sábado, 24 de setembro de 2016

Palestra Informal na Casa do Prof. Tercio Sampaio Ferraz Jr.


Prezados amigos,

Acabei de achar um vídeo em que discorro sobre Shakespeare e a Corrupção. Trato de Hamlet e da tetralogia A Henríada. Foi uma intervenção que fiz no Seminário da Feiticeira (um grupo de debate que ocorre na casa de praia do professor Tercio Sampaio Ferraz Jr.). Ali, tudo é informal. Menos, as ideias... Algumas figuras conhecidas aparecem: Nelson Jobim, Celso Lafer etc. O seminário foi em outubro de 2015: o Brasil estava polarizado. Tentei dar o meu recado político por meio da arte. Pois, assistam! Abraços!


domingo, 10 de abril de 2016

10 Teses sobre o Caprichoso Político



Rodrigo Suzuki Cintra

 

            Senti a necessidade de explicitar o que venho chamando de caprichoso político. Essa figura, ao que me parece, é característica de nosso modo de navegação social e política e aparece com maior intensidade nos momentos de crise, em que as oposições em jogo se mostram mais evidentes. As dez teses a seguir são obviamente complementares e tentam passar a fisionomia sócio-política deste tipo. Começo pelo pressuposto mais básico de que não existe capricho sem ideologia e termino concluindo que o caprichoso é que, no fundo, é corruptor e corrupto. Mas, além disso, talvez seja necessário uma nota inicial: o verdadeiro caprichoso político se reconhecerá prontamente nesse texto. É inevitável. Mas, como é próprio de seu modo cínico de relação com conceitos, talvez ele faça de conta que essas teses não lhe dizem respeito. Vejam, esse tipo não está acostumado a ser contrariado.

 

1.      O caprichoso político opera sempre um discurso de classe.

Sua fala tem origem específica: parte dos privilegiados para os desafortunados. Desconhece a legitimidade do lugar de onde se produz um discurso popular. Suas opiniões têm a pretensão de ser totalizantes – querem englobar toda a sociedade, evitando ao máximo as verdadeiras oposições sociais em jogo. O capricho na política é sempre ideológico, portanto.   

 

2.      O caprichoso político não se interessa por princípios morais.

Na medida em que sua lógica é de classe, aquilo a que chama de princípio moral não passa, no fundo, de interesse em causa própria. Produz a contradição própria dos tempos: uma moralidade de fachada, avessa a uma ética de construção da cidadania efetiva, está a serviço da estruturação de uma vida política conservadora e desigual. Trata-se, na verdade, de um modo de se relacionar com a ética profundamente contraditório, absolutamente interesseiro e imensamente corrompido e corruptor.  

 

3.      O caprichoso político é avesso à legalidade.

Ele seleciona o que interessa e o que não interessa nas leis. Não vê nenhum problema em usar o direito de um modo meramente instrumental. No fundo, sabe bem que a lei é passível de interpretação. Mas, o curioso é que em alguns casos acredita ser desnecessário interpretar. A lei é clara quando o caprichoso quer, obscura quando o contraria. O capricho não se importa com a coerência: respeitar o direito é questão de oportunidade e ocasião.

 

4.      O caprichoso político é permissivo com a violência.

Ele não a pratica diretamente. Mas, argumenta e compreende as razões das ações pela força. Pondera: às vezes, é preciso alguma ordem (violência) para enquadrar os que não concordam com ele. Ele deixa que outros sujem as mãos, os mais toscos, os indignados máximos que estão dispostos a tudo, mas não engana: a violência como forma de ação política é uma de suas mais secretas opções para resolver crises. Ele é violento, mas preguiçoso e sofisticado demais para efetivar a força nas ruas. Então, assiste as repressões bárbaras cometidas contra manifestações públicas legítimas na tela da televisão. E tem um sorriso no canto da boca quando alguém desce o porrete.

 

5.      O caprichoso político se fantasia de povo.

Simula que seus interesses e problemas são os mesmos que de todos os brasileiros. Confunde o próprio povo que, vivendo nas maiores dificuldades materiais, pode acabar pensando que sua pauta política é a mesma do caprichoso. Alia a isso um nacionalismo absolutamente inverossímil em um país de desigualdades absurdas. Em uma nação partida em muitas, os outros que não aderem à pátria-nação-unida são considerados traidores. Como se fossem brasileiros de menos. O povo mesmo, que vive a lógica da necessidade, não tem, obviamente, a oportunidade de ser caprichoso.

 

6.      O caprichoso político é antidemocrático.

Para ele, o que chama de povão está correto quando concorda com suas opiniões e está “cego” quando não participa de sua lógica. A democracia é questão de lado: quem está afinado com quem. Ou, nos tempos atuais, quem adere ao discurso da moda. O povo, então, para o caprichoso, é, na verdade, um estranho. Como seria possível que parcela considerável da população mais carente não participe das vontades do caprichoso? É claro que ele não entende as razões dos que vêm de baixo. Mas, não poderia ser diferente: o caprichoso não faz efetivamente parte do povo.

 

7.      O caprichoso político é revoltado (mas não com as estruturas iniquas). Ele é um radical de meia-medida. Obviamente que sua revolta nunca é verdadeiramente revolucionária, algo que pudesse realmente mudar a ordem da política nacional. Ele só está interessado na sucessão do poder. Ele quer a mesma coisa de sempre na política, afinal, no fundo, tudo corre bem materialmente. A substituição dos governantes é então uma farsa. Os personagens são os mesmos, a estrutura política é a mesma, a vida social é a mesma. Trata-se de uma revolta caprichosa então, pelo que aparenta, pois opera de um modo preciso para que tudo fique sendo a mesma coisa de sempre.

