Picasso
sábado, 1 de julho de 2017
Citação do mês - Jul/2017
"É preciso ter uma ideia do que se irá fazer. Mas deve ser uma vaga ideia"
réquiem para um poeta vivo
Decidi escrever sobre o filme “Ferroada” (2016) de Adriana Barbosa e Bruno Mello Castanho. Não pensei em escrever sobre o filme após ter assistido. Era enquanto assistia, no meio da platéia do cinema, que minha imaginação se movimentava. O filme é sobre um poeta, um coveiro: um homem. Comecei por tentar escrever uma crítica formal, bem cortada, elogiosa. Desisti. Resolvi escrever uma crítica ao filme via poesia. Achei que era uma forma de respeito, de certa maneira, ao próprio personagem principal. Também, é claro, aos cortes da montagem dos diretores. Pode acontecer, às vezes, de uma forma de arte impulsionar outra. Se o filme sobre o Tico saiu de sua literatura indo parar nas telas, agora, devolvo imagens em letras. Mas, faço isso a meu modo: com cortes que emendam as imagens… no mundo da vida.
réquiem para um poeta vivo
para Tico
embora palavras
não passem
de nuvens
ainda que
formatos indeterminados
do imaginário
discordem tolos
teimando contornos
meramente sugestivos
fugidios da
primeira arquitetura
*
dos símbolos
também agulhas
podem ser
pois picam
alfinetam juízo
coçam por
dentro a
tragédia infinita
anunciado assassinato
no texto
difícil do
golpe arriscado
*
da escrita
talvez lápides
obras invisíveis
mas sempre
vermelhas como
virgulas suicidas
do mergulho
do ferrão
certa loucura
mistura nariz
de palhaço
no veneno
*
de escorpião
pudera conceitos
dessem conta
enquanto letras
que enterram
a música
interna do
sentimento quando
silêncio um
grito pressentido
acorde final
ferroada poética
*
de marimbondo
naqueles signos
construções narrativas
onde veículos
fatais se
movem sempre
ou nunca
via contramão
o caso
daquele homem
argumento de
si mesmo
*
do não
nas imagens
sempre algo
de morte
estrutura a
nebulosa arte
do sonho
ressignifica mundo
num blefe
o último
da forma
dialética
*
de vagabundo
Esse poema foi publicado na Revista Zagaia, em junho de 2017.
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Rodrigo Suzuki Cintra
terça-feira, 20 de junho de 2017
A urbe poética de Régis Bonvicino – notas sobre "Beyond the wall"
é um artista se entregando para a
polícia
“Arte”
de Régis Bonvicino
Quem
se dispõe a percorrer a nova coletânea de poemas de Régis Bonvicino, Beyond the wall (Além do muro) recém publicada
pela editora Green Integer nos EUA, deve estar preparado para enfrentar uma
complexa trama em que o estatuto da arte, a vida na cidade e a política em
ponto de bala se entrelaçam de uma maneira absolutamente inextricável, de modo
que é praticamente impossível uma dissociação dos elementos dessa poética –
existe algo de irredutível na obra que impede os esquemas mais tradicionais de
interpretação de livros de poesias. Não é o caso, então, de tentar localizar
quais são os poemas de uma ordem metalinguística mais evidente ou os que
apresentam imagens da cidade ou mesmo os que discutem relações de poder. As
poesias de Beyond the wall operam nas
bordas, nos limites em que um tema já se transforma em outro, mas ainda não
deixa de ser o que era.
Existe uma verdadeira topografia
poética, um modo pelo qual os poemas foram estrategicamente colocados em sua
sequência, que causa a perfeita percepção de que o livro tem um espaço próprio
de acontecimento: a cidade.
