidade da imagem não está no que não vemos. De maneira desconcertante, é exatamente o que encobre os orifícios deste corpo o que faz a imaginação flutuar. O inusitado é que, neste caso singular, o que se vê claramente é que remete ao erótico.
Pois, há algo de excessivo em todos aqueles dedos.
Os orifícios cujas imagens nos são negadas, que poderiam apontar para o apelo sexual do instantâneo, não são, a bem da verdade, o que importa na representação. São os dedos, escancaradamente nítidos, que provocam o pensamento a tomar certas formas mais sensuais.
Os glúteos, são excessivamente redondos. Também são demasiadamente brancos. Lembram uma maçã que perdeu a cor. E na composição da totalidade da imagem, junto aos dedos que estão em escala de cinza, correspondem a uma corporalidade quase que meramente sugerida. Mas, a imagem está perceptivelmente completa, mesmo que tenha algo de menos corpo no que foi retratado.
Os pés estão juntos, mas os vemos pela metade. Estão profundamente inertes. É a sombra dos glúteos o que os coloca no limiar entre o claro e o escuro. Porém, podemos ver todos os dedos. Existe algo de profundamente obsceno em tentar contá-los. É no momento exato em que examinamos se todos os dedos estão aparentes que somos pegos por uma sexualidade menos sutil e mais evidente. Todo escândalo que advém desse jogo de somar os dedos dos pés consiste, paradoxalmente, no fato de que, nesta imagem, é o esforço de minúcia, que induz ao sexual. Na foto, os pés e as mãos são de uma nudez mais provocativa do que os orifícios que tentam esconder. É preciso perceber isso. Por trás das mãos e pés, que inclusive nos enganam quando pretendem não ter nada a ver com a posição corporal inusitada, algo de sexual se insinua. 
O sexo está no detalhe.
As mãos que pretendem esconder os orifícios são quase que exclusivamente dedos. Dedos que, ao contrário dos pés, podem se movimentar. A imagem é estática, como não poderia deixar de ser, mas, o sugestivo está justamente em imaginar estes dedos em movimento. Dedos que tentam nervosamente esconder o sexo. Existe, inclusive, uma vontade de que os dedos, dada a posição que estão, não consigam cumprir seu papel no jogo de esconde e fiquem se movimentando, uma mão sobre outra, de modo que quando conseguem cobrir uma parte do sexo, acabam, invariavelmente, por deixar outra parte comprometedora descoberta.  
Além disso, não é exatamente alguma forma de toque o que precipita uma fantasia mais imaginativa. É a disposição dos dedos.
Dedos sobre dedos.
As mãos podem até ser nervosas, mas os pés são calmos. Reclinado como em uma forma de reza, o corpo é contraditório. Os pés juntos, com seus múltiplos dedos, podem até sugerir ave-marias se o caso fosse o de rezar. Se não provocassem, maliciosamente, na sua visão, certa inclinação para verificar se todos os dedos estão realmente ali. Mas as mãos, com a sobreposição de dedos sobre dedos, denunciam evidentemente, certas vontades menos religiosas.
  


sábado, 11 de fevereiro de 2017

Rrose Sélavy, 1920/1921 (Duchamp/Man Ray) ou Mulher de Tempo Lento




  
I

         O chapéu é por demais inusitado, personalíssimo, e chega mesmo a ser ousado, quase insolente, se levarmos em consideração o fato de que é composto basicamente por figuras geométricas dispostas de uma maneira aparentemente aleatória.
         Claro que isso já é uma forma de impostura, uma vez que toda geometria que se pretenda aleatória é, em verdade, a própria negação da geometria. Há sempre um princípio organizador nas formas geométricas, elas são avessas ao caótico, de modo que basta decifrar sua lógica interna para inviabilizar a sensação de que essas formas possam ser dispostas sem alguma espécie de simetria própria.
         Porém, os desenhos no chapéu dessa mulher-enigma, basicamente compostos pelas ocasiões do negro no branco ou vice-versa, são misteriosos a seu modo e decifrar o seu padrão é tarefa difícil.
         As figuras no chapéu parecem escapar – quando fixamos uma das formas, outra delas dá a impressão de sorrateiramente começar a se ocultar.
         Por isso, talvez, alguns dizem, inclusive, que estabelecer como se deslocam essas formas, essa brincadeira de esconde, é a melhor maneira para começar a compreender essa mulher.
         Existe, na essência do chapéu, um jogo geométrico entre o visível e o invisível que potencializa o caráter misterioso da fotografia. Mas, obviamente, os defensores dessa tese – os “analistas do chapéu” (como ficaram historicamente conhecidos) – são aqueles mais tendentes a matematizar a condição humana, e se esquecem, com frequência, de investigar, na sua ânsia por delimitar quadrados, retângulos e triângulos, outros aspectos da imagem desconcertante da mulher na fotografia.