 

8.      O caprichoso político finge ser civilizado.

Usa argumentos. Reflete, inclusive. Mas, quando chega a hora do verdadeiro enfrentamento de ideias, estimula e compreende a barbárie da força sem hesitar por um segundo. É comum verificar em seu modus operandi argumentativo a virulência e o autoritarismo no modo com que conduz o debate público. Sintoma de um sujeito acostumado em estar por cima nas relações sociais, ele não pode nunca aparentar fraqueza em suas razões argumentativas. Ele até discute com o outro, o diferente, mas chega sempre o momento em que perde a paciência e seus preconceitos mais arraigados afloram. Então, a mulher é diminuída no debate por ser mulher, o negro por ser negro, o pobre por ser pobre (e, portanto, não estar entendendo nada), o sujeito de esquerda por ser de esquerda (e, portanto, ser o que ele considera tendencioso...). O caprichoso não aguenta: tem que xingar preconceituosamente o outro em sua singularidade mais particular simplesmente porque é um outro com singularidades particulares...

 

9.      O caprichoso político é intolerante.

Quem discorda do caprichoso, é visto como louco, inconsequente, corrupto, cego. Ele não compreende a possibilidade real da discordância democrática. O outro, o diferente, o discordante é tratado não como um opositor de ideias, mas como um inimigo. E, é claro, os inimigos têm que ser eliminados (mesmo que apenas do debate), e não aceitos no regime de uma tolerância mais inclusiva. O caprichoso quer calar todo discurso dissonante. Não tolera certas coisas. Então, vai às últimas consequências quando sustenta sua posição ideologicamente demarcada. Xinga, grita, esperneia, às vezes, cospe. Mas, não se enxerga como um intolerante. Suas razões agressivas são apenas sinais da indignação mais pretensamente verdadeira. É preciso perceber: ele cospe nos outros, mas não quer ser excluído do debate tolerante. Não pega bem, e ele preza muito as aparências.  

 

10.   O caprichoso político é corrupto.

É preciso inverter o discurso do caprichoso sobre a corrupção. Ele é seu agente mais frequente, tanto na política quanto no cotidiano. Fingindo ser incorruptível, o caprichoso corrompe, na verdade, a moral, o direito, a democracia, a tolerância e a civilidade. Faz um discurso às avessas: tudo que representa é o oposto da posição verdadeiramente cidadã. O caprichoso se pauta pela lógica da vontade e do interesse mesquinho, ele não concebe o mundo a partir de princípios e ideais. Sua volubilidade, suas estratégias relativistas de argumentação, sua posição política que transparece um discurso de classe, o tornam avesso ao discurso republicano. Para ele, não há princípios na moralidade, no direito, na democracia, na tolerância, tudo é questão de satisfação das vontades imediatistas de quem não gosta e não está acostumado em ser contrariado. Ele não tem utopias, vive da ditadura do real mais comezinho, então, seu discurso apesar de ser sempre o do oportunismo, adere as modas de ocasião com uma facilidade impressionante. Como sabe que a vida política é uma espécie de vale-tudo em que os mais espertos sobrevivem, ele está sempre do lado do poder, mesmo quando não percebe. Seu modo de navegação social mais característico é a lógica dos privilégios de sempre, do tratamento desigual e hierarquizado dos indivíduos, dos subornos do dia-a-dia, do levar vantagem em tudo. Trata os indivíduos que considera inferiores socialmente como coisas, mas quer ser tratado como um rei. Acostumado a fazer birra quando contrariado, o caprichoso aprendeu a ser autoritário quando o caso é o de impor suas vontades individualistas de sempre. Inclusive, fazer seus interesses privados se sobreporem às questões públicas é uma de suas notas mais características. Ele faz isso quando debate política, faz isso quando vai às ruas e faz isso quando vota. Ele faz isso na vida cotidiana – seus vícios privados geram benefícios públicos, ele acredita. No fundo, é preciso não se enganar: é porque existem pessoas como ele, que existe a corrupção.

 

Nota Final

O caprichoso político é birrento, volúvel, relativista, interesseiro, individualista, contraditório, antidemocrático e como tem a ganância própria da classe a que pertence, está sempre flertando de maneira oportunista com o poder. Não está acostumado a não possuí-lo em todas os domínios da vida social. Assim, ele é extremamente verdadeiro em um sentido particular. Quer ser representado politicamente, de qualquer modo, seja justo ou injusto, mesmo que à revelia de qualquer procedimento democrático, mesmo que contra alguns ou contra todos, mesmo que sustentado pela violência, e isso ele levará às últimas consequências, custe o que custar!

sábado, 26 de março de 2016

O Caprichoso e a Crise Política


Talvez um dos modos de navegação social mais distintivos de nossa vida política seja o capricho. Essa figura da extravagância, da vontade sem razões precisas, é típica de contextos arbitrários. Mas, algo não pode ser esquecido quando se trata de pensar uma política caprichosa: o capricho tem lado, é estruturante de um discurso de classe e, como bem se pode perceber, não reproduz verdadeiramente a voz do povo.

            O capricho é característico do discurso ideológico e, portanto, opera na base de um ocultamento das verdadeiras oposições em jogo.

            O caprichoso adere ao discurso de ocasião, menos por uma posição política particularmente calculada e mais por um senso de que as coisas políticas não caminham do jeito que ele gostaria. Claro que não haveria nenhum problema nisso se o que se manifestasse fosse uma posição crítica, ou mesmo, uma indignação mais verdadeira. O que parece ocorrer, no entanto, é apenas uma seletividade no que diz respeito ao que se pode e o que não se pode fazer em termos políticos.

            É desse modo que as fronteiras entre o lícito e o ilícito parecem ser tênues. A judicialização da política é usada de um modo especialmente contraditória. Com o intuito legítimo de averiguar denúncias de corrupção, ou seja, ilegalidades inaceitáveis, cometem-se outras ilegalidades igualmente inaceitáveis.