O terreno em que as poesias são colocadas
é o espaço urbano. Só que a cidade de Régis Bonvicino não é composta de
prédios, janelas, casas e lojas. O lugar de que fala e de onde fala o poeta é
feito de mendigos, ratos, garrafas, urina e cigarros. Não é uma cidade
específica, tampouco. Pode ser Le monde,
Bank of China, Chascona, Passeig de Gràcia,
New York ou Bom Retiro. De qualquer
modo: é uma poética urbana.
Se as metrópoles são o espaço da
desigualdade evidente, Régis constrói suas imagens-sons de uma maneira
particular. Uma técnica de construção de linguagem por contradição, talvez
mesmo, por atrito. Não há nada de um lirismo coerente, de uma poesia sem
arestas. De vez em quando, falta uma rima, outras vezes, um paralelismo é
subtraído, uma ideia não se completa, uma imagem é sequestrada. De caso
pensado, Régis Bonvicino faz poesia com ângulos, dobras, conflitos, inversões e
paradoxos.
O poeta escreve com cálculo: está
tudo resolvido no espaço da página. Porém, algo sempre sobra e parece escapar
da prisão do texto e golpear os sentidos do leitor. A “urina” realmente fede, o
“mendigo” implacavelmente incomoda e, quase imperceptivelmente olhamos para os
cantos da sala a procura dos “ratos”. Um modo de fazer poesia que contamina as
palavras e é contaminado por elas. O cálculo poético parece nos surpreender vez
ou outra e somos pegos a levantar a cabeça, deixar o texto, e parar para pensar
o que está acontecendo. Nessas vezes, invariavelmente, quando voltamos ao
texto, relemos alguma passagem anterior, folheamos o livro e retornamos a
alguma poesia que, de repente, merece melhor apreciação. Não se trata de um
livro de poemas para ler do começo ao fim sem interrupções.
Essas interrupções são verdadeiros
engasgos, nos pegam de surpresa e provocam uma sensação estranha – às vezes
colocamos até um sorriso na boca, tudo aparenta correr bem na leitura, mas,
logo adiante, percebemos a verdade que essa poética provoca: o sorriso se
transforma em riso nervoso. Trata-se de um tipo de poesia que é necessária,
poesia-incomodo, bem diferente dos esquemas fáceis das poesias da moda. Pode-se
dizer, inclusive, que nos seus ângulos, sinuosidades e esquivas é um livro que
respeita plenamente o leitor. Mas, que assim o faz somente na exata medida em
que exige mais da leitura.
Analisemos duas poesias da
coletânea: a primeira e a última – para fazer uma moldura do que pode ser
encontrado entre esses dois muros.
Com o título de “Arte”, a poesia de
abertura não poderia ser mais irônica. Como falar da arte nos tempos atuais em
que a barbárie cultural impera de maneira triunfante? Como fazer arte em tempos
de mass media? A provocação que o
título da poesia de abertura do livro faz é absolutamente pertinente. Mas, o
poeta escreve ao longo da poesia, em uma sucessão de imagens, exatamente aquilo
que não se poderia esperar da arte. Como se ela tivesse perdido o sentido nos
tempos atuais. É assim que constrói os versos: [arte] “é o mendigo que, mão
aberta,/não pede esmola”. A contradição é evidente e perturba não apenas a
leitura que procura coerências, mas a própria estrutura da linguagem que se
propõe. A certo momento desse primeiro poema chega até mesmo a propor: [arte]
“é um relógio sobre uma lápide”. Nada mais contundente do que declarar a morte
da arte e, apesar disso, via imagem certeira, reafirmar a arte, mesmo que às
avessas.
Na última poesia da coletânea,
“Abstract (2)”, podemos ler um verso que quase inviabiliza o título do livro:
“Visitors: no trespassing”. Assim colocada a impossibilidade de ultrapassar os
muros, a norma é clara e estabelece um dentro e um fora, fica o conflito com o
título da coisa toda: Beyond the wall (Além do muro). E não é à toa que o
último verso, meio político, esquema de fim de obra, (“Em Manhattan, só o rato
é democrático”), esbanja o urbano e é cortado de modo preciso.
