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domingo, 10 de maio de 2015

A Importância de ser Infiel ou A Dama do Cachorrinho



Rodrigo Suzuki Cintra

“A sua dama causou-me tamanha impressão que, apenas a conheci, quis trair minha mulher, sofrer, brigar etc.”
Górki em carta para Tchekhov em 1900.

            Uma história de adultério, na literatura e na vida, virada do avesso, pode ser também uma história de amor.
            Em poucas obras essa transição entre a simples traição e um verdadeiro amor aparece de maneira tão instigante quanto no conto A Dama do Cachorrinho de Anton Tchekhov. Há quem divida esse conto em partes (o próprio autor o fez) e demonstre na estrutura narrativa como uma paixão de ocasião se transforma no amor de uma vida. É como se Gurov e Ana, os personagens principais, ficassem desculpados por traírem seus respectivos cônjuges, pois, no fim das contas, percebem que se amam de verdade. O leitor, então, também se sente desculpado por torcer pelo sucesso dos encontros furtivos dos dois: “está tudo certo, afinal, eles se amam!”
            De minha parte, não posso dizer o mesmo. Curto cada etapa do texto: o seu tempo próprio. Desde o começo do relacionamento, ainda um momento em que a vontade titubeia, até a certeza de um amor pleno que a vontade não pode negar. E, pior: aprecio os parágrafos apaixonadamente, e com malícia.
 Gosto da maneira como Tchekhov traça em poucas linhas, em uma ou duas páginas no começo do conto, toda a armação que sustentará o adultério. E quando sinto prazer em ler essa passagem, não estou me importando nem um pouco se o caso extraconjugal será legítimo do ponto de vista amoroso. A questão não se propõe nesses termos para mim. A verdade é que o autor sabe perfeitamente conduzir o tempo interno da narrativa. E o melhor a fazer é nos deixar conduzir pelo ritmo do namoro. Tchekhov traça o perfil de Gurov com tamanha nitidez, com perfeita precisão em breves frases, que torna fácil para nós compreendermos os motivos que levam o personagem a trair reiteradas vezes sua esposa.
E quando Tchekhov descreve as caminhadas a sós, os beijos roubados, os abraços às escondidas e coloca tudo aquilo em uma cidade que não é a moradia regular dos amantes, enfim, quando situa tudo com um sabor de férias, é impossível não recordarmos de nosso próprio passado, de nossas paixões de estação. E ao percebermos a intensidade e a sinceridade dos encontros secretos dos personagens, lemos tudo aquilo com um sorriso no canto da boca. Pelo menos eu assim o faço. Tchekhov simplesmente nos toca, muitas vezes, porque faz lembrar, através de uma literatura sem rodeios e de estrutura simples, de sentimentos e momentos que nós, leitores, muito bem podemos reconhecer.
            E a narrativa vai crescendo em emoção de uma maneira nesse conto que é difícil traduzir. Quanto mais Gurov percebe que está perdidamente apaixonado por Ana, o que ele não desconfiava que pudesse acontecer dada a sua vasta experiência nos casos de amor proibido, mais o leitor se comove e participa dos sentimentos do personagem. Invariavelmente, começamos a torcer por aquele amor que não deveria efetivamente acontecer. Somos levados, por meio de uma escrita que não só diz respeito à paixão mas que em si mesma seduz, a desconsiderar os deveres tradicionais de fidelidade vigentes na estrutura moral da vida social. E então, absolutamente sinceros, queremos ler naquelas linhas bem traçadas que o amor pode vencer as convenções.
            Talvez seja justamente quando alcançamos esse ponto, quando estamos já embriagados por aquela escrita, que uma consideração inevitável, situada mais ou menos no meio do conto, de consequências devastadoras, sempre que a lemos causa algo de incomodo. Por que, muitas vezes, o que há de mais importante para nós, o que existe de mais verdadeiro, o que pode nos traduzir completamente, o que realmente importa de verdade, tem que ser ocultado em nossas vidas? Por que escondemos nossos desejos mais sinceros? A vida pulsante que encobrimos propositalmente é milhares de vezes mais franca, importante e essencial que nossa existência social regrada, sustentada por aparências e etiquetas dos bons costumes feitas de pura dissimulação. Isso é uma verdade que qualquer um pode perceber. Mas, o que fazemos? Persistimos na vidinha sem sobressaltos, na lógica do fingimento cotidiano, na morte de nossos desejos mais profundos, e tentamos sustentar, a todo custo, aquilo que os outros esperam de pessoas sensatas como nós.
Somos apenas coadjuvantes na peça de teatro de nossas próprias vidas.   
Muitos leitores questionam os desfechos dos contos de Tchekhov. Há algo de anticlímax. Um não-desfecho. É que depois de ter alcançado às alturas nas breves considerações sobre a natureza humana, ao relatar os sentimentos do personagem principal de maneira tão pungente, ficamos a esperar um desfecho igualmente estratosférico. Mas, não é isso que o autor requer de nós. Seus desfechos são um verdadeiro balde de água fria. Meio que não sabemos para onde ir. Não sabemos, ao certo, se gostamos ou não. Mas isso ocorre, é claro, porque o conto não poderia caminhar no mesmo ritmo até o fim. Uma história desse nível, contada dessa maneira, uma imensa afronta a nossa tendência de fingir para todos, se continuasse na mesma cadência até a última frase, certamente nos destruiria. Uma história que nos lembra, a todo momento, que fingimos para nós mesmos, que não aguentamos levar às últimas consequências as próprias paixões, sejam elas quais forem. Uma história que, a bem da verdade, acaba por nos denunciar: já não podemos mais, mas bem queríamos ter um amor como aquele. 