II

Olhar o próprio observador, perfurar o espectador, olhar para além e não enxergar propriamente ninguém.

III
          
         Há algo naqueles dedos que sugere indiscutivelmente a feminilidade. Não é, como poderia se pensar, o fato de serem menores e mais finos que os dedos dos homens, com suas mãos maiores e mais brutas. Tampouco é a presença dos anéis o que nos certifica que se trata de uma mulher.
          É o modo como foram capturados pelo instantâneo.
Levemente dobrados, sutis, delicados ao tocar o casaco de pele. Dedos que sugerem movimentos mais suaves, talvez menos bruscos. Dedos que fazem manha, que delongam as ocasiões, e que são menos objetivos ao cumprir a tarefa de levantar a gola do casaco de pele. Dedos de tempo lento, habituados aos caprichos próprios à atuação, sempre demorando em completar cada movimento, como se cada ação fosse uma espécie de performance.

IV

Somente uma lente objetiva poderosamente aguçada poderia registrar o exato segundo em que Rrose está propositalmente se atrasando alguns breves instantes para fazer qualquer coisa absolutamente irrelevante: tudo se passa efetivamente na cadência distendida de um momento meticulosamente alargado.

V

Toda e qualquer mulher, de maneira absolutamente manhosa, atrasaria o ato de arrumar o casaco de pele apenas alguns breves instantes só para ser registrada na fotografia como uma mulher ligeiramente manhosa atrasando o ato de arrumar o casaco de pele apenas alguns breves instantes antes de fazer alguma coisa de importância sabidamente superestimada.

VI

         É preciso não estar entendendo absolutamente nada se o caso é o de indagar se a mulher da fotografia é uma atriz ou não. Se ela está indo ao teatro ou se acaba de sair de cena.
         Em um sentido muito particular, toda mulher é ela mesma e, ao mesmo tempo está sempre em cena.
          O mais interessante da fotografia, na verdade, é outra coisa.  
Ela enigmaticamente nos lembra de algo sobre as mulheres que vez ou outra deixamos escapar e que pode passar despercebido inclusive por elas, acostumadas a simplesmente agir da maneira habitual. A fotografia é de Rrose, mas bem poderia ser de qualquer mulher representada em um momento em que se arquiteta propositalmente, mas de maneira natural, as formas corporais e espirituais que compõem aquilo que chamamos de feminilidade.
         Talvez o segredo dessa fotografia seja que ela consegue retratar perfeitamente, na captura do instantâneo, uma mulher em um momento de verdade absoluta. Em performance ou não, o que no fundo é a mesma coisa, a mulher que busca a plenitude feminina é aquela que não se cansa de atuar, no teatro da vida, de acordo com aquele sonho maravilhosamente impossível que ela mesma inventou para si.