Alguns leitores bem poderiam pensar
que o caráter urbano do verso esteja na palavra “Manhattan”. Que a política
esteja no termo “democrático”. Nada mais longe da poética de Régis. É o “rato”.
O “rato” é que nos remete à metrópole e à política. Esse rato que aparece
diversas vezes entre os dois muros da moldura que estabelecemos para o livro. O
rato que perambula pelos mendigos, por sobre cigarros amassados, que cheira o
odor da urina e que consegue, por astúcia da espécie, ultrapassar os muros de
concreto que cerceiam a liberdade própria do fazer poético.
Obs: Esse artigo foi publicado na Revista Sibila - Revista de Poesia e Crítica Literária.
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segunda-feira, 29 de maio de 2017
Golconda, 1953 (Magritte) ou Chuva de Mim Mesmo
I
Um
dia desses, essa quase interminável chuva de mim mesmo, essa intempérie
inesperada promete acabar e poderei verdadeiramente flutuar de forma livre
ainda que fragmentado em gotas de mim – serei composto de partículas bojudas
que não cairão mais das alturas, mas ficarão suspensas como balões estáticos.
Inertes. Simplesmente pairando em pleno ar.
Nessa ocasião, me tornarei mais próximo
daquela promessa que fiz a mim mesmo – o homem que eu queria ser antes da chuva
começar. Não poderei voar, essa é uma das minhas mais tristes certezas, mas,
pode ser que seja um pouco mais feliz. Pelo menos não precisarei me preocupar
em derramar mais tanto de mim.
II
Somadas as características essenciais,
todas as variações, são poucas as diferenças entre as possibilidades.
Em 71 casos, pode-se ser original. Em
50, a divisibilidade é por 2, 5, 10, 25 e 50 (ser divisível por 2 é um dos
principais defeitos da imagem).
Segundo o cálculo de alguns, é possível
que se caia dos céus 121 vezes. Mas, ascender às alturas somente se dá em 23
casos.
De qualquer modo, o sobretudo e o
chapéu sempre ajudam: é evidente que, mais uma vez, se esquece o guarda-chuva em
casa.
III
Pode
bem ser que a tela capture um momento, apenas um instante, de um movimento
constante. Do céu para o chão, pingam homens vestidos de sobretudo e chapéu
escuros; ou, do chão para o céu, ascendem homens a desafiar a gravidade.
Se assim for, de qualquer modo, nada
nos indica a velocidade do movimento, e fazer o quadro ganhar vida em nossa
imaginação não garante, necessariamente, uma compreensão maior sobre sua
estrutura.
Ao olhar a imagem de longe, os inúmeros
homens que compõem a tela parecem ser apenas borrões. Gotas negras a manchar o
céu e os pequenos prédios de apartamentos: ocasiões do negro em um céu azul sem
nuvens, em um telhado avermelhado sem telhas e em paredes de prédios
cinza-claros sem portas visíveis.
O escuro se repete, inclusive, como
mancha do próprio borrão, pois, se observarmos atentamente, os homens vestidos
de negro provocam sombras nos prédios que denunciam a presença do sol.
De fato, é curioso que ninguém se
atreva a abrir as janelas e que mesmo as cortinas fiquem quase completamente
cerradas. Não há, aparentemente, um lado de dentro dos prédios que possa ser
verificável. A lógica da imagem é completamente externa aos prédios, com os
enigmáticos homens a borrar os outros elementos.
Meramente suspensos, caindo dos céus,
ou ascendendo às alturas, os homens parecem ser repetições de um mesmo
personagem. Multiplicado infinitamente – tudo nos leva a crer que é impossível
contar quantas variações do mesmo homem aparecem no quadro – o personagem
parece não passar por nenhuma transformação em nenhuma de suas aparições, se
bem que, dependendo da ocasião, apareça sob ângulos diferentes.
Apesar de não ter, aparentemente, nada
em comum com a maioria dos observadores da imagem, ele provoca identificação.