E, no entanto, Tchekhov precisava terminar de algum modo e sabia muito bem o que estava fazendo. O desfecho do conto é desconcertante. Menos porque não aponta para uma solução para que o casal fique junto - Gurov fica se perguntando “como?, como?, como?” -, mas porque nos lembra, invariavelmente, de nossos amores passados, daqueles casos que não sabemos ao certo o que foi que realmente aconteceu. As histórias de amor acabam. Na literatura e na vida. E nem sempre acabam bem resolvidas. 

sábado, 25 de abril de 2015

Os Pássaros de Kafka - Parte 2



III – Um voo profundo


Um abutre estava bicando os meus pés. Já havia despedaçado as minhas botas e as meias, agora atacava os pés. Bicava-os com ferocidade, circundava-me sem trégua, e continuava o trabalho.
Franz Kafka, O Abutre


            Não sabemos nada sobre os motivos que levaram o abutre a bicar violentamente o narrador. A história já começa com os ataques deste pássaro. Pode ser que o personagem tenha cometido algum crime contra os deuses, tal qual Prometeu, condenado por ter roubado o fogo de Zeus e tê-lo entregue aos mortais, a ter o fígado comido eternamente por uma águia. Porém, em se tratando de Kafka, é bem possível, talvez quase certo, que o narrador não tenha cometido mal algum. O abutre simplesmente chegou e começou a bicar, conforme relata o personagem. A história inteira pode ser resumida em poucas frases. Um abutre que bicava ferozmente os pés do narrador escuta uma conversa entre esse e um cavalheiro. O cavalheiro, com a intenção de ajudar o torturado, se propõe a pegar uma espingarda para matar o abutre. Porém, compreendendo perfeitamente toda a armação para liquidá-lo, em um último ataque fulminante, o abutre arremessa, qual lança, o bico pela boca do protagonista.

            O que chama a atenção neste breve conto de Kafka é o ritmo da narrativa, uma capacidade de contar uma história inteira em poucas linhas e estabelecer uma quebra com a lógica das imagens surpreendente. Ao longo da narração, somos levados a imaginar concretamente cenas possíveis, porém, o conto termina com uma abstração, uma verdadeira negação da imagem e provoca a impressão de que tudo que podemos fazer é compreender, mas não imaginar.