domingo, 29 de janeiro de 2017

Diagnóstico Preciso, um conto de Rodrigo Suzuki Cintra


         Cheguei, como de costume, atrasado para a sessão. Claro que eu não gostava nem um pouco de ir lá todas as semanas. Mas, meu comportamento, pelo que diziam, exigia intervenções maiores.
          Ele estava me esperando. Nunca perguntava o motivo de meus atrasos. A verdade é que eu me atrasava só para ver se ele ia falar alguma coisa. Nas nossas conversas, invariavelmente, somente eu falo. Não é bem, então, o que se poderia chamar de uma conversa. Mas, essa parece ser a técnica da coisa toda. Sabia que aquela seria a última sessão. Eu já não aguentava mais aqueles truques intelectuais baratos e além disso, no fundo, tudo que bastava era só eu não querer mais aparecer por lá. Ninguém me levaria à força, obviamente. Avisei, por respeito, mas sem maiores avisos, que seria nosso último encontro. Ele concordou. Não falou nada. Apenas acenou afirmativamente com a cabeça. Eu estava me lixando para tudo aquilo, então, já de saída na porta, antes de dar a despedida final, resolvi fazer alguma pergunta cínica – daquelas típicas coisas que adoro fazer. Eu ia fingir, pela última vez, que me interessava por aquelas conversas: ia simular um interesse no meu próprio caso (como se eu, no fundo, não me conhecesse melhor do que ninguém).
          “Doutor, diga-me com franqueza, qual é o seu diagnóstico?
          Ele me olhava fixamente, mas, não parecia querer falar. Decidi, então, pressionar um pouco: “Eu já venho aqui há muito tempo. Acho que o mínimo que o senhor poderia fazer é ser sincero comigo.”
          Então, ele respondeu: “Você é um impostor!”
          Resolvi investigar melhor a afirmação. Era a nossa última consulta, e afinal, aquilo era uma tese um pouco estranha. Disse: “Mas, doutor, por que diz isso?”
      Ele respondeu prontamente dessa vez: “Você anda se fazendo passar por você mesmo!”
          Não respondi. Desci pelo elevador. Saí para o sol. Atravessei a rua fora da faixa de pedestres. Dobrei a primeira esquina à direita. Não pensava em nada. Eu estava indo a pé para algum lugar qualquer. Talvez, para casa. Dobrei à direita. Estava, de fato, até mesmo feliz, afinal, estava me livrando de uma chatice das boas. Pensei, inclusive, em dar uma passada em algum boteco. Talvez eu devesse, inclusive, comemorar. Eu até que gosto de beber sozinho em botecos sujos. Dobrei à direita e fiquei a olhar o sol, os pássaros, até as nuvens me encantavam com seus formatos inesperados. Comecei, também, a olhar fixamente para as pessoas que passavam por mim. Atravessei a rua na faixa de pedestres. Caminhei alguns metros. Subi de elevador. O corredor era longo e estava escuro. 
          Cheguei, como de costume, atrasado para a sessão.

domingo, 22 de janeiro de 2017

Personagem a uma Janela, 1925 (Dali) ou Uma ideia Extravagante




         
I

          As ondas do mar, a passagem das nuvens no céu, o vento a produzir vincos nas cortinas, o movimento do vestido, tudo isso foi pintado apenas para combinar com os cachos do cabelo.

II

          Ela é bela. E seu retrato é feito às avessas. Em um retrato pode ser possível exprimir toda a biografia de uma pessoa. Os retratos são imagens que descrevem a expressividade. Em todos os casos, são a representação da face e, às vezes, da visão frontal do corpo. Ela, no entanto, é retratada de costas. Há uma originalidade nisso porque, com efeito, a ideia parece dar certo. Seu retrato está nos cachos malcriados de cabelos escuros, no modo como uma de suas pernas se dobra gentilmente para trás e fica na ponta do pé, o que lhe dá um ar de mulher fantasiosa. Na maneira como ela apoia firmemente os dois braços na janela para olhar – como todos os dias faz –, para fora de casa. No modo como o corpo bem esculpido modela um vestido barato qualquer. Nas pernas parcialmente descobertas, mas que apontam suficientemente para sinuosidades e que nos dão vontade de imaginar como seria o resto do corpo sem o vestido. Em uma cintura mais fina que os glúteos absolutamente carnudos e sugestivos.
É o retrato de uma mulher possível.
Porém, não conhecemos ninguém exatamente assim e tudo que podemos fazer é contemplar a imagem e sonhar com um encontro inesperado e improvável com uma personagem que habita exclusivamente o mundo das representações.  

III


É preciso conter o mar, enquadrar o céu, impedir a ação do vento, enfim, desrespeitar, no recorte da janela, a plenitude de todos os elementos essenciais, mas representar a suavidade tensa dos cachos do cabelo enigmáticos, a paixão inesperada de glúteos convidativos e a imaginação infinita de um pé direito sonhador. Uma ideia realmente extravagante seria beijá-la nervosamente na nuca, se perder nos cabelos encaracolados, levantar parcialmente seu vestido e colocar seu corpo na ponta dos dois pés.  

terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Celebes, 1921 (Ernst) ou Breve gesto com Luva Vermelha




Escrito em João Pessoa (07/11/14)