            O problema do caprichoso é que, como não está interessado em princípios de coerência – o que significa, aqui, o respeito a totalidade do direito –, ele aceita e propõe que a lei deva ser aplicada apenas no sentido em que seus interesses políticos sejam satisfeitos, não se incomodando nem um pouco quando se desrespeita a lei em seu próprio benefício.

            O capricho é, no fundo, avesso à legalidade, mas se transveste de rituais jurídicos para operar sua indignação mais profundamente interesseira.

            E como o capricho só pode servir à política a partir de uma dimensão de classe, afinal, só é caprichoso quem não vive da lógica da necessidade, é preciso cooptar parcela significativa da população para legitimar um discurso que tem um lugar de origem especifico. Então, tudo fica mais fácil.

            O caprichoso político é um indignado. Deixa claro: certas coisas, ele não aceita. A corrupção, então, tem que ser punida custe o que custar. O problema é que o custo não é baixo. Trata-se de desrespeitar o direito à privacidade, o devido processo legal, a produção lícita de provas judiciais, premiar os delatores e solapar prerrogativas constitucionais. Mas, o capricho se propõe como discurso fugidio. O que se pode fazer politicamente, é o que se quer, o que não interessa politicamente, é o que pode ser deixado de lado.

            A seletividade no que diz respeito a quais normas jurídicas cumprir é traço propriamente autoritário pois aponta para a ideia de que, para alguns, a lei deve ser severa, enquanto que para outros, ela pode ser um pouco mais elástica.

            É claro que não temos 200 milhões de caprichosos no Brasil – se bem que uma das características dessa figura, a transição tênue entre lícito e ilícito, nos seja muito cara –, mas, como se trata de discurso ideológico, a verdade é que o interesse mais mesquinho e individualista de alguns, se mostre a pauta geral de indignação da nação.

            O povo, o povo mesmo, está trabalhando. Pensando em como chegar sem atrasos para o serviço diário. Está preocupado com uma escola para os filhos. Está com dificuldades para colocar comida na mesa. Sua pauta política é bem clara.

            Mas, o caprichoso finge que seus problemas são iguais aos do povo. Afinal, somos todos brasileiros. Estamos todos juntos no mesmo barco. E o discurso nacionalista, que é o discurso que não exclui ninguém em essência, pode prosperar. O curioso é que o discurso da nação-pátria-unida se dê justamente em um dos países mais desiguais de todo o planeta.

            O caprichoso quer as coisas a seu modo. Pensa, inclusive, que tem o direito de pautar o debate de nossa crise política, afinal, está acostumado com o poder de sempre e se sente muitíssimo contrariado quando denúncias de corrupção são feitas contra os seus representantes mais proeminentes.

            Não se trata, em todo caso, de defender um governo absolutamente desastrado como o atual. Pelo menos, não no sentido de apoio aos desmandos e ilegalidades praticadas no seio da república. Mas, o que parece ser urgente, é colocar sob regime de suspeita um discurso ufanista blindado por uma superfície jurídica seletiva e de aparência democrática.

O capricho não é apenas contraditório e curioso, ele é perigoso. Antidemocrático por excelência, o capricho visa, em verdade, a estruturação de uma política autoritária, com os mesmos personagens de sempre no poder. É preciso evitar o engano, não se trata de uma substituição completamente radical do que está presente em nosso espectro político. O caprichoso diz querer o Estado de Direito, mas está plenamente disposto a esquecer essa ideia se for o caso de se estabelecer um novo governo para o Brasil. Razão de Estado, estamos em uma crise que talvez torne necessário, argumenta o caprichoso, subverter algumas regras de direito para alcançar o que se almeja. Todo o problema, aí, consiste no fato de que devemos esquecer propriamente o direito para se alcançar os objetivos de alguns poucos interessados realmente na sucessão pelo poder.
           O caprichoso quer ir às ruas como manifestante político legítimo. Veste uma roupa que, a princípio, nada diz ideologicamente (todo mundo é brasileiro...) grita xingamentos aos governantes (apesar de ser educado, sempre se pode chegar ao limite da paciência...) e é escoltado pela própria polícia que percebe que se trata de um manifestante pacífico, afinal, é evidente que não se trata de um manifestante revolucionário. Está, inclusive, no meio do povo. Finge ser exatamente o que não é: inofensivo e democrático. Mas, não resta dúvida. Quando chegar a hora, abrirá uma boca enorme e cheia de dentes pronta para morder violentamente o poder.            

domingo, 30 de agosto de 2015

Tradução: Poema de e. e. cummings


“i like my body when it is with your”

                                               e. e. cummings


i like my body when it is with your

body.      It is so quite new a thing.

muscles better and nerves more.

i like your body.     i like what it does,

i like its hows.       i like to fell the spine

of your body and its bones,and the trembling

-firm-smooth ness and which I will

again and again and again

kiss,      i like kissing this and that of you

i like,slowly stroking the,shocking fuzz

of your electric fur,and what-is-it comes

over parting flesh….And eyes big love-crumbs,
 


and possibly I like the thrill


 

of under me you so quite new

 

***

 

“eu gosto de meu corpo quando está com o teu”

                                               Tradução: Rodrigo Suzuki Cintra

 

eu gosto de meu corpo quando está com o teu

corpo.        É uma coisa tão verdadeiramente nova.

músculos melhores e nervos a mais.