            Podemos visualizar claramente a figura do abutre a dar voltas pelo céu e investir com seu bico nos pés do personagem principal. Também a conversa entre o narrador e o cavalheiro, conversa em que esse promete pegar uma espingarda e liquidar com o pássaro, pode ser perfeitamente idealizada. Porém a história, em dado momento, impede a possibilidade de representarmos imageticamente o que nos é narrado. É possível até imaginar o voo preciso em que o abutre mergulha dentro da boca do narrador: uma imagem violentíssima. No entanto, as últimas palavras são decisivas para a avaliação do valor deste texto: Caí para trás, aliviado ao sentir que ele se afogava irreparavelmente no meu sangue que inundava todos os abismos, cobria todas as praias

            De maneira surpreendente, o abutre que a princípio parecia que liquidaria o personagem-narrador, até mesmo porque se arremessa após inclinar-se bem para trás a fim de tomar impulso e mergulhar como uma lança o bico pela garganta do personagem, nas últimas linhas do conto, morre afogando-se irreparavelmente. Mas, como imaginar de maneira efetiva um abutre se afogando sem salvação no sangue dentro de um homem? Um afogamento em que o sangue deste homem inundava todos os abismos, cobria todas as praias.

            Kafka, ao fim de seu conto, na última sentença, inverte a lógica estabelecida durante toda a narrativa. Não só porque nos nega brilhantemente a possibilidade de compreendermos e representarmos o desfecho final por meio de imagens, mas porque inverte a lógica da violência, estabelecendo no sangue, por dentro do homem, a possibilidade de destruição daquilo que o atacava. Existe aqui uma verdadeira fusão da corporalidade. O inimigo externo, o abutre, se infiltra por dentro do homem após penetrar em voo rápido e certeiro pela boca do narrador. Torturador e torturado identificam-se, ao fim da história, corporalmente, no limite do próprio sangue, e, talvez somente assim, possam compartilhar do mesmo implacável destino.

            O personagem-narrador sente-se, de algum modo, aliviado. Ninguém mais lhe bica os pés. O abutre se afogou irreparavelmente dentro de seu sangue. A história, então, pode terminar abruptamente. Mas é claro que, dentro da estrutura narrativa montada por Kafka, a morte do abutre não significa a vida do narrador. 

sexta-feira, 24 de abril de 2015

Em sala de aula - Breves impressões e notas de um aluno de Tercio Sampaio Ferraz Junior

Rodrigo Suzuki Cintra

“Perguntei a um homem o que era o Direito. Elle me respondeu que era a garantia do exercício da possibilidade. Esse homem chamava-se Galli Mathias. Comi-o”
                              Oswald de Andrade                                                                          