I

          Um céu com texturas compostas de tonalidades variadas de azul denuncia, por oposição, a terra desolada.
Apesar de a imagem estar preenchida em quase toda a sua totalidade por uma criatura-estrutura gigantesca e singular, temos a impressão que a área ao seu redor, caso pudéssemos vê-la à distância, seria desértica.
          A máquina-animal que está no centro da cena é particularmente única. Pelo menos, e disso estamos certos, é a única que pode ser vista nas proximidades.
          Há algo de aço na robustez dessa coisa-coisa. E mesmo que exista qualquer elemento orgânico em sua estrutura, isso deve, provavelmente, também ser feito de algum material metálico, sem dúvida.
          Alguns apostam, sem titubear, que se trata de um elefante muito particular. Outros, que é, certamente, um tanque de guerra pronto para o combate. De qualquer modo, veículo ou animal, trata-se de um artefato ou de um ser extremamente curioso.
          Aqueles que sustentam a tese de que se trata de um elefante, apontam para a existência de uma tromba que, curvilínea, causa mais impressão pelo fato de não parecer funcional do que pela sua posição. Ela não parece ter começo nem fim. Está ligada ao mesmo tempo ao corpo do elefante e a cabeça do animal, o que impossibilitaria o seu uso. Mas, parece perfeitamente adequada a composição, apesar de ser, se assim o for, plenamente inútil.
          Para os que estão certos de que se trata de um veículo de combate, é claro que a estrutura curvilínea a que os outros chamam de tromba corresponde ao canhão do tanque. Um canhão meio inusitado pois, a princípio, é menos rígido do que se esperaria de uma máquina de artilharia pesada.
           A cabeça da criatura-estrutura possui chifres e dentes de latão e está separada do corpo ligando-se a este pela tromba, ou se arriscarmos outra interpretação, pelo canhão.
          Dois elementos, no entanto, chamam atenção e apontam, cada um a seu modo, para interpretações divergentes. Uma espécie de chaminé feita de peças de metal colorido disposta logo acima da estrutura sugere que essa é mais um veículo militar que um elefante em potencial. Porém, em contraposição, do lado esquerdo da criatura, duas presas se projetam do corpo, dando a entender que se trata de um elefante particularmente especial e não de uma máquina de guerra.
          Às vezes, devido à posição das presas, temos a impressão de que a cabeça verdadeira do animal está escondida pelo seu corpo e que o que podemos ver na figura corresponde à sua parte traseira. A tromba, assim, se transforma em rabo e a criatura toda parece ser ainda mais enigmática visto que teria, nesse caso, duas cabeças.

II

Com um gesto gracioso, o corpo da mulher sem cabeça domina o primeiro plano da pintura, apesar de quase ninguém reparar nela. Sua imagem está recortada pela própria tela e seu corpo muito branco, sem sombra de dúvida, está completamente nu. Não há dúvida de que deve ser uma mulher muito bela, mas, de qualquer modo, sua representação completa foi sequestrada pela lógica do quadro. Talvez o gesto que ela faz com um dos braços, delicado e preciso, sugira que se trata de uma bailarina. Inadvertidamente, sempre que estamos em dúvida, pensamos que são bailarinas. A mulher certamente não está inerte e o movimento do braço não poderia estar completo sem aquele gesto absolutamente característico da sua mão que, atrevida e de propósito, deixa-se levar por aqueles modos caprichosos exclusivamente femininos que causam admiração, proporcionam beleza e são extremamente sedutores. É evidente e perceptível que a ausência da cabeça nessa figura não se dá pelo recorte da tela. Sentimos, em um primeiro momento, a sua falta. Porém, a delicadeza do gestual (e os seios perfeitos...) nos cativa logo após um segundo exame e não conseguimos pensar em nenhuma cabeça específica que pudesse ajudar a dar um significado maior para o modo como ela foi representada. A ausência de cabeça, de certa maneira, facilita a imaginação – pois leva a pensar qual rosto de mulher nos vem à mente quando o caso é o de tentar preencher uma face que a própria imagem nos negou. A brancura do corpo da mulher, a perfeição do volume de seus seios e a ausência de cabeça produzem um impacto profundo em quem se propõe a olhar essa bailarina de um modo mais detido. Essas características do corpo da bailarina quase que fazem com que não nos preocupemos em perceber a luva que ela veste em uma das mãos. Talvez fosse possível dizer, por causa disso, que a mulher não está completamente nua – a luva ainda esconde algo de seu corpo. Porém, essa seria uma visão severamente equivocada. Pois é justamente a luva, em cores vivas, a contrastar com a brancura do corpo, que garante a nudez total.