Há algo nele que nos remete a nós mesmos. Não é o chapéu, nem mesmo o
sobretudo, o que leva a essa sensação. É a repetição infinita que nos induz a
essa tendência. Apesar de ser uma afirmação arriscada, que quase não se propõe,
há algo de espelho nessa infinidade de figuras absolutamente idênticas. Mas,
isso não quer dizer que esse personagem provoque os mesmos significados para
cada um dos observadores da imagem.
Os homens mais imaginativos pensam que
esse homem está suspenso no ar, flutuando como uma bolha de sabão, e que bem
que gostariam de experimentar essa sensação de leveza absoluta.
Os religiosos imaginam que estão
subindo da terra aos céus. Veem nessa possibilidade alguma espécie de revelação
mística e ficam contentes com a imagem toda, convencidos de que encontrarão a
salvação.
Os homens que têm demônios internos
mais frequentes somente conseguem imaginar a si mesmo caindo das alturas e se
sentem incomodados com a ideia de que se espatifarão completamente pelos chãos.
E existe também aqueles observadores
que ao olhar para a imagem não conseguem enxergar outra coisa a não ser a
possibilidade de voar. São os homens de imaginação mais solta, que encontram na
arte sempre alguma possibilidade de libertação.
No que me diz respeito, só uma coisa me
incomoda de verdade. Nessa infinita multiplicação de mim mesmo, em todos os
casos, eu continuo sendo eu mesmo.
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domingo, 30 de abril de 2017
Canção de Amor, 1914 (de Chirico) ou Gesto com Luva Vermelha (variação nº 2)
Talvez
se o busto de Apolo estivesse completo, com ombros e tudo, a luva cirúrgica não
precisaria ficar pregada na arquitetura de uma construção geométrica. Não
seria, obviamente, possível colocar a luva na escultura, afinal, bustos não têm
mãos, mas pode ser que a luva vermelha ficasse solta nos ombros invisíveis de
Apolo.
A luva de borracha nos incomoda,
sobretudo por ser vermelha, acostumados que estamos com uma higiene que
embranquece o vestuário. Mas, ela não é o único objeto de borracha. A bola também
aparenta ser feita desse material e, ali, inerte, nos induz a pensar em
movimentos maiores.
De certo modo, a bola de jogar parece
caber perfeitamente na luva, como se pudéssemos segurar o brinquedo com apenas
uma das mãos. Este senso de proporção acompanha o tamanho do busto. Seria
possível, inclusive, usar a luva para dar um estalo na face insensível de
Apolo, forçando esse Deus a demonstrar sentimentos humanos. Aquele que leva um
estalo na face sempre demonstra alguma espécie de sentimento humano.
Evidentemente, a construção geométrica
que está em segundo plano do quadro é demasiado pequena, se compararmos com o
tamanho dos demais objetos. Mas, sem dúvida, é o único elemento da composição
que está verdadeiramente do tamanho real.
O modo como a luva de borracha vermelha
está pregada à construção é algo que incomoda. Por certo, um prego de aço é
exagerado para segurar o peso de uma mera luva vermelha. É exagerado porque ela
é vermelha, não por causa de seu peso.
A bola de jogar dá a impressão de que é
preciso fazer alguma coisa com ela. Porém, é perfeitamente descartável. E se
fosse preciso pintar o quadro mais uma vez, de modo absolutamente fiel à
primeira versão, uma cópia completamente exata, uma segunda tela somente seria
a representação adequada da original se jogássemos a bola fora.
Isso
é verdade.
Não
é, no entanto, por ser de borracha, nem por ser verde, que a bola é
descartável. É porque ela tem um segredo, na sua inutilidade dentro da
composição, que transborda o sentido da pintura como um todo.