eu gosto do teu corpo.       eu gosto do que ele faz,

eu gosto de teus comos.       eu gosto de sentir a espinha

de teu corpo e os ossos,e o tremer

-firme-macio samente e que eu vou

de novo de novo de novo

beijar,       eu gosto de beijar isso ou aquilo em você

eu gosto,vagarosamente de tocar o,choque dos pêlos

de tua pele elétrica,e o-que-vem

sobre a carne aberta....E olhos migalhas-de-amor,

 

e possivelmente eu gosto do tremor

 

de você sob mim tão novo sabor  



 

sábado, 6 de junho de 2015

Tradução: Dois Poemas de Hemingway


Portrait of a Lady
                   Ernest Hemingway

Now we will say it with a small poem. A poem that will not be good. A poem that will be easy to laugh away and will not mean anything. A mean poem. A poem written by a man with a grudge. A poem written by a boy who is envious. A poem written by someone who used to come to dinner. Not a nice poem. A poem that does not mention the Sitwells. A poem that has never been in England. A small poem to hurt ones feelings. A poem in which there are no crows. A poem in which nobody dies. A small poem that does not say it about love. A poem written by someone who does not know any better. A poem that is envious. A poem that is cheap. A poem that is not worth writing. A poem that why are such poems written. A poem that is it a poem. A poem that we had better write. A poem that could be better written. A poem. A poem that states something that everybody knows. A poem that states something that people have not thought of. An insignificant poem. A poem or not.
                            Gertrude Stein was never crazy
                            Gertrude Stein was very lazy.
Now that is all over perhaps it made a great difference if it was something that you cared about.

Retrato de uma Senhora
                   Tradução: Rodrigo Suzuki Cintra

Agora nós vamos dizê-lo com um pequeno poema. Um poema que não vai ser bom. Um poema que será muito fácil de rir e que não vai significar nada. Um poema desprezível. Um poema escrito por um homem com rancor. Um poema escrito por um garoto que é invejoso. Um poema escrito por alguém que costumava vir para o jantar. Não um poema agradável. Um poema que não menciona os Sitwells. Um poema que nunca esteve na Inglaterra. Um pequeno poema para magoar. Um poema em que não há corvos. Um poema em que ninguém morre. Um pequeno poema que não se refere ao amor. Um poema escrito por alguém que não sabe ao certo. Um poema que é invejoso. Um poema que é barato. Um poema que não vale a pena escrever. Um poema porque esses tipos de poemas são escritos. Um poema que é um poema. Um poema que era melhor escrever. Um poema que poderia ser melhor escrito. Um poema. Um poema que declara alguma coisa que todo mundo sabe. Um poema que declara alguma coisa que as pessoas não haviam pensado. Um poema insignificante. Um poema ou não.
                            Gertrude Stein nunca foi demente
                            Gertrude Stein era muito indolente.
Agora que tudo acabou talvez fizesse uma grande diferença se isso fosse alguma coisa que você se importasse.


***


[If my Valentine you won’t be...]
Ernest Hemingway

If my Valentine you won’t be,
I’ll hang myself on your Christmas tree.


[Se minha Namorada você não quiser se tornar...]
                            Tradução: Rodrigo Suzuki Cintra

Se minha Namorada você não quiser se tornar,
Na sua árvore de Natal, eu vou me enforcar.


domingo, 10 de maio de 2015

A Importância de ser Infiel ou A Dama do Cachorrinho



Rodrigo Suzuki Cintra

“A sua dama causou-me tamanha impressão que, apenas a conheci, quis trair minha mulher, sofrer, brigar etc.”
Górki em carta para Tchekhov em 1900.