            A epígrafe deste ensaio pode ser encontrada na Teoria da Norma Jurídica de Tercio Sampaio Ferraz Junior. Seu conteúdo, um tanto jocoso, já denuncia, logo de saída, os discursos jurídicos herméticos, o palavrório legal, as definições jurídicas confusas[1]. O que a antropofagia de Oswald faz é quase uma impostura: quando os tecnocratas do direito pensam estar falando sério, mas, de fato, apenas produzem um discurso ininteligível, o melhor a se fazer é fazer graça.
            E ao mesmo tempo, esta citação está em um dos livros mais importantes produzidos por um dos nossos mais fundamentais juristas.
A questão, nos parece, está para além do bom-humor. A pergunta inicial de Oswald na citação em pauta está longe de ser ingênua. Afinal, o que é o direito?
            Um professor de Introdução ao Estudo do Direito tradicional não vacilaria, nem por um instante, em encher, protocolarmente, os estudantes de definições do que seria o fenômeno jurídico. Pois, o objetivo deste breve ensaio é mostrar um pouco da atividade de Tercio Sampaio Ferraz Jr. como professor de direito[2] e autor de textos de análise jurídica. O que significará, sem sombra de dúvida, mostrar o que singulariza este pensador e o torna professor inesquecível e autor incontornável. Para isso, faremos um certo desvio das amarras de um artigo objetivo e buscaremos em nossa experiência pessoal de contato com o professor Tercio, como aluno, espectador de sala de aula, e como leitor de sua obra, alguns elementos que possam, de alguma maneira, caracterizar o efeito impressionante que sua figura causa a um interlocutor eventual. Falaremos, em um exercício de rememoração, portanto, inicialmente, da excelência de suas aulas.  
            Ao contrário de um professor tradicional, Tercio Sampaio Ferraz Junior, talvez até por sua sólida formação filosófica[3], não era dado, nas aulas na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, a definir antes de questionar. Cada aula sobre um tema específico era uma análise dos pressupostos e dos limites do jurídico. O professor Tercio, em suas aulas, encorajava os alunos a refletir zeteticamente – tema, aliás, caro ao professor – sobre conceitos da dogmática jurídica. O resultado era uma forma de se fazer Introdução ao Estudo do Direito que era extremamente crítica, ao mesmo tempo em que deixava claro os institutos jurídicos que o jurista lida no dia-a-dia.
            O objetivo era evidente. O professor Tercio se preocupava não apenas com a formação de profissionais do direito, mas com a formação de juristas. Figuras que estariam imbuídas de cultura geral e jurídica e que pensariam o direito para além da interpretação fria e formal dos textos jurídicos.
            As aulas do professor Tercio eram marcadas por um estilo todo próprio, inconfundível. Tratava-se de apresentar um tema que, subitamente, devido a uma série de questionamentos, se transformava em um problema. Este problema era, por assim dizer, contornado na própria aula e, através de exemplos retirados da prática do direito, mostravam a íntima ligação entre o direito como teoria e o direito como práxis. Este problema, no entanto, levava a formação de um outro problema, invariavelmente, de difícil resolução. Nesse momento da aula, o professor Tercio, mais zetético do que nunca, apontava para as diversas dificuldades e armadilhas que esse problema dado suscitava. Terminava sua aula, na imensa maioria das vezes, com a frase: “Mas, isso nós vamos ver na próxima aula...”
            Deliciosa suspensão esta do próximo capítulo de seu curso em que um novo tema seria introduzido e posteriormente questionado e assim por diante. Com uma precisão de cronômetro, as aulas do professor terminavam pontualmente no momento devido e sempre com uma expectativa a ser satisfeita no próximo encontro.
O que os alunos tinham o privilégio de presenciar não era apenas a lógica de um pensamento que se constrói em frente aos nossos olhos em forma de puro argumento, mas era também, o constante exercício de uma retórica absolutamente envolvente que levava o interlocutor, espectador de sala de aula, a se seduzir pelo discurso de um filósofo do direito que é um verdadeiro professor. Forma e conteúdo, nas aulas do professor Tercio, começavam a se delinear como elementos do mesmo, como momentos indissociáveis da atividade de se pensar.
            Assim, como não identificar, nas aulas do professor Tercio, as finalidades tradicionais da retórica?
            As funções da retórica são, tradicionalmente, as seguintes: 1. Docere; 2. Movere; 3. Delectare. Docere é o ato de ensinar, de transmitir conhecimento, informar o interlocutor. Movere é a atividade de mover (co-mover), movimentar o espírito de quem ouve. E, por fim, Delectare é encantar, seduzir pela beleza do discurso. Todos, atributos facilmente percebidos nas aulas do professor Tercio que, pode se dizer, é mestre na arte da oratória. Ou seja, com o professor Tercio, os alunos não apenas aprendem, mas também têm a tendência a se encantar pela arte do bem-falar, pela beleza do argumento bem colocado. O que no caso do professor significa, ao mesmo tempo, invariavelmente, um rigor conceitual assombroso.  
              Nietzsche costumava afirmar que a retórica era republicana. Ela só poderia ter lugar e, de fato, só teve lugar historicamente, entre sujeitos de uma cidadania. Para esse filósofo, ser cidadão é poder persuadir e ser persuadido. As aulas do professor Tercio, nesse sentido, eram verdadeiros convites à cidadania. Não apenas porque materialmente nos ensinavam os institutos e categorias do direito, mas porque em sua forma, permitiam a inter-relação professor/aluno de uma maneira em que as perguntas dos alunos eram muitas vezes reincorporadas ao argumento principal do professor. Em outras palavras, era comum o professor Tercio recuperar na pergunta do aluno algum elemento que pudesse dar o gancho para um novo tema de discussão. Se é verdade que nenhuma pergunta passava sem o crivo da crítica, o professor, por outro lado, pacientemente, sempre sabia aproveitar as indagações dos alunos de modo a dar seguimento a uma nova forma de aproximação do problema jurídico em questão.
            Aliando a análise do direito à formação filosófica, as aulas do professor Tercio conseguiam conciliar a teorização da filosofia com a prática do direito. Nesse sentido, não é possível se enganar. O professor Tercio não é mero leitor de sistemas filosóficos, nem advogado inconsciente dos meandros das doutrinas que ele mesmo sustenta. O professor Tercio é um autor. Autor no sentido mais profundo do termo, que é o daquele que inova e constrói uma obra.
            Não vamos dizer que seus livros sejam acessíveis ao público em geral, se bem que não são, em hipótese alguma, obscuros. Trata-se, em todo caso, de uma escrita que se permite ser extremamente clara. Às vezes, de uma clareza tal que até mesmo ofusca os leitores acostumados com o vocabulário jurídico abstruso. Isso porque a escrita acompanha o que a aula do professor tem de melhor: o rigor.
            O livro de Introdução ao Estudo do Direito do professor Tercio, assim, é completamente diferente dos livros que podem ser encontrados sobre o assunto. Ali, o que está em jogo não é apenas uma exposição ordenada dos institutos jurídicos básicos. O que temos em mãos, e o que ouvimos na sala de aula, é a construção de toda uma teoria sobre o direito. Uma teoria que não esconde seu diálogo com autores das mais variadas tradições, e que importa em uma concepção particular do fenômeno jurídico.  
            Nas aulas, podiamos assistir o professor passear de maneira erudita e tranquila por autores como Kelsen, Viehweg, Hannah Arendt, Luhmann, Habermas, Jhering, Hart, Ross, Bobbio, Hobbes e mais uma série de outros autores[4]. E o que é melhor nisso tudo: discutia cada autor com profundidade de especialista sem se esquecer de traçar ideias por sua própria conta e risco.   