Se a bola de jogar fosse parar em outro
quadro, uma representação exclusiva da bola de jogar, uma representação verde,
como não poderia ser diferente, uma vez que é uma bola de jogar, teríamos um
quadro que incomodaria mais que esta Canção
de Amor. Isto porque a bola tem um segredo, na sua inutilidade dentro da
nova composição, que transborda o sentido da pintura como um todo. O problema é
que a pintura como um todo seria somente a representação da bola de jogar
verde. Este é o segredo: a bola de jogar é verde.
Existe música na pintura. Trata-se, sem
dúvida, de uma canção de amor. Não é o estalo na face do busto de Apolo
(inadvertidamente, esta ideia é tentadora) o que pode produzir a sonoridade,
provocando este Deus a se manifestar. Há algo de divertido em estapear os
deuses. É o trem que passa que produz toda a musicalidade. É uma música por
demais urbana, pois representa os amores na solidão das metrópoles. O ritmo da
passagem do trem, um som contínuo e sedutor – uma marcha – essa é a melodia da
canção. Mas, é preciso estar atento para o fato de que no exato momento em que
vemos o trem ao fundo do quadro, no instante preciso em que sua presença se faz
sentir, quando percebemos que a pintura estaria incompleta sem a sua
representação, ouvimos, nitidamente e sem maiores avisos o seu apito.
Este apito, singularmente curto,
corresponde ao refrão da canção.
Algo preocupa muito na lógica da
compreensão do quadro. É certamente uma questão essencial e, pode-se dizer que,
após o som do apito, naquele momento em que percebemos o trem, acaba por nos
intrigar profundamente pois diz respeito à direção que devemos tomar nas
questões amorosas. Pode ser que seja, inclusive, o mais importante da
composição: não dá para saber ao certo se o trem, ao fundo da tela, produzindo
fumaça, seguirá para a esquerda ou para a direita.
domingo, 26 de março de 2017
A Reza, 1930 (Man Ray) ou Como Contar os Dedos do Pé com o Próprio Cu
Entre o claro e o escuro há um pouco de
corpo. No escuro, nada podemos ver; no claro, vemos demais.
O
erotismo é uma arte traiçoeira. Pode parecer, à primeira vista, que consiste em
mostrar sem revelar a imagem por completo, mas, na verdade, consiste em um jogo
de esconder. É o que se oculta que provoca o desejo, não o que se mostra
visível.
Esta
fotografia, no entanto, é erótica às avessas.
O
corpo se contorce e dobrando-se sobre si mesmo dá a impressão de uma posição
que, se não for impossível, é certamente improvável. Toda a obscenidade da
imagem não está no que não vemos. De maneira desconcertante, é exatamente o que
encobre os orifícios deste corpo o que faz a imaginação flutuar. O inusitado é
que, neste caso singular, o que se vê claramente é que remete ao erótico.
Pois,
há algo de excessivo em todos aqueles dedos.
Os
orifícios cujas imagens nos são negadas, que poderiam apontar para o apelo
sexual do instantâneo, não são, a bem da verdade, o que importa na
representação. São os dedos, escancaradamente nítidos, que provocam o
pensamento a tomar certas formas mais sensuais.
Os
glúteos, são excessivamente redondos. Também são demasiadamente brancos.
Lembram uma maçã que perdeu a cor. E na composição da totalidade da imagem,
junto aos dedos que estão em escala de cinza, correspondem a uma corporalidade
quase que meramente sugerida. Mas, a imagem está perceptivelmente completa,
mesmo que tenha algo de menos corpo no que foi retratado.
Os
pés estão juntos, mas os vemos pela metade. Estão profundamente inertes. É a
sombra dos glúteos o que os coloca no limiar entre o claro e o escuro. Porém,
podemos ver todos os dedos. Existe algo de profundamente obsceno em tentar
contá-los. É no momento exato em que examinamos se todos os dedos estão
aparentes que somos pegos por uma sexualidade menos sutil e mais evidente. Todo
escândalo que advém desse jogo de somar os dedos dos pés consiste,
paradoxalmente, no fato de que, nesta imagem, é o esforço de minúcia, que induz
ao sexual. Na foto, os pés e as mãos são de uma nudez mais provocativa do que
os orifícios que tentam esconder. É preciso perceber isso. Por trás das mãos e
pés, que inclusive nos enganam quando pretendem não ter nada a ver com a
posição corporal inusitada, algo de sexual se insinua.