            Uma história de adultério, na literatura e na vida, virada do avesso, pode ser também uma história de amor.
            Em poucas obras essa transição entre a simples traição e um verdadeiro amor aparece de maneira tão instigante quanto no conto A Dama do Cachorrinho de Anton Tchekhov. Há quem divida esse conto em partes (o próprio autor o fez) e demonstre na estrutura narrativa como uma paixão de ocasião se transforma no amor de uma vida. É como se Gurov e Ana, os personagens principais, ficassem desculpados por traírem seus respectivos cônjuges, pois, no fim das contas, percebem que se amam de verdade. O leitor, então, também se sente desculpado por torcer pelo sucesso dos encontros furtivos dos dois: “está tudo certo, afinal, eles se amam!”
            De minha parte, não posso dizer o mesmo. Curto cada etapa do texto: o seu tempo próprio. Desde o começo do relacionamento, ainda um momento em que a vontade titubeia, até a certeza de um amor pleno que a vontade não pode negar. E, pior: aprecio os parágrafos apaixonadamente, e com malícia.
 Gosto da maneira como Tchekhov traça em poucas linhas, em uma ou duas páginas no começo do conto, toda a armação que sustentará o adultério. E quando sinto prazer em ler essa passagem, não estou me importando nem um pouco se o caso extraconjugal será legítimo do ponto de vista amoroso. A questão não se propõe nesses termos para mim. A verdade é que o autor sabe perfeitamente conduzir o tempo interno da narrativa. E o melhor a fazer é nos deixar conduzir pelo ritmo do namoro. Tchekhov traça o perfil de Gurov com tamanha nitidez, com perfeita precisão em breves frases, que torna fácil para nós compreendermos os motivos que levam o personagem a trair reiteradas vezes sua esposa.
E quando Tchekhov descreve as caminhadas a sós, os beijos roubados, os abraços às escondidas e coloca tudo aquilo em uma cidade que não é a moradia regular dos amantes, enfim, quando situa tudo com um sabor de férias, é impossível não recordarmos de nosso próprio passado, de nossas paixões de estação. E ao percebermos a intensidade e a sinceridade dos encontros secretos dos personagens, lemos tudo aquilo com um sorriso no canto da boca. Pelo menos eu assim o faço. Tchekhov simplesmente nos toca, muitas vezes, porque faz lembrar, através de uma literatura sem rodeios e de estrutura simples, de sentimentos e momentos que nós, leitores, muito bem podemos reconhecer.
            E a narrativa vai crescendo em emoção de uma maneira nesse conto que é difícil traduzir. Quanto mais Gurov percebe que está perdidamente apaixonado por Ana, o que ele não desconfiava que pudesse acontecer dada a sua vasta experiência nos casos de amor proibido, mais o leitor se comove e participa dos sentimentos do personagem. Invariavelmente, começamos a torcer por aquele amor que não deveria efetivamente acontecer. Somos levados, por meio de uma escrita que não só diz respeito à paixão mas que em si mesma seduz, a desconsiderar os deveres tradicionais de fidelidade vigentes na estrutura moral da vida social. E então, absolutamente sinceros, queremos ler naquelas linhas bem traçadas que o amor pode vencer as convenções.
            Talvez seja justamente quando alcançamos esse ponto, quando estamos já embriagados por aquela escrita, que uma consideração inevitável, situada mais ou menos no meio do conto, de consequências devastadoras, sempre que a lemos causa algo de incomodo. Por que, muitas vezes, o que há de mais importante para nós, o que existe de mais verdadeiro, o que pode nos traduzir completamente, o que realmente importa de verdade, tem que ser ocultado em nossas vidas? Por que escondemos nossos desejos mais sinceros? A vida pulsante que encobrimos propositalmente é milhares de vezes mais franca, importante e essencial que nossa existência social regrada, sustentada por aparências e etiquetas dos bons costumes feitas de pura dissimulação. Isso é uma verdade que qualquer um pode perceber. Mas, o que fazemos? Persistimos na vidinha sem sobressaltos, na lógica do fingimento cotidiano, na morte de nossos desejos mais profundos, e tentamos sustentar, a todo custo, aquilo que os outros esperam de pessoas sensatas como nós.
Somos apenas coadjuvantes na peça de teatro de nossas próprias vidas.   
Muitos leitores questionam os desfechos dos contos de Tchekhov. Há algo de anticlímax. Um não-desfecho. É que depois de ter alcançado às alturas nas breves considerações sobre a natureza humana, ao relatar os sentimentos do personagem principal de maneira tão pungente, ficamos a esperar um desfecho igualmente estratosférico. Mas, não é isso que o autor requer de nós. Seus desfechos são um verdadeiro balde de água fria. Meio que não sabemos para onde ir. Não sabemos, ao certo, se gostamos ou não. Mas isso ocorre, é claro, porque o conto não poderia caminhar no mesmo ritmo até o fim. Uma história desse nível, contada dessa maneira, uma imensa afronta a nossa tendência de fingir para todos, se continuasse na mesma cadência até a última frase, certamente nos destruiria. Uma história que nos lembra, a todo momento, que fingimos para nós mesmos, que não aguentamos levar às últimas consequências as próprias paixões, sejam elas quais forem. Uma história que, a bem da verdade, acaba por nos denunciar: já não podemos mais, mas bem queríamos ter um amor como aquele. 

E, no entanto, Tchekhov precisava terminar de algum modo e sabia muito bem o que estava fazendo. O desfecho do conto é desconcertante. Menos porque não aponta para uma solução para que o casal fique junto - Gurov fica se perguntando “como?, como?, como?” -, mas porque nos lembra, invariavelmente, de nossos amores passados, daqueles casos que não sabemos ao certo o que foi que realmente aconteceu. As histórias de amor acabam. Na literatura e na vida. E nem sempre acabam bem resolvidas. 

domingo, 26 de abril de 2015

Citação do Mês - Abr/2015






"HAMM: Você já pensou numa coisa?

 CLOV: Nunca."

Diálogo de "Fim de Partida" de Samuel Beckett.

sábado, 25 de abril de 2015

Os Pássaros de Kafka - Parte 2



III – Um voo profundo


Um abutre estava bicando os meus pés. Já havia despedaçado as minhas botas e as meias, agora atacava os pés. Bicava-os com ferocidade, circundava-me sem trégua, e continuava o trabalho.
Franz Kafka, O Abutre


            Não sabemos nada sobre os motivos que levaram o abutre a bicar violentamente o narrador. A história já começa com os ataques deste pássaro. Pode ser que o personagem tenha cometido algum crime contra os deuses, tal qual Prometeu, condenado por ter roubado o fogo de Zeus e tê-lo entregue aos mortais, a ter o fígado comido eternamente por uma águia. Porém, em se tratando de Kafka, é bem possível, talvez quase certo, que o narrador não tenha cometido mal algum. O abutre simplesmente chegou e começou a bicar, conforme relata o personagem. A história inteira pode ser resumida em poucas frases. Um abutre que bicava ferozmente os pés do narrador escuta uma conversa entre esse e um cavalheiro. O cavalheiro, com a intenção de ajudar o torturado, se propõe a pegar uma espingarda para matar o abutre. Porém, compreendendo perfeitamente toda a armação para liquidá-lo, em um último ataque fulminante, o abutre arremessa, qual lança, o bico pela boca do protagonista.

            O que chama a atenção neste breve conto de Kafka é o ritmo da narrativa, uma capacidade de contar uma história inteira em poucas linhas e estabelecer uma quebra com a lógica das imagens surpreendente. Ao longo da narração, somos levados a imaginar concretamente cenas possíveis, porém, o conto termina com uma abstração, uma verdadeira negação da imagem e provoca a impressão de que tudo que podemos fazer é compreender, mas não imaginar.