***

            Não são poucos os alunos que sofriam de uma estranha recapitulação intelectual: mesmo depois de formados, ou nos últimos anos da faculdade, resolviam voltar a assistir as primeiras aulas que tiveram na Faculdade de Direito com o professor Tercio.
            Pedindo permissão para frequentar as aulas – pedido que sempre era autorizado, por sinal –, os ex-alunos voltavam em peso para frequentar as aulas daquele professor que, de alguma forma, os marcou. Na maioria das vezes, admitiam que seu interesse consistia em uma constatação simples: sempre se aprende com o professor, não importa quanto já se pretenda saber sobre o direito. 



[1] Tudo que o pensamento de Tercio Sampaio Ferraz Junior não é.
[2] Tercio Sampaio Ferraz Junior foi professor titular da Faculdade de Direito da USP, instituição em que lecionava a disciplina Introdução ao Estudo do Direito.
[3] Vale aqui lembrar que o professor Tercio Sampaio Ferraz Junior, além de ser doutor formado em Direito pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco - USP, também é formado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tendo se doutorado em Filosofia pela Johannes Gutemberg Universitat de Mainz. 
[4] Anos depois de nossas primeiras aulas com o professor Tercio, no primeiro ano da graduação em direito, pudemos constatar, durante nossos estudos de pós-graduação, que o universo de referências do professor era ainda muito mais extenso do que poderíamos supor... 

Ordem e desordem na crítica brasileira: sobre um ensaio de Antonio Candido


Rodrigo Suzuki Cintra


“No âmbito do marxismo, a ligação entre literatura e sociedade não é uma audácia, é uma obrigação.”
                                                                                              Roberto Schwarz