O
sexo está no detalhe.
As
mãos que pretendem esconder os orifícios são quase que exclusivamente dedos.
Dedos que, ao contrário dos pés, podem se movimentar. A imagem é estática, como
não poderia deixar de ser, mas, o sugestivo está justamente em imaginar estes
dedos em movimento. Dedos que tentam nervosamente esconder o sexo. Existe,
inclusive, uma vontade de que os dedos, dada a posição que estão, não consigam
cumprir seu papel no jogo de esconde e fiquem se movimentando, uma mão sobre outra,
de modo que quando conseguem cobrir uma parte do sexo, acabam, invariavelmente,
por deixar outra parte comprometedora descoberta.
Além
disso, não é exatamente alguma forma de toque o que precipita uma fantasia mais
imaginativa. É a disposição dos dedos.
Dedos
sobre dedos.
As
mãos podem até ser nervosas, mas os pés são calmos. Reclinado como em uma forma
de reza, o corpo é contraditório. Os pés juntos, com seus múltiplos dedos,
podem até sugerir ave-marias se o caso fosse o de rezar. Se não provocassem,
maliciosamente, na sua visão, certa inclinação para verificar se todos os dedos
estão realmente ali. Mas as mãos, com a sobreposição de dedos sobre dedos,
denunciam evidentemente, certas vontades menos religiosas.
segunda-feira, 13 de março de 2017
Palestra de Rodrigo Suzuki Cintra na Escola Paulista de Magistratura
sábado, 11 de fevereiro de 2017
Rrose Sélavy, 1920/1921 (Duchamp/Man Ray) ou Mulher de Tempo Lento
I
O
chapéu é por demais inusitado, personalíssimo, e chega mesmo a ser ousado,
quase insolente, se levarmos em consideração o fato de que é composto
basicamente por figuras geométricas dispostas de uma maneira aparentemente
aleatória.
Claro que isso já é uma forma de
impostura, uma vez que toda geometria que se pretenda aleatória é, em verdade,
a própria negação da geometria. Há sempre um princípio organizador nas formas
geométricas, elas são avessas ao caótico, de modo que basta decifrar sua lógica
interna para inviabilizar a sensação de que essas formas possam ser dispostas
sem alguma espécie de simetria própria.
Porém, os desenhos no chapéu dessa
mulher-enigma, basicamente compostos pelas ocasiões do negro no branco ou
vice-versa, são misteriosos a seu modo e decifrar o seu padrão é tarefa
difícil.
As figuras no chapéu parecem escapar –
quando fixamos uma das formas, outra delas dá a impressão de sorrateiramente
começar a se ocultar.
Por isso, talvez, alguns dizem,
inclusive, que estabelecer como se deslocam essas formas, essa brincadeira de
esconde, é a melhor maneira para começar a compreender essa mulher.
Existe, na essência do chapéu, um jogo
geométrico entre o visível e o invisível que potencializa o caráter misterioso
da fotografia. Mas, obviamente, os defensores dessa tese – os “analistas do
chapéu” (como ficaram historicamente conhecidos) – são aqueles mais tendentes a
matematizar a condição humana, e se esquecem, com frequência, de investigar, na
sua ânsia por delimitar quadrados, retângulos e triângulos, outros aspectos da
imagem desconcertante da mulher na fotografia.
II
Olhar
o próprio observador, perfurar o espectador, olhar para além e não enxergar
propriamente ninguém.
III
Há algo naqueles dedos que sugere
indiscutivelmente a feminilidade. Não é, como poderia se pensar, o fato de
serem menores e mais finos que os dedos dos homens, com suas mãos maiores e
mais brutas. Tampouco é a presença dos anéis o que nos certifica que se trata
de uma mulher.