            Podemos visualizar claramente a figura do abutre a dar voltas pelo céu e investir com seu bico nos pés do personagem principal. Também a conversa entre o narrador e o cavalheiro, conversa em que esse promete pegar uma espingarda e liquidar com o pássaro, pode ser perfeitamente idealizada. Porém a história, em dado momento, impede a possibilidade de representarmos imageticamente o que nos é narrado. É possível até imaginar o voo preciso em que o abutre mergulha dentro da boca do narrador: uma imagem violentíssima. No entanto, as últimas palavras são decisivas para a avaliação do valor deste texto: Caí para trás, aliviado ao sentir que ele se afogava irreparavelmente no meu sangue que inundava todos os abismos, cobria todas as praias

            De maneira surpreendente, o abutre que a princípio parecia que liquidaria o personagem-narrador, até mesmo porque se arremessa após inclinar-se bem para trás a fim de tomar impulso e mergulhar como uma lança o bico pela garganta do personagem, nas últimas linhas do conto, morre afogando-se irreparavelmente. Mas, como imaginar de maneira efetiva um abutre se afogando sem salvação no sangue dentro de um homem? Um afogamento em que o sangue deste homem inundava todos os abismos, cobria todas as praias.

            Kafka, ao fim de seu conto, na última sentença, inverte a lógica estabelecida durante toda a narrativa. Não só porque nos nega brilhantemente a possibilidade de compreendermos e representarmos o desfecho final por meio de imagens, mas porque inverte a lógica da violência, estabelecendo no sangue, por dentro do homem, a possibilidade de destruição daquilo que o atacava. Existe aqui uma verdadeira fusão da corporalidade. O inimigo externo, o abutre, se infiltra por dentro do homem após penetrar em voo rápido e certeiro pela boca do narrador. Torturador e torturado identificam-se, ao fim da história, corporalmente, no limite do próprio sangue, e, talvez somente assim, possam compartilhar do mesmo implacável destino.

            O personagem-narrador sente-se, de algum modo, aliviado. Ninguém mais lhe bica os pés. O abutre se afogou irreparavelmente dentro de seu sangue. A história, então, pode terminar abruptamente. Mas é claro que, dentro da estrutura narrativa montada por Kafka, a morte do abutre não significa a vida do narrador. 

sexta-feira, 24 de abril de 2015

Em sala de aula - Breves impressões e notas de um aluno de Tercio Sampaio Ferraz Junior

Rodrigo Suzuki Cintra

“Perguntei a um homem o que era o Direito. Elle me respondeu que era a garantia do exercício da possibilidade. Esse homem chamava-se Galli Mathias. Comi-o”
                              Oswald de Andrade                                                                          