Quando Antonio Candido escreveu seu ensaio sobre as Memórias de um sargento de milícias acabou fazendo mais que reavaliar a tradição crítica sobre este romance. De fato, como constata Roberto Schwarz, o crítico realizou a proeza de escrever em 1970 nosso primeiro estudo propriamente dialético.
Tratava-se, na ocasião, de um ensaio literário que, por sondar a experiência social brasileira, ativava o programa materialista.
Em sua Dialética da malandragem, nosso Autor escrevia de forma clara e precisa, sem alardear vocabulário carregado de terminologias, e explicava, com a paciência de professor, os motivos pelos quais as Memórias de um sargento de milícias devem ser compreendidas como uma obra singular em nossa tradição literária.
Fugindo da caracterização europeia logo de saída, ao sustentar que o romance de Manoel Antônio de Almeida não era picaresco nem documentário, nosso Autor estava de maneira indireta assumindo a posição de que a literatura brasileira não é mera repetição de formas estrangeiras, mas sim algo novo.
            É nesse sentido que o herói de Memórias não deve ser entendido como uma figura pícara, como na experiência literária espanhola: ele é malandro. A determinação de suas características faz mais que mostrar especificamente quem é Leonardo Filho, mas o insere em uma tradição. Uma tradição brasileira que segue desde a Colônia, manifestada pela figura de Pedro Malasartes, e percorre a história literária brasileira até o modernismo no século XX, com Macunaíma e Serafim Ponte-Grande -  a malandragem. O malandro é o aventureiro astucioso, gosta do “jogo em si”, está sempre no limite entre o lícito e o ilícito e será a figura chave para a compreensão do ensaio de Antonio Candido. Isso porque o malandro é figura que existe efetivamente tanto no campo da ficção quanto no da realidade.
            As Memórias, como aponta Antonio Candido, são únicas no panorama de nossa ficção oitocentista porque não expressam a visão de nossa classe dominante. O autor das Memórias suprime os escravos e as classes dirigentes, sobrando-lhe um setor intermediário e anômico da sociedade, cujas características, entretanto, serão decisivas para a medida das relações ideológicas entre as classes sociais. 
            Tratava-se de caracterizar os homens livres e sua lei. Estes homens viviam num espaço social intermediário e anômico, em que não integravam a ordem, mas também não podiam dela prescindir.
            Talvez o maior achado de Antonio Candido tenha sido o de perceber que as Memórias operam através da lógica da dialética entre ordem e desordem. Ordem e desordem seriam a própria forma do romance, a “lei de sua intriga”, seriam o princípio que organizaria a realidade e a ficção.
            A figura do malandro é a mais adequada a este tipo de organização de mundo em que forças da ordem, como a polícia, por exemplo, concorrem com as forças da desordem. Ele é o tipo que transita entre os dois mundos. Está sempre atuando no limiar, no cinzento, entre o que se pode e o que não se deve fazer. A alternativa lícito/ilícito é perfeitamente relativizada pelo malandro. O malandro encarna a esperteza popular, sabedoria genérica da sobrevivência em um mundo repleto de obstáculos e iniquidades.
            Antonio Candido consegue, inclusive, sintetizar a questão da dialética da ordem e da desordem em uma imagem que capta do livro: o chefe-de-polícia, major Vidigal, vestido com a casaca do uniforme, mas com as calças domésticas e exibindo, sem querer, seus tamancos. A imagem, boa demais para ser descartada, mas que somente a leitura do crítico faz perceber, aponta para os dois “hemisférios” nos quais orbitam a vida dos personagens e as relações sociais descritas no romance. Nem mesmo o pólo mais evidente da ordem, o da polícia de Vidigal, passa livre da desordem que caracteriza a vida dos personagens que o próprio Vidigal persegue.
            Tudo se passa como se os personagens descrevessem uma verdadeira dança entre lícito e ilícito, sem que possamos dizer, satisfatoriamente, o que é um e o que é outro.
            Tomemos o roteiro das relações amorosas que pululam aos montes no romance. São “vinte mancebias a cada casamento e mil uniões fortuitas a cada mancebia”. Em outras palavras, os homens e mulheres livres e pobres se arranjavam da maneira que a vida parecia mandar, em uma oposição clara entre os casamentos devidamente realizados de acordo com a ordem moral, e as relações de convivência efetivas, mas não oficiais.
            Fazendo uma crítica materialista toda a seu jeito, Antonio Candido, esbanjando originalidade, impregna de dialética seu ensaio porque vislumbra a dialética na composição do próprio romance de Manoel Antônio. De caso pensado ou não, o fato é que as Memórias serviriam de registro da sociedade oitocentista – afinal, “Era no tempo do rei”...
            O valor do ensaio de Antonio Candido não está na mera ligação entre sociedade e literatura. Está muito mais no fato de nosso Autor buscar a sociedade através da forma literária e não o contrário. O elemento estético está em primeiro lugar.
Em outras palavras, antes de intuída e objetivada pelo romancista, a forma que o crítico estudou foi produzida pelo processo social, porém apesar da obra relatar seu próprio tempo e sociedade, a dinâmica das Memórias tem um valor estético todo próprio.
            Como explica Roberto Schwarz: “Assim, o ensaio retoma o esforço de interpretação da experiência brasileira, que havia sumido da crítica exigente, e talvez se possa dizer que inaugura a sondagem do mundo contemporâneo através de nossa literatura.”
            Redução da forma social a uma forma estética, a verdade é que nosso Autor, como aponta Paulo Arantes, percebeu que na circulação dos personagens das Memórias pelas esferas sociais da ordem (Brasil burguês) e da desordem (pólo negativo do Brasil burguês), estrutura central do romance, existia a fórmula que estilizava um ritmo geral da sociedade brasileira na primeira metade do século XIX.
            A Dialética da Malandragem, balanceio caprichoso entre ordem e desordem, define não apenas a estrutura da obra que se critica, mas explica a fisionomia do país que a produziu.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Os Pássaros de Kafka - parte 1