III

Ao ocupar quase que a totalidade da tela, a coisa-coisa, criatura-estrutura, elefante-tanque tem matizes escuros, em tonalidades de cinza. Podemos ver toda a sua proporção a partir do ponto de vista em que nos encontramos como observadores. Estamos em ângulo privilegiado, bem de frente para este monstruoso constructo.
 Sua disposição aponta para a inércia, parece estar parado, e sua estatura e volume, sem dúvida, nos remetem ao peso. Pode bem ser que se trate de uma máquina de guerra singular, um elefante-tanque, e, nesse caso, a impressão de que o cenário para além dos limites da tela, caso pudéssemos vê-lo por completo, seria de pura desolação confirmaria a sensação de que a estrutura em questão serve mais à destruição do que à vida.
Sua existência, como potencial máquina de guerra, uma estrutura do extermínio, é intrigante porque estranhamente dá a sensação de operar de maneira autônoma, sem intervenção humana. Como se fosse uma mecânica que, de alguma forma, se bastasse.
A mulher-bailarina é branca. Muito branca. Seu corpo está incompleto, em muitos sentidos – a mulher não é retratada da cintura para baixo. Inclusive, estar ao mesmo tempo dentro do campo de visão do observador e fora de seu campo de visão, é estratégia fundamental para destacar sua movimentação. Ela está na extremidade direita da pintura, mas em primeiro plano, e contrasta visivelmente com a centralidade do tanquedeguerraelefante. Tudo nela aponta para um suave deslocamento. Bem pode ser que ela esteja ensaiando para uma apresentação de balé.
A estrutura ao centro é, sem dúvida, composta de aço, metal e ferro; já a bailarina, é feita de carne e sua estatura pequena, leve e magra entra em conflito com o tamanho avantajado, o peso e o porte avolumado da criatura.
          Mas, se a contradição é evidente, não se sabe ao certo se é a possibilidade de dança ou a possibilidade de destruição o que está fora do lugar na tela.
          E, talvez, alguns críticos mais atentos sugiram que, no fundo, as duas hipóteses correspondem à mesma coisa na lógica da composição.

IV


Em um céu de texturas elaboradas em tonalidades variadas de azul, em uma terra desolada, em um solo em que a sombra nada revela, ao meio de três elementos viris que brotam do chão, entre um peixe e outro voando no céu, entre o cinza e o branco, peso e leveza, inércia e movimento, aço e carne: a tensão entre a tromba e o seio.

O Mês das Vindimas, 1959 (Magritte) ou Do Lado de Fora de Mim Mesmo






          Existem dois homens iguais ao meio de cinco homens iguais. Eles se vestem de preto.
          Existem cinco homens iguais ao meio de sete homens iguais. Eles usam chapéus.
          Existem sete homens iguais ao meio de onze homens iguais. Eles usam gravatas.
         Existem onze homens iguais ao meio de vinte e três homens iguais. Eles estão em pé.

          Existem vinte e três homens iguais ao meio de vinte e três homens iguais. Eles estão do lado de fora da minha janela. Mas só um me incomoda.

A Galeria Invisível







Para mim não existe diferença entre o sonho e a realidade. Eu não sei nunca se o que faço é produto do sonho ou do estado despertado.
Man Ray

É preciso ter uma ideia do que se irá fazer. Mas deve ser uma vaga ideia. 
Picasso

Loucura sim, mas tem seu método
Hamlet, Shakespeare


Existe um gênero literário clássico, uma antiga técnica grega, chamado ekphrasis, para muitos uma forma morta, que consiste em descrever uma obra de arte com a maior exatidão possível, de modo a tornar factível a quem nunca a viu efetivamente poder enxergá-la com os olhos da alma, como se estivesse bem na sua frente. Há, nessa forma, um exagero de cálculo na descrição. Tratei de compor os textos deste livro, que no fundo é um apanhado de fragmentos, influenciado por essa maneira, se bem que por vezes me arrisque a narrar histórias possíveis ou dissertar livremente sobre o valor de alguma obra específica. Por se tratar exclusivamente de fragmentos que partem de ekphrasis de obras dadaístas e surrealistas, conforme escolhi, certamente a lógica do real, imperativo típico dos homens sem imaginação, cede a um modo de contemplação e composição um pouco mais fantasioso e particular. Por certo que as descrições, as criações e as argumentações que partem desses tipos de obras jamais poderiam ser fiéis completamente se, de algum modo, não fossem ligeiramente malcriadas e não estivessem no limiar entre razão e emoção, precisão e irreverência, sonho e realidade.



Para minha querida Allegra, pois seu papai, com amor e muito carinho, deseja que sonhe sempre o impossível.

PROJETO - A Galeria Invisível

Amig@s,

Vou publicar, quinzenalmente, um livro-projeto intitulado "A Galeria Invisível" na Revista Zagaia (online). É um livro que se situa entre o ensaio ficcional e a crítica de arte. A concepção do projeto e os dois primeiros posts já estão na Revista. Convido todos a ler o que postei e a acompanhar periodicamente essa experimentação. Abs e Bjos.


quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Citação do Mês - Dez/2016

"A arte não é um espelho para refletir o mundo, mas um martelo para forjá-lo"


Vladimir Maiakóvski