            A epígrafe deste ensaio pode ser encontrada na Teoria da Norma Jurídica de Tercio Sampaio Ferraz Junior. Seu conteúdo, um tanto jocoso, já denuncia, logo de saída, os discursos jurídicos herméticos, o palavrório legal, as definições jurídicas confusas[1]. O que a antropofagia de Oswald faz é quase uma impostura: quando os tecnocratas do direito pensam estar falando sério, mas, de fato, apenas produzem um discurso ininteligível, o melhor a se fazer é fazer graça.
            E ao mesmo tempo, esta citação está em um dos livros mais importantes produzidos por um dos nossos mais fundamentais juristas.
A questão, nos parece, está para além do bom-humor. A pergunta inicial de Oswald na citação em pauta está longe de ser ingênua. Afinal, o que é o direito?
            Um professor de Introdução ao Estudo do Direito tradicional não vacilaria, nem por um instante, em encher, protocolarmente, os estudantes de definições do que seria o fenômeno jurídico. Pois, o objetivo deste breve ensaio é mostrar um pouco da atividade de Tercio Sampaio Ferraz Jr. como professor de direito[2] e autor de textos de análise jurídica. O que significará, sem sombra de dúvida, mostrar o que singulariza este pensador e o torna professor inesquecível e autor incontornável. Para isso, faremos um certo desvio das amarras de um artigo objetivo e buscaremos em nossa experiência pessoal de contato com o professor Tercio, como aluno, espectador de sala de aula, e como leitor de sua obra, alguns elementos que possam, de alguma maneira, caracterizar o efeito impressionante que sua figura causa a um interlocutor eventual. Falaremos, em um exercício de rememoração, portanto, inicialmente, da excelência de suas aulas.  
            Ao contrário de um professor tradicional, Tercio Sampaio Ferraz Junior, talvez até por sua sólida formação filosófica[3], não era dado, nas aulas na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, a definir antes de questionar. Cada aula sobre um tema específico era uma análise dos pressupostos e dos limites do jurídico. O professor Tercio, em suas aulas, encorajava os alunos a refletir zeteticamente – tema, aliás, caro ao professor – sobre conceitos da dogmática jurídica. O resultado era uma forma de se fazer Introdução ao Estudo do Direito que era extremamente crítica, ao mesmo tempo em que deixava claro os institutos jurídicos que o jurista lida no dia-a-dia.
            O objetivo era evidente. O professor Tercio se preocupava não apenas com a formação de profissionais do direito, mas com a formação de juristas. Figuras que estariam imbuídas de cultura geral e jurídica e que pensariam o direito para além da interpretação fria e formal dos textos jurídicos.
            As aulas do professor Tercio eram marcadas por um estilo todo próprio, inconfundível. Tratava-se de apresentar um tema que, subitamente, devido a uma série de questionamentos, se transformava em um problema. Este problema era, por assim dizer, contornado na própria aula e, através de exemplos retirados da prática do direito, mostravam a íntima ligação entre o direito como teoria e o direito como práxis. Este problema, no entanto, levava a formação de um outro problema, invariavelmente, de difícil resolução. Nesse momento da aula, o professor Tercio, mais zetético do que nunca, apontava para as diversas dificuldades e armadilhas que esse problema dado suscitava. Terminava sua aula, na imensa maioria das vezes, com a frase: “Mas, isso nós vamos ver na próxima aula...”
            Deliciosa suspensão esta do próximo capítulo de seu curso em que um novo tema seria introduzido e posteriormente questionado e assim por diante. Com uma precisão de cronômetro, as aulas do professor terminavam pontualmente no momento devido e sempre com uma expectativa a ser satisfeita no próximo encontro.
O que os alunos tinham o privilégio de presenciar não era apenas a lógica de um pensamento que se constrói em frente aos nossos olhos em forma de puro argumento, mas era também, o constante exercício de uma retórica absolutamente envolvente que levava o interlocutor, espectador de sala de aula, a se seduzir pelo discurso de um filósofo do direito que é um verdadeiro professor. Forma e conteúdo, nas aulas do professor Tercio, começavam a se delinear como elementos do mesmo, como momentos indissociáveis da atividade de se pensar.
            Assim, como não identificar, nas aulas do professor Tercio, as finalidades tradicionais da retórica?
            As funções da retórica são, tradicionalmente, as seguintes: 1. Docere; 2. Movere; 3. Delectare. Docere é o ato de ensinar, de transmitir conhecimento, informar o interlocutor. Movere é a atividade de mover (co-mover), movimentar o espírito de quem ouve. E, por fim, Delectare é encantar, seduzir pela beleza do discurso. Todos, atributos facilmente percebidos nas aulas do professor Tercio que, pode se dizer, é mestre na arte da oratória. Ou seja, com o professor Tercio, os alunos não apenas aprendem, mas também têm a tendência a se encantar pela arte do bem-falar, pela beleza do argumento bem colocado. O que no caso do professor significa, ao mesmo tempo, invariavelmente, um rigor conceitual assombroso.  
              Nietzsche costumava afirmar que a retórica era republicana. Ela só poderia ter lugar e, de fato, só teve lugar historicamente, entre sujeitos de uma cidadania. Para esse filósofo, ser cidadão é poder persuadir e ser persuadido. As aulas do professor Tercio, nesse sentido, eram verdadeiros convites à cidadania. Não apenas porque materialmente nos ensinavam os institutos e categorias do direito, mas porque em sua forma, permitiam a inter-relação professor/aluno de uma maneira em que as perguntas dos alunos eram muitas vezes reincorporadas ao argumento principal do professor. Em outras palavras, era comum o professor Tercio recuperar na pergunta do aluno algum elemento que pudesse dar o gancho para um novo tema de discussão. Se é verdade que nenhuma pergunta passava sem o crivo da crítica, o professor, por outro lado, pacientemente, sempre sabia aproveitar as indagações dos alunos de modo a dar seguimento a uma nova forma de aproximação do problema jurídico em questão.
            Aliando a análise do direito à formação filosófica, as aulas do professor Tercio conseguiam conciliar a teorização da filosofia com a prática do direito. Nesse sentido, não é possível se enganar. O professor Tercio não é mero leitor de sistemas filosóficos, nem advogado inconsciente dos meandros das doutrinas que ele mesmo sustenta. O professor Tercio é um autor. Autor no sentido mais profundo do termo, que é o daquele que inova e constrói uma obra.
            Não vamos dizer que seus livros sejam acessíveis ao público em geral, se bem que não são, em hipótese alguma, obscuros. Trata-se, em todo caso, de uma escrita que se permite ser extremamente clara. Às vezes, de uma clareza tal que até mesmo ofusca os leitores acostumados com o vocabulário jurídico abstruso. Isso porque a escrita acompanha o que a aula do professor tem de melhor: o rigor.
            O livro de Introdução ao Estudo do Direito do professor Tercio, assim, é completamente diferente dos livros que podem ser encontrados sobre o assunto. Ali, o que está em jogo não é apenas uma exposição ordenada dos institutos jurídicos básicos. O que temos em mãos, e o que ouvimos na sala de aula, é a construção de toda uma teoria sobre o direito. Uma teoria que não esconde seu diálogo com autores das mais variadas tradições, e que importa em uma concepção particular do fenômeno jurídico.  
            Nas aulas, podiamos assistir o professor passear de maneira erudita e tranquila por autores como Kelsen, Viehweg, Hannah Arendt, Luhmann, Habermas, Jhering, Hart, Ross, Bobbio, Hobbes e mais uma série de outros autores[4]. E o que é melhor nisso tudo: discutia cada autor com profundidade de especialista sem se esquecer de traçar ideias por sua própria conta e risco.   

***

            Não são poucos os alunos que sofriam de uma estranha recapitulação intelectual: mesmo depois de formados, ou nos últimos anos da faculdade, resolviam voltar a assistir as primeiras aulas que tiveram na Faculdade de Direito com o professor Tercio.
            Pedindo permissão para frequentar as aulas – pedido que sempre era autorizado, por sinal –, os ex-alunos voltavam em peso para frequentar as aulas daquele professor que, de alguma forma, os marcou. Na maioria das vezes, admitiam que seu interesse consistia em uma constatação simples: sempre se aprende com o professor, não importa quanto já se pretenda saber sobre o direito. 



[1] Tudo que o pensamento de Tercio Sampaio Ferraz Junior não é.
[2] Tercio Sampaio Ferraz Junior foi professor titular da Faculdade de Direito da USP, instituição em que lecionava a disciplina Introdução ao Estudo do Direito.
[3] Vale aqui lembrar que o professor Tercio Sampaio Ferraz Junior, além de ser doutor formado em Direito pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco - USP, também é formado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tendo se doutorado em Filosofia pela Johannes Gutemberg Universitat de Mainz. 
[4] Anos depois de nossas primeiras aulas com o professor Tercio, no primeiro ano da graduação em direito, pudemos constatar, durante nossos estudos de pós-graduação, que o universo de referências do professor era ainda muito mais extenso do que poderíamos supor... 