Os pássaros de Kafka


I – O sentido da liberdade


Uma gaiola saiu à procura de um pássaro.

Franz Kafka, Aforismos


A frase propõe uma imagem inusitada. Não é próprio da natureza das gaiolas se moverem, são objetos inanimados, e, menos ainda, saírem a procurar justamente o que vão oprimir. Mas, é claro que em Kafka, isto explica pouco. Alguns de seus objetos têm uma tendência a se comportar de maneira mais viva, assim como seus animais também podem expressar características humanas. Neste caso, porém, a postura da gaiola nos incomoda profundamente. De certo modo, se os pássaros inicialmente apontam para a liberdade, uma vez que podem voar, as gaiolas representam as estruturas fixas que prendem, que cerceiam, que impedem voos maiores. No entanto, na frase, tudo se dá como se as gaiolas, que normalmente são imóveis, pudessem empreender efetivamente deslocamentos. E contrariando uma inércia essencial, esta estranha gaiola, um arcabouço de aprisionamento, parece sair atrás de seu próprio prisioneiro.

Esta absurda caçada, no entanto, é ainda mais intrigante do que inicialmente se supõe. Não se trata de procurar o pássaro, como se na lógica desta busca insólita, pelo menos esse animal fosse culpado por alguma espécie de desvio. Tudo leva a crer que a gaiola saiu para prender um pássaro qualquer. Como se o que importasse fosse cumprir com sua função de prisão, mesmo que para isso precise encontrar um pássaro aleatório, que não tenha feito nada demais – exceto, talvez, voar. A estrutura de dominação precisa obrigatoriamente funcionar, neste caso, pouco importando a existência de alguma espécie de motivação ou justificação. Talvez por isso também seja possível identificar algo de burocrático na frase. Na imagem que elaboramos ao tentar representar o sentido do aforismo, a gaiola parece ser mais importante que o pássaro. Uma estrutura pronta que lhe é superior, e que acaba por operar uma lógica altamente complexa ao alçar voo, apesar de aparentar sair à procura de um pássaro distraidamente.

Nesta imagem desconcertante, a essência da natureza dos pássaros, que é a liberdade de poder voar, fica até diminuída frente à possibilidade de voo da gaiola e o que isso significa. Pois, o estranho e o que perturba prontamente na frase não é, na verdade, a imagem de um pássaro encerrado dentro das grades de uma gaiola – imagem que, infelizmente, estamos acostumados –, mas a ideia de que essa estrutura de aprisionamento possa se mover e opere uma perseguição gratuita a um ser que se encontre livre. Isto aponta para algo extremamente opressor nesta história que é contada em uma única linha, e que de certa forma, acaba por nos levar a perguntar: não é assim mesmo que funcionam as nossas estruturas de dominação? Talvez o que incomode mesmo no aforismo seja menos a sua violência, apesar dela ser absolutamente devastadora, mas a certeza de que, de algum modo, a frase está colada irremediavelmente ao real. É claro que se trata de uma situação bizarra, como qualquer um pode notar, e é justamente por isso que parece ser plenamente possível que aconteça.

