Talvez
um dos modos de navegação social mais distintivos de nossa vida política seja o
capricho. Essa figura da extravagância, da vontade sem razões precisas, é típica
de contextos arbitrários. Mas, algo não pode ser esquecido quando se trata de
pensar uma política caprichosa: o capricho tem lado, é estruturante de um
discurso de classe e, como bem se pode perceber, não reproduz verdadeiramente a
voz do povo.
O capricho é característico do
discurso ideológico e, portanto, opera na base de um ocultamento das
verdadeiras oposições em jogo.
O caprichoso adere ao discurso de
ocasião, menos por uma posição política particularmente calculada e mais por um
senso de que as coisas políticas não caminham do jeito que ele gostaria. Claro
que não haveria nenhum problema nisso se o que se manifestasse fosse uma
posição crítica, ou mesmo, uma indignação mais verdadeira. O que parece
ocorrer, no entanto, é apenas uma seletividade no que diz respeito ao que se
pode e o que não se pode fazer em termos políticos.
É desse modo que as fronteiras entre
o lícito e o ilícito parecem ser tênues. A judicialização da política é usada
de um modo especialmente contraditória. Com o intuito legítimo de averiguar
denúncias de corrupção, ou seja, ilegalidades inaceitáveis, cometem-se outras
ilegalidades igualmente inaceitáveis.
O problema do caprichoso é que, como
não está interessado em princípios de coerência – o que significa, aqui, o
respeito a totalidade do direito –, ele aceita e propõe que a lei deva ser
aplicada apenas no sentido em que seus interesses políticos sejam satisfeitos,
não se incomodando nem um pouco quando se desrespeita a lei em seu próprio
benefício.
O capricho é, no fundo, avesso à
legalidade, mas se transveste de rituais jurídicos para operar sua indignação
mais profundamente interesseira.
E como o capricho só pode servir à
política a partir de uma dimensão de classe, afinal, só é caprichoso quem não
vive da lógica da necessidade, é preciso cooptar parcela significativa da
população para legitimar um discurso que tem um lugar de origem especifico.
Então, tudo fica mais fácil.
O caprichoso político é um
indignado. Deixa claro: certas coisas, ele não aceita. A corrupção, então, tem
que ser punida custe o que custar. O problema é que o custo não é baixo.
Trata-se de desrespeitar o direito à privacidade, o devido processo legal, a
produção lícita de provas judiciais, premiar os delatores e solapar
prerrogativas constitucionais. Mas, o capricho se propõe como discurso fugidio.
O que se pode fazer politicamente, é o que se quer, o que não interessa
politicamente, é o que pode ser deixado de lado.
A seletividade no que diz respeito a
quais normas jurídicas cumprir é traço propriamente autoritário pois aponta
para a ideia de que, para alguns, a lei deve ser severa, enquanto que para
outros, ela pode ser um pouco mais elástica.
É claro que não temos 200 milhões de
caprichosos no Brasil – se bem que uma das características dessa figura, a
transição tênue entre lícito e ilícito, nos seja muito cara –, mas, como se
trata de discurso ideológico, a verdade é que o interesse mais mesquinho e
individualista de alguns, se mostre a pauta geral de indignação da nação.
O povo, o povo mesmo, está
trabalhando. Pensando em como chegar sem atrasos para o serviço diário. Está
preocupado com uma escola para os filhos. Está com dificuldades para colocar
comida na mesa. Sua pauta política é bem clara.
Mas, o caprichoso finge que seus
problemas são iguais aos do povo. Afinal, somos todos brasileiros. Estamos
todos juntos no mesmo barco. E o discurso nacionalista, que é o discurso que
não exclui ninguém em essência, pode prosperar. O curioso é que o discurso da
nação-pátria-unida se dê justamente em um dos países mais desiguais de todo o
planeta.
O caprichoso quer as coisas a seu
modo. Pensa, inclusive, que tem o direito de pautar o debate de nossa crise
política, afinal, está acostumado com o poder de sempre e se sente muitíssimo
contrariado quando denúncias de corrupção são feitas contra os seus
representantes mais proeminentes.
Não se trata, em todo caso, de
defender um governo absolutamente desastrado como o atual. Pelo menos, não no
sentido de apoio aos desmandos e ilegalidades praticadas no seio da república.
Mas, o que parece ser urgente, é colocar sob regime de suspeita um discurso
ufanista blindado por uma superfície jurídica seletiva e de aparência
democrática.
O
capricho não é apenas contraditório e curioso, ele é perigoso. Antidemocrático
por excelência, o capricho visa, em verdade, a estruturação de uma política
autoritária, com os mesmos personagens de sempre no poder. É preciso evitar o
engano, não se trata de uma substituição completamente radical do que está
presente em nosso espectro político. O caprichoso diz querer o Estado de
Direito, mas está plenamente disposto a esquecer essa ideia se for o caso de se
estabelecer um novo governo para o Brasil. Razão de Estado, estamos em uma
crise que talvez torne necessário, argumenta o caprichoso, subverter algumas
regras de direito para alcançar o que se almeja. Todo o problema, aí, consiste
no fato de que devemos esquecer propriamente o direito para se alcançar os
objetivos de alguns poucos interessados realmente na sucessão pelo poder.
O caprichoso quer ir às ruas como manifestante político legítimo. Veste
uma roupa que, a princípio, nada diz ideologicamente (todo mundo é
brasileiro...) grita xingamentos aos governantes (apesar de ser educado, sempre
se pode chegar ao limite da paciência...) e é escoltado pela própria polícia
que percebe que se trata de um manifestante pacífico, afinal, é evidente que
não se trata de um manifestante revolucionário. Está, inclusive, no meio do
povo. Finge ser exatamente o que não é: inofensivo e democrático. Mas, não
resta dúvida. Quando chegar a hora, abrirá uma boca enorme e cheia de dentes
pronta para morder violentamente o poder.