É o modo como foram capturados pelo
instantâneo.
Levemente
dobrados, sutis, delicados ao tocar o casaco de pele. Dedos que sugerem
movimentos mais suaves, talvez menos bruscos. Dedos que fazem manha, que
delongam as ocasiões, e que são menos objetivos ao cumprir a tarefa de levantar
a gola do casaco de pele. Dedos de tempo lento, habituados aos caprichos
próprios à atuação, sempre demorando em completar cada movimento, como se cada
ação fosse uma espécie de performance.
IV
Somente
uma lente objetiva poderosamente aguçada poderia registrar o exato segundo em
que Rrose está propositalmente se atrasando alguns breves instantes para fazer
qualquer coisa absolutamente irrelevante: tudo se passa efetivamente na
cadência distendida de um momento meticulosamente alargado.
V
Toda
e qualquer mulher, de maneira absolutamente manhosa, atrasaria o ato de arrumar
o casaco de pele apenas alguns breves instantes só para ser registrada na
fotografia como uma mulher ligeiramente manhosa atrasando o ato de arrumar o
casaco de pele apenas alguns breves instantes antes de fazer alguma coisa de
importância sabidamente superestimada.
VI
É
preciso não estar entendendo absolutamente nada se o caso é o de indagar se a
mulher da fotografia é uma atriz ou não. Se ela está indo ao teatro ou se acaba
de sair de cena.
Em um sentido muito particular, toda
mulher é ela mesma e, ao mesmo tempo está sempre em cena.
O mais interessante da fotografia, na
verdade, é outra coisa.
Ela
enigmaticamente nos lembra de algo sobre as mulheres que vez ou outra deixamos
escapar e que pode passar despercebido inclusive por elas, acostumadas a
simplesmente agir da maneira habitual. A fotografia é de Rrose, mas bem poderia
ser de qualquer mulher representada em um momento em que se arquiteta
propositalmente, mas de maneira natural, as formas corporais e espirituais que
compõem aquilo que chamamos de feminilidade.
Talvez o segredo dessa fotografia seja
que ela consegue retratar perfeitamente, na captura do instantâneo, uma mulher
em um momento de verdade absoluta. Em performance ou não, o que no fundo é a
mesma coisa, a mulher que busca a plenitude feminina é aquela que não se cansa
de atuar, no teatro da vida, de acordo com aquele sonho maravilhosamente
impossível que ela mesma inventou para si.
domingo, 29 de janeiro de 2017
Diagnóstico Preciso, um conto de Rodrigo Suzuki Cintra
Cheguei,
como de costume, atrasado para a sessão. Claro que eu não gostava nem um pouco
de ir lá todas as semanas. Mas, meu comportamento, pelo que diziam, exigia
intervenções maiores.
Ele estava me esperando. Nunca
perguntava o motivo de meus atrasos. A verdade é que eu me atrasava só para ver
se ele ia falar alguma coisa. Nas nossas conversas, invariavelmente, somente eu
falo. Não é bem, então, o que se poderia chamar de uma conversa. Mas, essa parece
ser a técnica da coisa toda. Sabia que aquela seria a última sessão. Eu já não
aguentava mais aqueles truques intelectuais baratos e além disso, no fundo,
tudo que bastava era só eu não querer mais aparecer por lá. Ninguém me levaria
à força, obviamente. Avisei, por respeito, mas sem maiores avisos, que seria
nosso último encontro. Ele concordou. Não falou nada. Apenas acenou
afirmativamente com a cabeça. Eu estava me lixando para tudo aquilo, então, já
de saída na porta, antes de dar a despedida final, resolvi fazer alguma
pergunta cínica – daquelas típicas coisas que adoro fazer. Eu ia fingir, pela
última vez, que me interessava por aquelas conversas: ia simular um interesse
no meu próprio caso (como se eu, no fundo, não me conhecesse melhor do que ninguém).