Ordem e desordem na crítica brasileira: sobre um ensaio de Antonio Candido


Rodrigo Suzuki Cintra


“No âmbito do marxismo, a ligação entre literatura e sociedade não é uma audácia, é uma obrigação.”
                                                                                              Roberto Schwarz


Quando Antonio Candido escreveu seu ensaio sobre as Memórias de um sargento de milícias acabou fazendo mais que reavaliar a tradição crítica sobre este romance. De fato, como constata Roberto Schwarz, o crítico realizou a proeza de escrever em 1970 nosso primeiro estudo propriamente dialético.
Tratava-se, na ocasião, de um ensaio literário que, por sondar a experiência social brasileira, ativava o programa materialista.
Em sua Dialética da malandragem, nosso Autor escrevia de forma clara e precisa, sem alardear vocabulário carregado de terminologias, e explicava, com a paciência de professor, os motivos pelos quais as Memórias de um sargento de milícias devem ser compreendidas como uma obra singular em nossa tradição literária.
Fugindo da caracterização europeia logo de saída, ao sustentar que o romance de Manoel Antônio de Almeida não era picaresco nem documentário, nosso Autor estava de maneira indireta assumindo a posição de que a literatura brasileira não é mera repetição de formas estrangeiras, mas sim algo novo.
            É nesse sentido que o herói de Memórias não deve ser entendido como uma figura pícara, como na experiência literária espanhola: ele é malandro. A determinação de suas características faz mais que mostrar especificamente quem é Leonardo Filho, mas o insere em uma tradição. Uma tradição brasileira que segue desde a Colônia, manifestada pela figura de Pedro Malasartes, e percorre a história literária brasileira até o modernismo no século XX, com Macunaíma e Serafim Ponte-Grande -  a malandragem. O malandro é o aventureiro astucioso, gosta do “jogo em si”, está sempre no limite entre o lícito e o ilícito e será a figura chave para a compreensão do ensaio de Antonio Candido. Isso porque o malandro é figura que existe efetivamente tanto no campo da ficção quanto no da realidade.
            As Memórias, como aponta Antonio Candido, são únicas no panorama de nossa ficção oitocentista porque não expressam a visão de nossa classe dominante. O autor das Memórias suprime os escravos e as classes dirigentes, sobrando-lhe um setor intermediário e anômico da sociedade, cujas características, entretanto, serão decisivas para a medida das relações ideológicas entre as classes sociais. 
            Tratava-se de caracterizar os homens livres e sua lei. Estes homens viviam num espaço social intermediário e anômico, em que não integravam a ordem, mas também não podiam dela prescindir.
            Talvez o maior achado de Antonio Candido tenha sido o de perceber que as Memórias operam através da lógica da dialética entre ordem e desordem. Ordem e desordem seriam a própria forma do romance, a “lei de sua intriga”, seriam o princípio que organizaria a realidade e a ficção.
            A figura do malandro é a mais adequada a este tipo de organização de mundo em que forças da ordem, como a polícia, por exemplo, concorrem com as forças da desordem. Ele é o tipo que transita entre os dois mundos. Está sempre atuando no limiar, no cinzento, entre o que se pode e o que não se deve fazer. A alternativa lícito/ilícito é perfeitamente relativizada pelo malandro. O malandro encarna a esperteza popular, sabedoria genérica da sobrevivência em um mundo repleto de obstáculos e iniquidades.
            Antonio Candido consegue, inclusive, sintetizar a questão da dialética da ordem e da desordem em uma imagem que capta do livro: o chefe-de-polícia, major Vidigal, vestido com a casaca do uniforme, mas com as calças domésticas e exibindo, sem querer, seus tamancos. A imagem, boa demais para ser descartada, mas que somente a leitura do crítico faz perceber, aponta para os dois “hemisférios” nos quais orbitam a vida dos personagens e as relações sociais descritas no romance. Nem mesmo o pólo mais evidente da ordem, o da polícia de Vidigal, passa livre da desordem que caracteriza a vida dos personagens que o próprio Vidigal persegue.
            Tudo se passa como se os personagens descrevessem uma verdadeira dança entre lícito e ilícito, sem que possamos dizer, satisfatoriamente, o que é um e o que é outro.
            Tomemos o roteiro das relações amorosas que pululam aos montes no romance. São “vinte mancebias a cada casamento e mil uniões fortuitas a cada mancebia”. Em outras palavras, os homens e mulheres livres e pobres se arranjavam da maneira que a vida parecia mandar, em uma oposição clara entre os casamentos devidamente realizados de acordo com a ordem moral, e as relações de convivência efetivas, mas não oficiais.
            Fazendo uma crítica materialista toda a seu jeito, Antonio Candido, esbanjando originalidade, impregna de dialética seu ensaio porque vislumbra a dialética na composição do próprio romance de Manoel Antônio. De caso pensado ou não, o fato é que as Memórias serviriam de registro da sociedade oitocentista – afinal, “Era no tempo do rei”...
            O valor do ensaio de Antonio Candido não está na mera ligação entre sociedade e literatura. Está muito mais no fato de nosso Autor buscar a sociedade através da forma literária e não o contrário. O elemento estético está em primeiro lugar.
Em outras palavras, antes de intuída e objetivada pelo romancista, a forma que o crítico estudou foi produzida pelo processo social, porém apesar da obra relatar seu próprio tempo e sociedade, a dinâmica das Memórias tem um valor estético todo próprio.
            Como explica Roberto Schwarz: “Assim, o ensaio retoma o esforço de interpretação da experiência brasileira, que havia sumido da crítica exigente, e talvez se possa dizer que inaugura a sondagem do mundo contemporâneo através de nossa literatura.”
            Redução da forma social a uma forma estética, a verdade é que nosso Autor, como aponta Paulo Arantes, percebeu que na circulação dos personagens das Memórias pelas esferas sociais da ordem (Brasil burguês) e da desordem (pólo negativo do Brasil burguês), estrutura central do romance, existia a fórmula que estilizava um ritmo geral da sociedade brasileira na primeira metade do século XIX.
            A Dialética da Malandragem, balanceio caprichoso entre ordem e desordem, define não apenas a estrutura da obra que se critica, mas explica a fisionomia do país que a produziu.