Em um caso como esse, ao contrário do que se poderia imaginar, toda a impostura parece vir, na verdade, dos pássaros. Existe um atrevimento em se propor a alçar voo. Bem pode ser que uma gaiola, inexoravelmente, já estivesse destinada a algum deles por princípio – quem garante que voar, em si mesmo, já não constitui alguma espécie de culpa? Mas, quanto a isso, é óbvio que não podemos ter certeza. Kafka jamais seria claro a respeito disso. A única coisa que parece ser correta é que não são os pássaros que tornam necessárias as gaiolas para aprisioná-los, mas o contrário, a existência das gaiolas é que viabiliza uma potencial liberdade aos pássaros. Reverso de mundo, em Kafka, a opressão é anterior à liberdade.


II – O céu-deserto


As gralhas afirmam que uma só poderia destruir o céu. Não há dúvida quanto a isso, mas não prova nada contra o céu, pois os céus significam justamente: impossibilidade de gralhas.

Franz Kafka, Aforismos


            A sequência das frases é precisa e resolve todo o problema da liberdade em apenas duas afirmações. Metáfora de nós mesmos, as gralhas de Kafka simbolizam nossas pretensões e limitações neste aforismo singular que opera uma lógica que a princípio parece contraditória, mas que no fundo, é verosímil apesar de ser perversa. Na primeira frase, temos a impressão de que as gralhas têm uma liberdade plena. Desafiam o ambiente em que podem empreender o voo. Uma forma de ser livre absoluta, maior que o próprio céu, pois decorre de um princípio de natureza primordial. Mas, claro que isso é meramente o discurso das próprias gralhas, o nosso discurso. Animais que, pelo que podemos perceber ao ler a primeira frase do aforismo, estão corretos em sua afirmação pretensiosa - destruir o céu. O que não significa efetivamente a concretização do próprio voo. Porém, é na segunda frase que o aforismo se resolve. Sem maiores avisos, essa frase contraria prontamente a lógica da frase anterior e finaliza a questão quase que com uma sentença de caráter moral: os céus significam justamente: impossibilidade de gralhas.

Curiosa maneira de nos fornecer imagens. Em um primeiro momento, após a leitura da primeira frase, enchemos o céu de pássaros. A imagem de uma única gralha, inclusive, a voar livremente pelo céu, nos autoriza a pensar em um mundo em que a liberdade é plena. Porém, a segunda frase, por meio de uma conclusão lapidar, nos desorienta. A sentença faz mais que meramente dizer que as gralhas não podem voar livremente. É uma afirmação que estabelece o próprio sentido dos céus. Proclama que o significado dos céus é a impossibilidade das gralhas. A imagem que a segunda frase nos fornece é desanimadora. Após encher o céu de pássaros e posteriormente reduzir para um único animal dessa espécie, o movimento que nossa imaginação realizou após a leitura da primeira frase do aforismo, somos obrigados a imaginar um céu vazio, destituído de pássaros, um céu sem vida. Afinal, ao que tudo indica, a frase não apenas inviabiliza a liberdade de voar das gralhas, mas nos informa que as gralhas, em si mesmas, são plenamente impossíveis por causa dos céus. Subtrai-se, portanto, não apenas a liberdade, mas a própria existência. E esse é o verdadeiro significado do céu, o motivo para qual existe, sua função conforme nos é informado – o céu é um deserto.

Mas, claro que, apesar disso, o céu está logo ali, neste aforismo. Existe potencialmente como algo para vislumbrarmos. Kafka, certa vez, ao ser questionado se não havia esperança no mundo, assim respondeu: “Sim, há muita esperança. Mas não para nós.” Assim, o real sentido do céu é algo mais opressor do que as gralhas podem supor, o oposto do que acreditamos. Sua imagem não pode mais representar a liberdade, mas sim, ao contrário, ela é a tradução da mais completa impossibilidade de existir e ser livre. Em Kafka, o céu não tem horizonte.