“Doutor, diga-me com franqueza, qual é
o seu diagnóstico?
Ele me olhava fixamente, mas, não
parecia querer falar. Decidi, então, pressionar um pouco: “Eu já venho aqui há
muito tempo. Acho que o mínimo que o senhor poderia fazer é ser sincero comigo.”
Então, ele respondeu: “Você é um
impostor!”
Resolvi investigar melhor a afirmação.
Era a nossa última consulta, e afinal, aquilo era uma tese um pouco estranha.
Disse: “Mas, doutor, por que diz isso?”
Ele respondeu prontamente dessa vez:
“Você anda se fazendo passar por você mesmo!”
Não respondi. Desci pelo elevador. Saí
para o sol. Atravessei a rua fora da faixa de pedestres. Dobrei a primeira
esquina à direita. Não pensava em nada. Eu estava indo a pé para algum lugar
qualquer. Talvez, para casa. Dobrei à direita. Estava, de fato, até mesmo
feliz, afinal, estava me livrando de uma chatice das boas. Pensei, inclusive,
em dar uma passada em algum boteco. Talvez eu devesse, inclusive, comemorar. Eu
até que gosto de beber sozinho em botecos sujos. Dobrei à direita e fiquei a
olhar o sol, os pássaros, até as nuvens me encantavam com seus formatos
inesperados. Comecei, também, a olhar fixamente para as pessoas que passavam
por mim. Atravessei a rua na faixa de pedestres. Caminhei alguns metros. Subi de
elevador. O corredor era longo e estava escuro.
Cheguei, como de costume, atrasado
para a sessão.
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Rodrigo Suzuki Cintra
domingo, 22 de janeiro de 2017
Personagem a uma Janela, 1925 (Dali) ou Uma ideia Extravagante
I
As
ondas do mar, a passagem das nuvens no céu, o vento a produzir vincos nas
cortinas, o movimento do vestido, tudo isso foi pintado apenas para combinar
com os cachos do cabelo.
II
Ela é bela. E seu retrato é feito às
avessas. Em um retrato pode ser possível exprimir toda a biografia de uma
pessoa. Os retratos são imagens que descrevem a expressividade. Em todos os
casos, são a representação da face e, às vezes, da visão frontal do corpo. Ela,
no entanto, é retratada de costas. Há uma originalidade nisso porque, com
efeito, a ideia parece dar certo. Seu retrato está nos cachos malcriados de
cabelos escuros, no modo como uma de suas pernas se dobra gentilmente para trás
e fica na ponta do pé, o que lhe dá um ar de mulher fantasiosa. Na maneira como
ela apoia firmemente os dois braços na janela para olhar – como todos os dias
faz –, para fora de casa. No modo como o corpo bem esculpido modela um vestido
barato qualquer. Nas pernas parcialmente descobertas, mas que apontam
suficientemente para sinuosidades e que nos dão vontade de imaginar como seria
o resto do corpo sem o vestido. Em uma cintura mais fina que os glúteos
absolutamente carnudos e sugestivos.
É
o retrato de uma mulher possível.
Porém,
não conhecemos ninguém exatamente assim e tudo que podemos fazer é contemplar a
imagem e sonhar com um encontro inesperado e improvável com uma personagem que
habita exclusivamente o mundo das representações.
III
É
preciso conter o mar, enquadrar o céu, impedir a ação do vento, enfim,
desrespeitar, no recorte da janela, a plenitude de todos os elementos
essenciais, mas representar a suavidade tensa dos cachos do cabelo enigmáticos,
a paixão inesperada de glúteos convidativos e a imaginação infinita de um pé
direito sonhador. Uma ideia realmente extravagante seria beijá-la nervosamente
na nuca, se perder nos cabelos encaracolados, levantar parcialmente seu vestido
e colocar seu corpo na ponta dos dois pés.
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